Embora o Código Civil de 2002, instituído pela 10.406/2002, tenha proibido a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses, aquelas até então existente continuam vigentes, subordinando-se às regras do Código Civil anterior, no caso das enfiteuses privadas, e às normas do Decreto-Lei 9.760, de 5 de setembro de 1946, quando se tratar de bens públicos sujeitos ao regime de aforamento.
Através da enfiteuse o proprietário de bem imóvel atribui a outrem o domínio útil do bem, conservando a propriedade crua. O proprietário, então, passa a condição de senhorio direto, conservando a titularidade do bem, ao passo que o enfiteuta se torna o titular do domínio útil do bem, podendo usá-lo, fruí-lo e aliena-lo.
De seu turno, a usucapião, em sua essência, constitui forma de aquisição da propriedade imóvel em razão do exercício da posse por terceiro com animus domini por determinado período de tempo, atendidos os requisitos estabelecidos em lei. Por isso também conhecida como prescrição aquisitiva. O Direito, ao reconhecer a aquisição da propriedade por usucapião, está a privilegiar a importância da destinação social do bem em detrimento do dono que abandona seu bem. Nesta linha, são preciosas as ponderações do jurista Carlos Roberto Gonçalves que, com lucidez, assim leciona:
“O fundamento da Usucapião está assentado, assim, no princípio da utilidade social, na conveniência de se dar segurança e estabilidade à propriedade, bem como de se consolidar as aquisições e facilitar a prova do domínio. Tal instituto, segundo consagrada doutrina, repousa na paz social e estabelece a firmeza da propriedade, libertando-a de reinvindicações inesperadas, corta pela raiz um grande número de pleitos, planta a paz e tranquilidade na vida social: tem a aprovação dos séculos e o consenso unânime dos povos antigos e modernos.”
Todavia, os bens públicos, em razão do interesse coletivo que representam, não estão sujeitos à incidência da prescrição aquisitiva por usucapião. Por mais que o bem público se encontre em situação de abandono pelo Ente Público e lhe tenha sido dada destinação social por terceiro, a ordem jurídica vigente optou por excluir a possibilidade de usucapião desses bens.
Então, o que nos interessa neste momento é analisar a possibilidade de usucapião de bens públicos sujeitos ao regime de enfiteuse. Sabe-se que, nos termos do artigo 183, § 3º, da Constituição Federal, com replicação no artigo 102 do Código Civil, os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. Assim, o questionamento que se faz é se tal dispositivo constitui impedimento para que um bem público com enfiteuse constituída seja usucapido.
Em exemplo, seria a situação de um bem da União com enfiteuse constituída que fosse abandonado pelo enfiteuta e passasse a ser utilizado de maneira útil e ostensiva com ânimo de dono por terceiro. Então, esse terceiro poderia usucapir esse bem?
Ao que parece a usucapião de bem público sob regime de enfiteuse seria possível, mas com a necessidade de alguns apontamentos conceituais, já que, a rigor, o objeto da prescrição aquisitiva seria o domínio útil, e não a propriedade em sim.
O bem público, em hipótese alguma, pode ser adquirido por usucapião, todavia, o domínio útil do enfiteuta pode perecer em função da prescrição aquisitiva. Então, ao que parece, é perfeitamente viável a aquisição do domínio útil de enfiteuse por usucapião, ressaltando que a propriedade pública permanece inalterada. Neste sentido, inclusive, o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou, conforme se vê da ementa do julgado abaixo transcrito:
AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO - DECISÃO MONOCRÁTICA NEGANDO PROVIMENTO AO RECLAMO - INSURGÊNCIA RECURSAL DA DEMANDADA.
1. A revisão das conclusões da Corte de origem acerca da presença dos requisitos legais necessários para a aquisição da propriedade pela usucapião extraordinária demandaria a reapreciação do contexto fático e probatório dos autos, prática vedada pela Súmula 7 do STJ.
Precedentes.
1.1. É possível reconhecer a usucapião do domínio útil de bem público sobre o qual tinha sido, anteriormente, instituída enfiteuse, pois, nesta circunstância, existe apenas a substituição do enfiteuta pelo usucapiente, não trazendo qualquer prejuízo ao Estado. Precedentes.
2. Esta Corte de Justiça tem entendimento no sentido de que a incidência da Súmula 7 do STJ impede o exame de dissídio jurisprudencial, na medida em que falta identidade entre os paradigmas apresentados e os fundamentos do acórdão, tendo em vista a situação fática do caso concreto, com base na qual deu solução a causa a Corte de origem.
3. Agravo interno desprovido.
(AgInt no REsp 1642495/RO, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 23/05/2017, DJe 01/06/2017)
Desta forma, percebe-se que a usucapião de bem sob regime de enfiteuse não macula a propriedade crua do imóvel, que permanecerá na titularidade do Ente Público, já que o objeto da prescrição aquisitiva será apenas o domínio útil, e não a propriedade em si.
Neste contexto, é preciso anotar que não nos aprece válida a constituição de enfiteuse por usucapião, mas apenas a transferência do domínio útil em razão de enfiteuse preexistente. Assim, um bem público não é passível de ser alçado ao regime de aforamento em razão de usucapião. O que se possibilita é apenas a transferência por usucapião do domínio útil decorrente de enfiteuse anteriormente constituída.
Assim, ao que se viu, é perfeitamente possível a usucapião de domínio útil de bem sob regime de enfiteuse, ressaltando, todavia, que a propriedade nua do Ente Público deve permanecer intocada. O objeto da usucapião é o domínio útil, e não a propriedade do bem em si considerada.
Referências
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Bauru, SP: Edipro, 2001.
_______.Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria celeste Cordeiro Leite dos Santos.10ª ed. Brasília: Editora UNB, 1999.
FILHO, Rodolfo Pamplona; GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo Curso de Direito Civil, Volume II – Das Obrigações. 4ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2004.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Volume V, Direito das Coisas. São Paulo: ED. Saraiva, 2006.
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 12ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2003.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições do Direito Civil. Volume III - Contratos. ed 12º. Rio de Janeiro: ED. Forense, 2005.
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