Resumo: É tempo de discutir a participação de fundos de investimento nas contratações públicas, considerando a ótica dos debates sobre desburocratização no Brasil. Entende-se importante considerar a natureza jurídica e características do regime jurídico dos fundos de investimento, analisando sua compatibilidade com os instrumentos licitatórios e com a hermenêutica da legislação. Especificamente, este artigo buscará discutir a exigência de comprovação pelos fundos de investimento de regularidade perante o FGTS para fins de habilitação em contratações públicas. Analisar-se-á a legislação de fundos de investimento e aquela aplicável às licitações para avaliar a pertinência desta exigência, levantando experiências empíricas de editais, assim como literatura aplicável a licitações. Ao final, confirma-se a hipótese de incompatibilidade desta exigência para as hipóteses dos fundos de investimento, exigindo-se revisitar o tema nos editais de licitação.
Palavras-Chave: Licitação, Habilitação, Fundos de Investimento, FGTS.
Abstract: It is about time to discuss investment funds participation in public procurements, especially regarding the simplification of process in Brazil. It is paramount to investigate the funds’ legal nature and characteristics as well as the understandings regarding public procurement regulation. Specifically, this article aims at debating the requirement that all bidders shall submit regularity proof regarding labor contributions to FGTS. The analysis herein will focus on assessing Brazilian regulation on investment funds and public procurement, incorporating some empirical experiences as well as literature regarding auctions in Brazil. At the very end, we confirm the hypothesis that such requirement should not apply to investment funds, demanding adjustments for future biddings.
Keywords: Public Procurement, Bidders’ Qualification, Investment Funds, FGTS.
Sumário: 1 - Introdução; 2 – Natureza jurídica dos Fundos de Investimento e sua incompatibilidade com a exigência de habilitação ligada ao FGTS; 3 – Das Discussões Práticas do Problema envolvendo o FGTS e os Fundos de Investimento em Contratações Públicas; 4 – Conclusões; 5 – Referências Bibliográficas.
1 – Introdução
Longe de encerrar os debates, a promulgação da Nova Lei de Contratações Públicas (Lei nº 14.133, de 2021)[1] deu azo a discussões sobre formas de simplificar os procedimentos de contratação pela Administração. A principal pauta parece ser a eliminação de heranças burocráticas da Lei nº 8.666/1993[2], permitindo a ampliação de competição saudável entre diversos interessados em contratar com a Administração Pública.
Nessa esteira entendemos ser necessário debater com maior profundidade as exigências licitatórias para fins de participação de fundos de investimento em processos de contratações públicas, principalmente quando falamos de grandes projetos de infraestrutura. Afinal, estas contratações não só demandam vultosos investimentos do mercado privado, como também carregam peculiaridades na sua modelagem, por exemplo, com a comum exigência de constituição, pelo licitante vencedor, de uma sociedade de propósito específico para atuar como concessionária[3]. Ou seja, quem vence a licitação costuma constituir outra empresa para assinar o contrato de concessão ou PPP.
Aliás, foi neste cenário dos grandes projetos de infraestrutura que a participação dos fundos de investimento aparenta ter ganhado destaque na dinâmica das contratações públicas[4]. Por exemplo, o ano de 2016 foi marcado pela a participação de fundo sob capitaneado pela gestora Pátria Investimentos na licitação para outorga de concessão rodoviária pelo Governo do Estado de São Paulo[5]. A partir de então diversos editais têm buscado permitir a participação destes agentes[6], cujo apetite para o mercado de infraestrutura aponta ser, a princípio, promissor. Tudo porque, cm a mudança de papel dos Bancos Públicos, de financiadores para estruturadores, é tida como certa a necessidade de mecanismos de captação de recursos no mercado de privado para financiamento dos projetos de infraestrutura. E os fundos de investimento fazem parte desta nova narrativa por serem veículos de captação de valores privados.
Contraditoriamente, até agora os fundos de investimento não tiveram qualquer atenção do legislador para os processos de contratação pública. Ao contrário das micro e pequenas empresas, que detém tratamento legislativo específico para contratações com o Poder Público, por exemplo, por meio de regra própria para margem de preferência[7], a participação dos fundos de investimento nas licitações públicas é regrada exclusivamente pelos editais de cada certame.
E para que os instrumentos convocatórios viabilizem a participação de fundos de investimentos nos certames é preciso entender, logo de largada, as peculiaridades legais destes veículos de investimento, considerando tais características quando da fixação das exigências para cada licitação. Esta é a única forma de interpretar adequadamente a legislação e adequar editais para fomentar a competição advinda dos fundos de investimento.
Acontece que, não raro, problemas de interpretação das normas legais geram exigências editalícias desconexas da realidade funcional dos fundos de investimento, criando confusão e afastando a participação destes fundos nas licitações com o Poder Público. Aqui talvez um dos maiores exemplos de pontos que precisam ser repensados para futuras licitações envolve a solicitação de certidões e/ou declarações para comprovar regularidade dos interessados perante o Fundo Garantidor de Tempo de Serviço (FGTS). E isso porque o recolhimento de valores ao FGTS é obrigação de empregadores. Mas será que os fundos de investimento podem ser considerados empregadores para que lhes seja exigida comprovação de regularidade perante o FGTS no âmbito de licitações públicas?
Este é o problema específico que este artigo buscará analisar. Partimos da hipótese de que os fundos de investimento não são empregadores, tampouco podendo ser equiparados a empregadores para fins de participação em certames licitatórios. Entendemos que a exigência de certidões de regularidade do FGTS perante os fundos de investimento é fruto da cultura garantista da legislação de contratações públicas[8], mas cujos efeitos acabam por privilegiar a burocracia em face da efetiva competição pela proposta mais vantajosa à Administração.
Para avaliar o problema e a hipótese de trabalho, buscaremos (i) demonstrar a origem legal da exigência de regularidade dos licitantes perante o FGTS para as contratações públicas, passando (ii) pela análise da natureza jurídica dos fundos de investimento, bem como (iii) pela demonstração de que este tipo de discussão já encontra respaldo na rotina administrativa das grandes licitações brasileiras. Será adotado método de análise legislativa, com uso da literatura de contratações públicas para apoiar a leitura das normas, acompanhando-se, adicionalmente, da análise empírica de editais e discussões administrativas no circuito licitatório de projetos de infraestrutura, conforme pesquisa realizada nos instrumentos cujo certame foi realizado na B3 (B3 S.A. - Brasil, Bolsa, Balcão)[9].
Passaremos a detalhar os contornos jurídicos desta discussão, buscando demonstrar o porquê parece acertado repensar as exigências editalícias, sendo descabida a exigência de prova de regularidade perante o FGTS para os fundos de investimento participarem de licitações públicas. Em verdade, busca-se demonstrar que essa exigência parece ser burocracia desarrazoada, que precisa ser revisitada nos editais, sob pena de afastar legítimos interessados do mercado.
II – Origem da exigência de regularidade perante o FGTS
Como sabido, o art. 29, inc. IV da Lei nº 8.666/1993 exige a comprovação de regularidade perante a Seguridade Social e perante o FGTS[10]. Dispositivo semelhante está prescrito na Nova Lei de Contratações Públicas, no art. 68, inc. IV para sermos mais exatos[11]. O art. 27, alínea “a” da Lei de criação do FGTS (Lei nº 8.036/1990) segue o mesmo racional, afirmando pela obrigatoriedade de apresentação de certificado de regularidade para fins de habilitação em licitações públicas[12]. A princípio, as exigências legais advêm de comando constitucional, positivado no art. 195, § 3º da Constituição de 1988[13]-[14].
A ideia é clara: só pode contratar com o Poder Público, seja para o que for, quem estiver regular com suas obrigações de seguridade social, entre elas o recolhimento dos valores devidos pelos empregadores ao FGTS, haja vista exigência prescrita em lei para aqueles que são considerados empregadores (ou a eles equiparados pela legislação). Com isso, a legislação infraconstitucional privilegia o recolhimento de valores ao Estado e à coletividade ao exigir, para fins de qualificação fiscal, a comprovação de regularidade perante o FGTS.
Em complemento, a literatura jurídica predica que a habilitação licitatória deve extirpar aqueles interessados que não detêm condição para realizar boas contratações com o Poder Público. Mais que isso, no caso da qualificação fiscal, a habilitação deveria fazer cumprir com princípio de solidariedade social, forçando os interessados a firmar contratos com a Administração a manterem sua regularidade no recolhimento de tributos e, especificamente no nosso caso concreto, em face do recolhimento dos valores devidos ao FGTS.
Para Carlos Ari Sundfeld[15], a fase habilitatória objetiva eliminar licitantes que, em função das suas condições subjetivas, não oferecem segurança quanto ao futuro cumprimento do contrato. Para o autor, não seria impróprio excluir quem não cumprisse com suas obrigações tributárias, pois tal postura deteria o condão de prejudicar a futura execução contratual, além de premiar aqueles que descumprem com obrigação legal.
Acontece que a origem de comprovação da regularidade junto do FGTS parece estar um pouco deslocada desta visão puramente tributária. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já firmou o entendimento de que o FGTS não possui natureza tributária ou previdenciária[16]. Tanto é assim que a Corte vem deixando de conhecer matéria constitucional quando surgem discussões sobre o tema da natureza jurídica do FGTS, por vezes afastando o reconhecimento de repercussão geral da matéria[17].
Este ponto per se já põe em dúvida as tradicionais lições da doutrina que tratavam o FGTS como integrante indubitável da categoria legal de qualificação fiscal, justificando sua exigência para fins licitatórios como algo natural advindo da solidariedade coletiva, intrínseca ao recolhimento de impostos e contribuições ao Estado.
Ademais, desmistificando a imprescindível exigência de prova de regularidade perante o FGTS quando da submissão e análise da habilitação licitatória[18], temos que a legislação ordinária previu exceção na qual os documentos de regularidade fiscal poderiam ser apresentados pelos interessados posteriormente, quando da assinatura dos contratos. É o caso da regulação das micro e pequenas empresas que permitiu, conforme o art. 42 da Lei Complementar 123, de 2006, a flexibilização da demonstração de regularidade fiscal na fase de habilitação, podendo ser suprida antes da contratação. Tudo porque, a base constitucional da regularidade fiscal estaria no art. 195, § 3º da Constituição que, discussões a parte sobre sua aplicação ao FGTS, somente exige a inexistência de débitos perante o sistema de seguridade social como critério para contratação com o Poder Público, e não para participar de licitações.
Não há na Constituição exigência expressa para solicitarem-se documentos na fase de habilitação. Isso quem trouxe foi a legislação ordinária, buscando atender ao comando constitucional. E, nos dizeres de Celso Antonio Bandeira de Mello, reforçando lições de Adílson Dallari[19], a construção de requisitos habilitatórios não pode aportar solicitações de rigor prejudicial à competitividade e à boa contratação pela Administrativa. Vejamos:
Na fase de habilitação a promotora do certame deve se abster de exigências ou rigorismos inúteis. Isto bem se entende à vista das considerações enunciadas em acórdão que, no dizer do eminente Adílson Dallari, já se tornou clássico: “Visa a concorrência pública fazer com que o maior número de licitantes se habilitem para o objetivo de facilitar aos órgãos públicos a obtenção de coisas e serviços mais convenientes a seus interesses. Em razão deste escopo, exigências demasiadas e rigorismos inconsentâneos com a boa exegese da lei devem ser arredados. Não deve haver nos trabalhos nenhum rigorismo e na primeira fase da habilitação deve ser de absoluta singeleza o procedimento licitatório”.
Como pode ser visto da transcrição, é preciso muito cuidado na hora de formular exigências habilitatórias. Como vimos, às vezes os fundamentos da doutrina para certos assuntos não se coadunam completamente com a orientação jurisprudencial ou com a legislação atualizada, atraindo dupla atenção ao tema.
Além disso, como será demonstrado abaixo, a fixação de exigência de regularidade perante o FGTS, como norma infralegal, precisa observar outras legislações de igual hierarquia, considerando principalmente a natureza jurídica de cada interessado em contratar com o Poder Público. Do contrário, poder-se-á alijar a concorrência dos certames ou mesmo imputar ônus desnecessário para determinados agentes. Parece ser o caso das exigências editalícias de regularidade perante o FGTS envolvendo fundos de investimento.
2 – Natureza jurídica dos Fundos de Investimento e sua incompatibilidade com a exigência de habilitação ligada ao FGTS
De início, convém esclarecer que os fundos de investimento não detêm personalidade jurídica, tampouco contratam empregados. Os fundos de investimento contratam prestadores de serviços, por meio dos seus administradores, e, conforme o caso, por meio dos seus gestores e/ou consultores especializados. Adicionalmente, salvo melhor juízo, não há legislação que equipare os fundos de investimento a empregadores para fins da legislação trabalhista e/ou previdênciária. Como então é possível pensar na exigência de comprovação de regularidade perante o FGTS em face dos fundos de investimento?
Para darmos seguimento ao tema, ainda preciso explicar noções dos contornos legais destes fundos. E, nesse sentido, cabe deixar claro que a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019) incluiu no Código Civil dispositivo que esclarece expressamente que os fundos de investimento correspondem a “uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza”. Ou seja, apesar de deterem regulamentos próprios emitidos pela Comissão de Valores Mobiliários (v.g. ICVM nº 578 para os FIPs e a ICVM nº 356 para os FIDCs), a natureza jurídica dos fundos de investimento tende a ser a mesma, qual seja, aquela de um condomínio criado para administrar a comunhão de bens e direitos de determinado grupo de cotistas. São veículos de investimento, sem personalidade jurídica.
Embora tenham inscrição no CNPJ, os fundos de investimento não são pessoas jurídicas. Como adiantado, a representação de cada fundo é normalmente realizada pelo seu administrador, o qual poderá contar com apoio de um gestor, de um consultor especializado e/ou, ainda, de um comitê de investimentos. Em todos os casos, nenhum destes agentes é empregado do fundo. Todos são prestadores de serviços. Em regra, os cotistas não deliberam sobre os investimentos ou sobre questões rotineiras da administração do fundo. Este papel é dos prestadores de serviço de cada fundo, na forma do administrador, gestor etc.
Dito isso, simplesmente não parece ser razoável equiparar os fundos de investimento a “empregadores” para fins licitatórios, exigindo certidões do FGTS em nome dos fundos. Não há sentido lógico, tampouco jurídico. A Lei nº 8.036/1990 aloca tão somente aos “empregadores” a obrigatoriedade de recolhimento dos valores devidos ao FGTS, definindo como “empregador” a “pessoa física ou a pessoa jurídica de direito privado ou de direito público, da administração pública direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, que admitir trabalhadores a seu serviço, bem assim aquele que, regido por legislação especial, encontrar-se nessa condição ou figurar como fornecedor ou tomador de mão-de-obra, independente da responsabilidade solidária e/ou subsidiária a que eventualmente venha obrigar-se”. É dizer, para ser “empregador”, em regra, é preciso que haja uma pessoa, seja jurídica, seja física.
Não por outro motivo que o artigo 2º da CLT é claro ao afirmar que “considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva (...)” equiparando-se ao conceito de empregador “os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados”. Isto é, aqui também o empregador precisa ser uma pessoa física ou jurídica. Pode ser uma empresa holding, sem atividade operacional. Mas precisa ser pessoa jurídica. E nem poderia ser diferente, visto que toda relação de emprego necessariamente precisa apresentar elementos específicos, dentre os quais arrolamos “pessoalidade” e “subordinação”[20].
Se o ente é um fundo de investimentos, representando uma comunhão de bens e direitos, sem personalidade jurídica, como poderá haver qualquer relação de pessoalidade e subordinação entre o fundo e eventuais empregados?
Casos excepcionais são especificamente criados pela legislação trabalhista para regrar situações em que entes despersonalizados figurem como empregadores e arquem com as responsabilidades de tal categoria. É o caso, por exemplo, dos condomínios prediais, conforme regulado pela Lei nº 2.757/1956[21]. Não parece ser o caso dos fundos de investimento cuja atuação não implica na contratação de empregados, mas sim de prestadores de serviços, e cuja legislação não parece prever lei semelhante àquela dos condomínios prediais, deixando, portanto, de equiparar os fundos de investimento a empregadores para fins de obrigações trabalhistas e/ou previdenciárias.
Se os prestadores de serviços contratam empregados para prestarem serviços ao fundo é outra história, que não deveria afetar os fundos tomadores dos serviços[22]. A relação de emprego não comunica aos tomadores de serviços, mas tão somente aos empregadores diretos, principalmente se considerarmos fundos com altas exigências de compliance ESG[23] em suas relações com seus prestadores de serviços.
Não bastassem os argumentos acima, cumpre esgrimar outro elemento aplicável aos fundos de investimento nas contratações de grandes projetos de infraestrutura. Nestes casos, como esclarecido anteriormente, há rotineira obrigação de que o licitante vencedor constitua uma sociedade de propósito específico para servir de concessionária. Os fundos de investimento não podem servir de concessionários. Por força do ordenamento jurídico brasileiro, cabe aos fundos tão somente investir em sociedades, valores mobiliários, ativos financeiros, direitos creditórios etc. A sociedade de propósito específico é a pessoa jurídica que precisa de registro perante o FGTS, por ser empregadora, sendo esta sociedade quem irá contratar com o Poder Público após processado o certame.
Logo, é forçoso reconhecer que qualquer atuação de um fundo de investimento numa licitação de infraestrutura careceria do investimento do fundo numa sociedade de propósito específico, cuja documentação de regularidade fiscal deverá, por força do art. 195, §3º da Constituição, ser demonstrada para assinatura da avença, e não necessariamente na etapa de habilitação. Inexistiria, pois, ausência da comprovação de regularidade fiscal daquele que assina o contrato com o Poder Público, ainda que seu controlador ou acionista não tenha documentação perante o FGTS já que configura fundo de investimento – e não o teria por todos os motivos expostos acima!
Diante do exposto, não parece haver sentido lógico-jurídico em se exigir qualquer certificado de regularidade dos fundos de investimento perante o FGTS como requisito para que estes contratem com a Administração Pública. E nem se venha argumentar que seria o caso, então, de os fundos de investimento apresentarem em licitações respectivas Declaração de Ausência de Fato Gerador para Recolhimento de FGTS. Estas declarações constam do site de perguntas e respostas que a Caixa Econômica Federal desenvolveu para acompanhamento e gestão do FGTS, e são devidas exclusivamente pelos “empregadores” que de fato não recolhem FGTS[24]. São declarações devidas para o caso, por exemplo, de uma empresa holding não operacional. Mas não nos parece ter relação com hipótese envolvendo fundos de investimento. Afinal, os fundos de investimento não são empregadores, haja vista que sequer são pessoas jurídicas ou físicas, tampouco detém legislação que os equipare a empregadores para fins trabalhistas e/ou previdenciários. Por não estarem sujeitos ao recolhimento de valores ao FGTS simplesmente deveriam ser dispensados de apresentar qualquer documentação para comprovar sua regularidade neste campo.
Embora todos os argumentos lançados acima pareçam afastar quaisquer dúvidas sobre o tema, a prática parece demonstrar haver bastante terreno para debater juridicamente a inaplicabilidade da exigência ora analisada para os fundos de investimento. Passaremos sobre isso no próximo tópico.
3 - Das Discussões Práticas do Problema envolvendo o FGTS e os Fundos de Investimento em Contratações Públicas
Na linha daquilo que foi abordado na introdução deste artigo, diversos editais de licitação de projetos de infraestrutura vêm permitindo a participação de fundos de investimento, mas radicalmente em todos os casos há exigência da necessária comprovação de regularidade perante o FGTS como condição de habilitação, inexistindo qualquer tratamento diferenciado para os referidos fundos. Estes agentes (os fundos) são tratados como se empresas fossem para fins da qualificação fiscal nos certames.
E o pior de tudo é que, infelizmente, a Caixa Econômica Federal, gestora do FGTS, vem admitindo o registro de fundos de investimento no cadastro de empregadores do FGTS, o que permite em algumas situações a emissão da certidão de regularidade solicitada pelos Editais. Isso, ao nosso ver, não serve para argumentar pela legalidade ou viabilidade da exigência editalícia. Pelo contrário, é um verdadeiro problema operacional que decorre do desconhecimento de todo o racional exposto neste breve ensaio. Em nossa opinião, esta questão deveria ser repensada ou, no mínimo, posta em debate.
É preciso ficar mais que claro que a exigência de comprovação de regularidade do FGTS em nome do fundo gera custo burocrático, expondo os fundos a riscos de equivocada atribuição judicial de encargos trabalhistas e/ou previdenciários, tal como se empregadores fossem os fundos. Se mantidas as exigências de regularidade perante o FGTS para fundos de investimento, o resultado poderá ser o afastamento de diversos interessados, seja porque não deterão a certidão há tempo para os certames (já que não estavam cadastrados anteriormente pois não estão acostumados com essa exigência), seja porque sequer realizarão a inscrição perante o FGTS com apreensão de que, se o fizerem, irão atrair regime trabalhista equivocado à sua natureza jurídica, incorrendo, adicionalmente, em custos operacionais para envio de relatórios e informações ao gestor do FGTS.
Prova que o tema é controverso foi a discussão administrativa em face habilitação realizada no certame de Parceria Público-Privada da Companhia Riograndense de Saneamento - CORSAN, para outorga dos serviços de esgotamento sanitário em bloco de municípios, com valor estimado de contrato na ordem R$ 9 bilhões de reais[25]. O projeto foi modelado com apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, contando com time de consultores para apoiar a licitação.
Na ocasião, o consórcio vencedor detinha como integrante um fundo de investimentos que não apresentou certidão de regularidade perante o FGTS, gerando questionamentos pelo segundo colocado sobre a necessidade de apresentação do certificado de regularidade. Ouvidas as licitantes, a comissão de licitação manteve a habilitação do consórcio vencedor por entender descabida a referida exigência perante os fundos de investimento.
Os argumentos utilizados na ocasião foram estruturados no sentido de que o fundo de investimento não detinha empregados e consequentemente não poderia ser considerado um empregador, deixando de ter obrigação de cadastro no FGTS. A apresentação de print da tela do cadastro online, acusando que o fundo não estava cadastrado no FGTS, seria suficiente para atestar a regularidade do interessado. Inexistindo cadastro, empregados e a condição de empregador não seria legítimo exigir do fundo a apresentação de documentação perante o FGTS. O fundo já estaria regular, pois inexigível conduta diversa pela legislação. Reconheceu-se, portanto, o excesso de formalismo na exigência de documentação do fundo perante o FGTS, permitindo que a licitante competisse no certame.
Acertada foi a decisão ao nosso ver. Ainda que se entenda pela base constitucional do FGTS no art. 195, §3º da Constituição Federal, não houve inconstitucionalidade na ação administrativa. Foi comprovada a inexistência de débitos perante a seguridade social à época da licitação e, posteriormente, com a constituição da sociedade de propósito específico, precisou-se fazê-lo novamente para assinatura, pela concessionária, do contrato de PPP. Tudo indica não ter havido qualquer prejuízo ao Poder Público contratante, inexistindo qualquer ilegalidade.
Reitera-se que os fundos de investimento detêm peculiaridades jurídicas que precisam ser consideradas nos editais licitatórios. Não é possível se exigir certidões de regularidade perante o FGTS dos fundos de investimento, sob risco de prejudicar seu interesse em participar no certame. Mais que isso, a legislação de contratações públicas não pode ser interpretada de forma a exigir este tipo de documento dos fundos de investimento.
Nos dizeres de Irene Patrícia Nohara[26], “o excesso de formalismo, que é imputado à Lei de Licitações, nem sempre é um problema que decorre diretamente do diploma legislativo, mas de sua equivocada interpretação ou aplicação”. Pois o caso dos fundos de investimento e a exigência de certidão de regularidade perante o FGTS constitui exemplo disso. A leitura sistêmica da legislação deixa muito clara a viabilidade jurídica (verdadeiro comando legal) de não se exigir certidões do FGTS para a participação fundos de investimento em licitações públicas. A cultura burocrática e desconfiada daqueles que lideram os processos licitatórios é que faz tais requerimentos. E isso precisa mudar.
4 – Conclusões
Diante do exposto, a exigência de apresentação de regularidade perante o FGTS deve ser revista nos editais de contratações públicas, modulando o requerimento nos casos em que se admita a participação dos fundos de investimento. Comprovou-se aqui a hipótese do trabalho no sentido de que os fundos de investimento não são empregadores, tampouco podendo ser equiparados a empregadores para fins de participação em certames licitatórios. A exigência comprovação, pelos fundos de investimento, de regularidade perante o FGTS não parece encontrar respaldo no ordenamento jurídico, especulando-se advir da cultura garantista da legislação de contratações públicas, mas cujos efeitos acabam por privilegiar a burocracia em face da efetiva competição pela proposta mais vantajosa à Administração.
A regularidade dos fundos de investimento perante o FGTS pode muito bem ser atestada mediante a apresentação de certificado de regularidade emitido em nome do administrador do fundo (e/ou talvez do seu gestor e/ou outro prestador de serviços), mas não do fundo em si. Cumprindo-se esta proposta atender-se-á a solicitação legal e constitucional de verificar a regularidade do contratado sem bloquear a participação de fundos de investimentos em processos de contratação pública.
Como dito alhures, é hora de repensar cada burocracia criada e exigida nas licitações. O que se espera é a melhor contratação para o Poder Público. Este objetivo somente é alcançado com maior competição e controles legítimos. Complicações com burocracias e formalismos tão somente complicam o processo, sem melhorar nada.
5 – Referências Bibliográficas
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[1] Fruto do Projeto de Lei nº 4253/2020, substitutivo da Câmara dos Deputados aos Projetos de Lei do Senado nº 163, de 1995; e 559, de 2013.
[2] A Lei nº 8.666/1993 não perdeu completamente sua vigência com o advento da Lei nº 14.133/2021, pois esta última norma previu um período de adaptação de 2 (dois) anos, durante o qual a Administração Pública poderá escolher a norma utilizada para processar suas contratações.
[3] Ver, por exemplo, exigência do art. 9º da Lei nº 11.079, de 2004. Sobre a exigência legal vale citar as palavras de Maurício Portugal e Lucas Navarro, que esclarecem “A Lei de PPP inova, nesse aspecto, em relação ao marco legal das concessões comuns. Embora os editais relativos às concessões comuns já viessem exigindo a constituição de SPE como condição para celebração do contrato de concessão comum, tratava-se de uma opção para Administração, que podia incluir ou não a obrigação no edital. Para PPPs, no entanto, a constituição de SPE, antes da celebração do contrato, é uma obrigação independentemente do disposto no edital” (cf. RIBEIRO, Maurício Portugal; PRADO, Lucas Navarro. Comentários à Lei de PPP – Parceria Público-Privada: fundamentos econômico-jurídicos. São Paulo: Ed. Malheiros, 2010, p. 243).
[4] Ver comentários de MARTINS, Antônio Fernando da Fonseca. Habilitação jurídica de fundos de investimento em licitações. In: <https://jus.com.br/artigos/79792/habilitacao-juridica-de-fundos-de-investimento-em-licitacoes>. Acessado em 31.03.2021.
[5] Licitação envolvendo a rodovia do Lote Centro-Oeste Paulista, cujos documentos encontram-se disponíveis no seguinte endereço eletrônico (acessado em 30.03.2021): < http://www.parcerias.sp.gov.br/Parcerias/Projetos/Detalhes/113 >.
[6] Por exemplo, nas PPPs para iluminação pública dos municípios de Porto Alegre/SC, Teresina/PI, Aracaju/SE, Belém/PA, Franco da Rocha/SP, Sapucaia do Sul/SC, Feira de Santana/BA. Também convém destacar a previsão para participação de fundos de investimento nos leilões de saneamento, como aquele patrocinado pela CORSAN e do certame promovido pelo Governo do Estado do Alagoas para a Região Metropolitana de Maceió. Também há menção aos fundos de investimento em todas as últimas licitações de concessão e/ou PPP do Governo do Estado de São Paulo.
[7] Cf. v.g. Lei Complementar nº 147, de 2014.
[8] Sobre da cultura brasileira em contratações públicas, recomendamos ver, por exemplo, ROSILHO, André. O regime diferenciado de contratações/RDC e seu controle. In: Contratações Públicas e Seu Controle. Org. Carlos Ari Sundfeld. São Paulo: Ed. Malheiros, 2013, pp.144-151.
[9] A B3 detém plataforma eletrônica com informações de todos os procedimentos licitatórios realizados no ambiente da bolsa de valores, permitindo levantamento atualizado das práticas de grandes projetos de infraestrutura e concessão de serviços públicos. Maiores informações podem ser acessadas no seguinte endereço eletrônico: <http://www.b3.com.br/pt_br/produtos-e-servicos/negociacao/leiloes/licitacoes-e-alienacoes/operacoes/em-andamento-e-anteriores/>. Acessado 12.04.2021.
[10]Art. 29. A documentação relativa à regularidade fiscal e trabalhista, conforme o caso, consistirá em: (...) IV - prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei.
[11] Art. 68. As habilitações fiscal, social e trabalhista serão aferidas mediante a apresentação de documentação apta a comprovar: (...) IV – a regularidade relativa à Seguridade Social e ao FGTS, que demonstre cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei;
[12] Art. 27. A apresentação do Certificado de Regularidade do FGTS, fornecido na forma do regulamento, é obrigatória nas seguintes situações: a) habilitação e licitação promovida por órgão da Administração Federal, Estadual e Municipal, direta, indireta ou fundacional ou por entidade controlada direta ou indiretamente pela União, Estado e Município;
[13] Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (...) § 3º A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.
[14] O art. 195 somente menciona débitos perante a seguridade social, com intuito fiscal. Entendemos não ser o caso de discutir aqui a constitucionalidade da exigência de regularidade de débitos perante o FGTS, tampouco debater a sua natureza perante o dispositivo constitucional. Basta dizer que a matriz constitucional de regularidade social é normalmente utilizada para abranger as obrigações perante o FGTS, motivo pelo qual a exigência para muitos autores retira validade constitucional do referido art. 195, § 3º da Constituição Federal. Nesse sentido ver, por exemplo, MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2010, pp. 189-192.
[15] Cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Licitação e Contrato Administrativo: de acordo com as leis 8.666/93 e 8.883/94. São Paulo: Ed. Malheiros, 1994, p. 123.
[16] ARE nº 709.212/DF, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 13.11.2014.
[17] Vide STF – RG RE: 1050346, SC – Santa Catarina, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 04.08.2017.
[18] Como defender, por exemplo, JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 16ª ed. São Paulo: Ed. Thomson Reuters, Revista dos Tribunais, 2014.
[19] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2011, p. 601.
[20] Cf. se depreende do caput do art. 3º da CLT.
[21] Art. 2º São considerados representantes dos empregadores nas reclamações ou dissídios movimentos na Justiça do Trabalho os síndicos eleitos entre os condôminos. Art. 3º Os condôminos responderão, proporcionalmente, pelas obrigações previstas nas leis trabalhistas, inclusive as judiciais e extrajudiciais.
[22] Não se discute aqui eventual decisão judicial que integre os fundos de investimento no grupo econômico de pessoas jurídicas empregadoras, pois, novamente, o importante é que os fundos per se não são empregadores, tampouco são equiparados a empregadores pela legislação positiva.
[23] A sigla ESG corresponde a padrões de administração empresarial que considerem medidas para promoção de impactos positivos no meio ambiente, no meio social e na governança empresarial.
[24] In verbis o trecho do site: “O que deve fazer o empregador que não possui empregado com direito ao recolhimento do FGTS para obter o ateste de sua regularidade perante o FGTS? Para competências até dezembro 1998 inclusive, deve apresentar declaração de inexistência de empregados, informando o período para o qual não havia empregados que fizessem jus ao recolhimento do FGTS ou que não havia empregados contratados. Para competências a partir de janeiro 1999 devem ser apresentados os relatórios Declaração de Ausência de Fato Gerador para Recolhimento de FGTS, SEM MOVIMENTO, gerado por meio do SEFIP, código 115, para ausência de fato gerador de FGTS e INSS, ou o relatório Resumo das informações à Previdência Social constantes do arquivo SEFIP, por competência, para a comunicação de ausência de fato gerador de FGTS, com presença de INSS - categorias 11 a 16, código 115, Modalidade 1; os relatórios devem vir acompanhados do Protocolo de transmissão via Conectividade Social”.
[25] Informações da licitação estão disponíveis no seguinte endereço eletrônico: < http://www.editais.corsan.com.br/index.php?op=1&edital=3881>. Acessado em 31.03.2021.
[26] NOHARA, Irene Patrícia; e CÂMARA, Jacintho Arruda. Tratado de Direito Administrativo: licitação e contratos administrativos. 2ª ed. In: Tratado de Direito Administrativo, v. 6, Coord. Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Ed. Thomson Reuters, Revista dos Tribunais, 2019, p. 304.
Advogado de infraestrutura e regulatório do Madrona Advogados. Professor visitante do MBA de Saneamento Ambiental da FESP/SP. Mestrando em Direito Administrativo pela PUC-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GALLACCI, Fernando Bernardi. Discussão sobre requisitos de habilitação fiscal para participação dos Fundos de Investimentos nas Contratações Públicas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 abr 2021, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56377/discusso-sobre-requisitos-de-habilitao-fiscal-para-participao-dos-fundos-de-investimentos-nas-contrataes-pblicas. Acesso em: 22 nov 2024.
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