RESUMO: A literatura jurídica não é uníssona quanto ao regime jurídico dos contratos de concessão: enquanto parte defende o regime estritamente público, outra parte defende o regime híbrido, no qual as cláusulas que versam sobre a prestação do serviço público em si são temas de direito indisponível, e por isso sob a égide do direito público; e as cláusulas econômicas nada mais são do que cláusulas comerciais, e por isso sob a égide do direito privado. Uma das argumentações doutrinárias quanto ao regime híbrido é a possibilidade de inserção de cláusula arbitral em contratos de concessão, vez que, conforme o art. 1º e § 1º da Lei nº 9.307 de 1996[1] (“Lei da Arbitragem”), tal instituto é restrito à matérias relativas à direitos disponíveis. Este artigo buscará demonstrar, mediante vestígios legislativos esparsos, o regime híbrido, vez que, existem, dentro dos contratos de concessão, matérias exclusivas de direitos disponíveis; e, portanto, de direito privado.
Palavras-chave: Regime híbrido dos Contratos de Concessão; cláusula arbitral; cláusulas econômicas; direitos disponíveis e cláusulas de direito privado.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. ORIGEM DAS CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS. 2. A NATUREZA JURÍDICA CONTRATUAL DAS CONCESSÕES. 2.1. CLÁUSULAS ARBITRAIS EM CONTRATOS DE CONCESSÃO: CONSTATAÇÃO DO REGIME HÍBRIDO. 2.2. CLÁUSULAS ECONÔMICAS NOS CONTRATOS DE CONCESSÃO. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
No Brasil, os primeiros registros de concessões de exploração de serviços públicos são datados da segunda metade do século XIX, época em que o Estado precisava acompanhar as mudanças trazidas pela Revolução Industrial, mas não possuía o capital necessário para aporte nas obras de infraestrutura. Dessa época até os dias de hoje, a estrutura mudou diversas vezes: se em um primeiro momento a participação nas concessões era estritamente do capital privado; houve momentos em que se fez necessário uma maior participação do Estado – daí o surgimento das Empresas de Economia Mista e Empresas Públicas – e momentos com o retorno da maior amplitude de participação privada.
Quanto aos contratos de concessão, por muito tempo foram vistos pela literatura e pelo senso comum como meros contratos administrativos, regidos exclusivamente pelo regime de Direito Público, dado a um suposto interesse exclusivamente indisponível. Todavia, essa noção começou a mudar em 2015[2], quando foi alterada a Lei nº 9.307 de 1996 (“Lei da Arbitragem”) para prever a possibilidade de utilização de mecanismos privados de solução de conflitos em contratos com a Administração Pública. Tal ponto trouxe à tona a discussão de que dentro dos contratos administrativos, haveriam matérias exclusivas de direito privado; e que não estariam unicamente submetidas ao regime de direito público.
Em 2019 houve o avanço legislativo mais significativo quanto ao tema dessa discussão: o Decreto nº 10.025 de 2019[3] expressamente definiu quais seriam as matérias passíveis de arbitragem em contratos administrativos; e, portanto, quais seriam as matérias de direito disponível submissas ao regime de Direito Privado. Nesse sentido, este artigo buscará argumentar, em razão das cláusulas arbitrais e cláusulas econômicas, a presença de matérias de Direito Privado nos contratos de concessão, conferindo a eles o regime jurídico híbrido.
1. ORIGEM DAS CONCESSÕES DE SERVIÇOS PÚBLICOS
No Brasil, durante seus primeiros séculos e até meados do final do século XIX, todo e qualquer serviço público era necessariamente estatal, ou seja, prestado diretamente pelo Estado. Essa mudança de paradigma se deu com a chegada das ferrovias: considerando que o Império não possuía os recursos financeiros e técnicos para a construção e operação das malhas ferroviárias, tais atribuições foram concedidas à iniciativa privada, a exemplo da The São Paulo Railway Company Limited (popularmente conhecida como “a inglesa”), que foi construída sob capitalização e engenharia britânica.
Superada a questão da prestação exclusivamente estatal, passa-se à análise da estrutura dos detentores do serviço público: em meados do século XX, a titularidade dos serviços, até então detidas pelo Estado propriamente dito (isto é, a pessoa jurídica de direito público interno) começaram a serem transferidas para as pessoas jurídicas que, embora ainda estatais, foram criadas por leis especificamente para tais finalidades: as autarquias, que a professora Maria Sylvia descreve como “serviço estatal descentralizado, com personalidade de direito público, explícita ou implicitamente reconhecida por lei.”[4]
Assim, com o impulso capitalista experimentado no final do século XIX e início do século XX, bem como as incertezas políticas que pairavam sob a figura do Estado, na pessoa da então recém-criada República, houve o fomento às concessões.
Eugenia Marolla muito bem definiu a complexa operação de concessão:
Por meio da concessão, o Estado transfere a um terceiro a prestação de um serviço público essencial, sem o comprometimento de recursos públicos, porquanto o terceiro presta o serviço em seu próprio nome e por sua conta e risco, por longos prazos de duração, necessários à recuperação dos investimentos efetuados e reembolso dos custos realizados para a prestação do serviço. Ao Estado cabe a tarefa de fiscalizar e controlar a prestação do serviço, inclusive em relação à remuneração cobrada dos usuários.[5]
Marolla[6] ainda esclarece que, considerando as dificuldades encontradas pela iniciativa privada nos anos de 1920 a 1940 (período que compreende duas guerras mundiais), havia à época uma escassez de recursos privados, o que resultou numa necessidade de maior intervenção do Estado, que passou a criar as sociedades de economia mista, nas quais o controle acionário seria público.
Nota-se então que, nas primeiras concessões, o modelo original era a delegação completa da operação do serviço público à iniciativa privada. No segundo momento, considerando as adversidades econômicas, uma delegação mista, vez que, embora prestado por pessoa jurídica de direito privado, possuí o Estado como acionista, na qualidade de garantidor.
José Cretella Júnior exemplifica perfeitamente a mudança da natureza jurídica das concessionárias:
O Estado, numa primeira fase, delega ao empresário concessionário; numa segunda fase, passa à categoria de sócio, menor ou maior; numa terceira fase, é o acionista maior; na fase final, é o proprietário exclusivo do empreendimento – é o empresário público.[7]
A fase marcada pela intervenção estatal nas concessões teve seu auge durante os anos de 1970 e 1980, marcados pela política do “milagre econômico”, período no qual foram realizados grandes investimentos custeados por verba pública, o que resultou em um incalculável endividamento externo; e consequentemente, sucateando a qualidade dos serviços públicos prestados.
Considerando o colapso dos modelos de concessão com aporte do Estado; e somado ao fato de que a abertura ao capital externo experimentada no início dos anos de 1990, os particulares retomaram o interesse na prestação de serviços públicos.
Assim, é possível dizer que esse processo de desestatização se configurou em uma reforma administrativa, vez que o Estado cedeu (novamente) à iniciativa privada a maciça participação na prestação dos serviços públicos, perdendo o status de prestador e assumindo a função de regulador.[8]
A literatura considera essa nova fase como “contratualização[9]”, para reger as relações entre o Estado na figura de regulador e os particulares na figura de prestadores; passando (retornando após décadas) a massiva parte das concessões à titularidade das pessoas jurídicas de direito privado, regidas pelo direito privado; e consequentemente caindo em desuso o modelo híbrido com intervenção estatal.
Essa relação entre o Estado e a iniciativa privada fica melhor delineada na literatura portuguesa de Maria João Estorninho, professora da Universidade de Coimbra:
Trata-se de uma forma de administração nova, “negociada ou contratual”, em que o acordo vem substituir os tradicionais atos unilaterais de autoridade, aparecendo em relação a eles como uma verdadeira alternativa e em que os administrados deixam de ser meros destinatários passivos das decisões unilaterais da Administração Pública[10].
Assim, é possível notar que a absorção das empresas estatais pela iniciativa privada no início dos anos de 1990 é resultado do mesmo viés econômico que pairava nas primeiras concessões, nos idos do século XIX: infraestrutura sem ônus financeiro para o Estado.
Sobre a prestação dos serviços, a Constituição atribui a titularidade ao Estado. Entretanto, prevê a possibilidade de prestação subsidiária pela iniciativa privada. Essa prestação subsidiária pela iniciativa privada está refletida pelo art. 173, que define que a prestação exclusiva pelo Estado apenas é mandatória se necessária aos interesses de segurança nacional. Aos demais casos, o princípio da liberdade de iniciativa na exploração de atividade econômica, nos termos do art. 174.
A titularidade do Estado e a possibilidade de delegação ficam claras na análise literal do art. 175 da Constituição Federal, que dispõe que:
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Parágrafo único. A lei disporá sobre:
I - o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão;
II - os direitos dos usuários;
III - política tarifária;
IV - a obrigação de manter serviço adequado[11].
Portanto, nota-se que a regulamentação da delegação dos serviços públicos deve ser feita na norma de lei ordinária, a qual disciplinará sobre o regime das concessionárias e da prestação dos serviços. A tão aguardada lei demorou 7 longos anos: o regime jurídico específico das concessões apenas foi normatizado com a publicação da Lei nº 8.987, de 1995 (“Lei das Concessões”).
Em seus primeiros artigos, a referida Lei das Concessões define duas distintas modalidades: a concessão de serviço público e a concessão de serviço público precedida de execução e obra pública:
Art. 2º: Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:
[...]
II - concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado;
III - concessão de serviço público precedida da execução de obra pública: a construção, total ou parcial, conservação, reforma, ampliação ou melhoramento de quaisquer obras de interesse público, delegada pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para a sua realização, por sua conta e risco, de forma que o investimento da concessionária seja remunerado e amortizado mediante a exploração do serviço ou da obra por prazo determinado[12];
Passando à análise das teorias quanto à natureza jurídica das concessões, a literatura[13] adota 3 correntes: (i) unilaterais; (ii) bilaterais ou contratuais e (iii) mista.
O pressuposto da teoria unilateral é de que a concessão é estritamente um negócio rígido, regido pelo direito público; e no qual não há que se falar em paridade de armas entre o concessionário e a Administração Pública.
A ideia de concessão como ato unilateral tem origem no Direito Alemão, que nas palavras de Eugenia Marolla:
[...] a concessão é ato unilateral da Administração Pública, que estabelece, com exclusividade, as condições de outorga do serviço, cabendo, ao concessionário, apenas aceita-las. Como o objeto da concessão – prestação de um serviço público – está fora do comércio, constituindo emanação do poder de império, não é permitido ao concessionário alterar qualquer disposição estabelecida pela Administração. Na concessão, as partes estão em condição de desigualdade[14].
Quanto ao trecho em questão, é petrificado na lei[15] que o contrato a ser assinado está estritamente vinculado ao Edital, elaborado pela Administração Pública. Entretanto, há que se fazer uma respeitosa crítica à teoria em questão: em que pese a vinculação ao Edital, que por sua vez carrega as diretrizes estatais, há a participação da iniciativa privada em sua modelagem, seja nas audiências públicas ou mesmo nos Procedimentos de Manifestação de Interesse – PMI. Assim, é possível a constatação de que a afirmação que ao concessionário cabe apenas aceitar as condições é muito abstrata, vez que há o espaço para participação nas fases prévias que moldarão a futura concessão.
A teoria bilateral, por sua vez, parte da premissa de que a relação é exclusivamente contratual, estando coberta estritamente pelo direito privado, tal como em qualquer contrato celebrado entre particulares. Respeitosamente, há que se fazer uma crítica: em que pese grande parte da matéria contratual seja realmente de direito privado, tais como questões tarifárias, por exemplo, a concessão é a prestação de um serviço público, de interesse coletivo, o que configura, quanto às questões pertinentes à sua prestação, a necessidade de submissão ao regime de direito público.
Partindo dessa crítica, chega-se à teoria mista, na qual a relação, assim como na teoria bilateral, é mista. Entretanto, a diferença se dá quanto ao regime, que é híbrido: regido pelo direito privado quanto aos aspectos econômico-financeiro; e regido pelo direito público quanto à prestação do serviço público em si.
Quanto ao instrumento jurídico que molda a relação entre a Administração Pública e o concessionário, necessária nova crítica à teoria unilateral: não se trata de um ato de imposição estatal, vez que os contratos em si também possuem as premissas de interesses privados. Assim ensina Celso Antônio Bandeira de Mello:
A relação jurídica formada por um acordo de vontades, em que as partes obrigam-se reciprocamente a prestações concebidas como contrapostas e de tal sorte que nenhum dos contratantes pode unilateralmente alterar ou extinguir o que resulta da avença.[16]
Assim, estabelecida a premissa de que a relação entre as partes é contratual; e não unilateral, vez que, mesmo se consideramos que os termos finais do que foi levado ao Edital são de responsabilidade da Administração, houve a anuência do concessionário quando de sua participação no processo licitatório, estando, portanto, o Edital com caráter vinculativo tão somente em face daqueles que o anuíram, mediante apresentação de proposta.
Quanto ao regime dos contratos, há ainda de se falar que, além do interesse na prestação do serviço, o contrato possui ainda um viés empresarial, vez que necessita gerar receitas ao concessionário (além de lucro) e economias à Administração, vez que terá o serviço prestado sem a necessidade de comprometimento de verba pública para tal.
Esse regime híbrido, em que pese não relatado expressamente, fica implícito nas palavras de Hely Lopes Meirelles:
Contrato semipúblico é o firmado entre a Administração e particular, pessoa física ou jurídica, com predominância das normas pertinentes do Direito privado, mas com as formalidades previstas para os ajustes administrativos e relativa supremacia do Poder Público.[17]
Considerando a execução continuada e longa duração dos contratos de concessão, faz-se necessária a ponderação de que estes estão sujeitos a fatos imprevisíveis que podem implicar diretamente na prestação dos serviços ou no equilíbrio econômico financeiro. A literatura aponta que uma forma de dirimir tais conflitos que possam surgir é a regulamentação, na competência das agências reguladoras, as quais deverão normatizar e estabelecer os parâmetros tarifários e de qualidade de execução, conforme bem observado por Rafael Véras:
[...] (o contrato de concessão) por se tratar de um contrato de direito privado celebrado no âmbito de uma relação que veicula a prestação de um serviço público, esse dirigismo contratual é qualificado pela incidência de influxos regulatórios. Isto porque a metodologia regulatória possibilita que os interesses potencialmente conflitantes em contratos de longo prazo, possam ser equacionados por intermédio de um devido procedimento participativo[18]
Há de se fazer o devido destaque de quando se fala em regulação, não se trata de intervenção[19]; e sim de padronização, o que não configura uma imposição pura dos interesses estatais.
Nesse sentido, nota-se uma maior flexibilização quanto aos contratos privados sob a égide das agências reguladoras, que cada vez mais tendendo ao espectro do direito privado, vêm abandonado a ideia de unilateralismo, no qual basta apenas a vontade estatal. Assim bem pontua Alexandre Santos Aragão:
[...] tem, portanto, natureza de contrato privado, mas não, evidentemente, de um contrato privado oitocentista, calcado na liberdade da vontade, no princípio da relatividade e no caráter essencialmente privatístico. Há uma limitação administrativa da liberdade de contratar: trata-se, se incumbente e entrante chegarem a um acordo, de um contrato regulamentado (com cláusulas predeterminadas coercitivamente) e autorizado (sujeito à prévia aprovação da Administração Pública)[20].
Assim percebe-se a relativização dos contratos de concessão, conferido a eles características de regências pelo regime de direito privado em temas que não tratem diretamente de sua execução. Tal perspectiva fica clara quando analisada sob o ponto de vista da inclusão do art. 23-A na Lei nº 8.987, de 1995, que passou a prever a possibilidade de inserção de mecanismos privados para resolução de conflitos, como a arbitragem. O ponto em questão é a consumação final de que os contratos de concessão, no que possível, são regidos por normas de direito privado; e não exclusivamente pelo direito público, cabendo um maior espaço às agências reguladoras, que normatizarão os índices de qualidade de execução e tarifas, responsáveis pela composição do equilíbrio econômico-financeiro.
Conforme exposto no tópico anterior, a simples possibilidade de inserção de cláusulas arbitrais em contratos de concessão (e demais contratos administrativos, a exemplo do art. 151 da Lei nº 14.133 de 2021 – Nova Lei de Licitações) demonstra configurado o regime híbrido, vez que a arbitragem é restrita a temas de direito privado.
Especificamente quanto à arbitragem, o referido instituto possui o sentido de “meio privado para solução de conflitos”. Dizemos que é um meio privado pois dispensa a figura estatal, ou seja, no litígio arbitral não há a figura do Poder Judiciário (salvo em necessidade de execução da sentença arbitral, vez que a coercitividade é restrita ao Judiciário).
Nesse sentido, a arbitragem se dá mediante uma cláusula arbitral, que na verdade é um acordo de vontades entre as partes, na qual estabelecem que eventual litígio será demandado perante uma Câmara Arbitral; e não perante o Poder Judiciário. Portanto, trata-se, novamente, de um tema de direito privado, de matéria contratualista:
A arbitragem possui um caráter privatista tanto no que se refere a sua origem, quanto a respeito da qualidade dos árbitros. Assinala que não são juízes, mas particulares que assumem a qualidade de funcionário público e que não administram a justiça em nome do Estado, senão pela vontade das partes. Baseia-se no fato de que no que tange a direitos disponíveis não pode o Estado privá-las da faculdade de escolher o método para resolvê-las. Afinal, os árbitros obtêm suas faculdades de vontade das partes, e não da lei, pois função jurisdicional é uma das formas em que se exterioriza a soberania do Estado, e sendo este poder um atributo indelegável, o legislador não poderia conceder esta função a um particular, pois o mesmo não possui as características próprias de um agente público.[21]
Especificamente quanto aos contratos com a Administração Pública, a menção expressa à possibilidade de inserção de cláusula arbitral apenas veio em 2015, quase 20 anos após a publicação de Lei de Arbitragem: conforme disposição da Lei nº 13.129 de 2015, foi inserido na Lei nº 9.307 de 1996 o §1º ao art. 1º, conferindo à administração pública a faculdade de se valer da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos disponíveis. Portanto, nota-se mais um argumento à defesa do regime híbrido: a simples presença de matérias de direito disponível derrubam a ideia de que todo e qualquer negócio jurídico tendo a presença da Administração Pública confere à matéria o caráter de direito indisponível.
Outra alteração legislativa que merece expresso destaque é o Decreto nº 10.025 de 2019, que regulamenta o procedimento arbitral em demandas dos setores portuário e de transporte rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário, nas quais haja a presença da Administração Pública Federal (como por exemplo em demandas oriundas de contratos de concessão federal de referidos setores).
O necessário destaque é que o referido decreto não apenas menciona que a arbitragem apenas abrangerá temas disponíveis; ele elenca taxativamente em seu art. 2º quais são eles: (i) recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos; (ii) cálculo de indenizações decorrentes de extinção ou de transferência do contrato de parceria e (iii) inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes, incluídas a incidência das suas penalidades e o seu cálculo. Portanto, tem-se pela primeira vez um dispositivo legislativo elencando quais as matérias regidas pelo Direito Privado atinentes à contratos nos quais a Administração Pública seja parte, destacando assim, em que pese sem menção taxativa, o regime híbrido dos contratos de concessão.
Ponto importante do referido decreto foi estabelecer, em seu art. 2º, inciso I, a recomposição do reequilíbrio econômico financeiro como matéria de direito disponível, portanto, de Direito Privado. De tal modo, ao regime de Direito Público resta apenas a prestação do serviço público propriamente dito, vez que as cláusulas econômicas podem (e devem) ser interpretadas sob o ponto do Direito Privado.
Conforme previsto no art. 2º, inciso I, do Decreto nº 10.025 de 2019, taxativamente, as cláusulas econômicas dos contratos dos setores portuário e de transporte rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário são matérias disponíveis, e portanto, de Direito Privado. Entretanto, podemos estender por analogia o referido regime à todas as cláusulas econômicas dos contratos regidos pela Lei nº 8.987 de 1995. Assim, passa-se à análise das cláusulas econômicas e a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro sob a perspectiva do Direito Privado.
Caso fosse possível sua localização em um verbete de dicionário, a expressão “equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão” carregaria a conotação de reestabelecimento[22] da equivalência entre encargos e vantagens que haviam sido inicialmente acordados, no caso de rompimento.
Em sua obra “Concessões de Serviço Público: a equação econômico-financeira dos contratos”, Eugênia Marolla conceitua que nas concessões comuns, quando o desequilíbrio se der por conta de fato do príncipe, caberá à Administração recompor o equilíbrio:
[...] nas concessões comuns, o risco ordinário do empreendimento corre por conta do concessionário e a sua remuneração advém da exploração do serviço, o que faz com que alguns ônus sejam assumidos exclusivamente pelo particular, quando se tratar de risco ordinário do negócio (por exemplo, elevação do número de indenizações por responsabilidade objetiva). De outro lado, os fatos imprevisíveis e as alterações unilaterais impostas pela Administração Pública para atendimento do interesse público devem ser, necessariamente, compensadas pelo Estado. O equilíbrio econômico-financeiro nas concessões comuns depende, assim, da espécie de álea a qual o evento se enquadra[23].
Quando se fala em compensação pelo Estado, logicamente não se trata deste assumir referido prejuízo a título de subsídio; e sim de uma compensação ante o ônus criado, a exemplo de uma diminuição proporcional de obrigações, para que as contas se equilibrem. Nesse sentido, nota-se que a melhor palavra que define o instituto do equilíbrio econômico-financeiro é “flexibilidade[24]”, sendo ineficiente (e inviável) sua fixação em uma fórmula contratual fixa e imutável.
Assim, tem-se que a recomposição do equilíbrio-econômico é pautada pela flexibilidade. A flexibilidade, por sua vez, configura-se como direito disponível. Por tal razão, resta demonstrada a disponibilidade das cláusulas econômicas dos contratos de concessão, incluindo sua recomposição em caso de quebra.
Por muito tempo, pensou-se que a simples presença da Administração Pública em um contrato conferia a ele o regime de Direito Público, razão pela qual a literatura não era consolidada quanto ao regime jurídico de contratos administrativos: públicos ou híbridos.
Em que pese ainda não exista um entendimento majoritário, ao longo dos anos foram experimentadas diversas alterações legislativas que nos permitem argumentar que os contratos de concessão são híbridos, vez que, cláusulas relacionadas à prestação do serviço em si são de direito público; e os demais pontos são disponíveis; e portanto, de direito privado. Tal argumentação se faz possível em decorrência da (i) Lei nº 13.129 de 2015, que alterou a Lei de Arbitragem, possibilitando a inserção de cláusula arbitral em contratos administrativos e (ii) Decreto nº 10.025 de 2019, que exemplificou taxativamente quais as matérias de direito disponível no âmbito de contratos administrativos.
Nesse sentido, embora a ausência de um normativo que exemplifique taxativamente que “contratos de concessão serão regidos pelos regimes de direito público e privado”, a simples possibilidade de (i) arbitragem e (ii) flexibilidade das cláusulas econômicas conferem à elas a natureza de disponível. Assim, a presença de cláusulas de direito disponível elimina a regência delas pelo regime de Direito Público. Desse modo, resta caracterizado o regime híbrido dos contratos de concessão.
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[1] BRASIL. Lei nº 9.307 de 1996. Art. 1º, §1º. Brasília, DF.
[2] BRASIL. Lei nº 13.129 de 2015. Brasília, DF.
[3] BRASIL. Decreto nº 10.025 de 2019. Art. 2º. Brasília, DF.
[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22ed, São Paulo: Atlas, 2009, p.427
[5] MAROLLA, Eugenia Cristina Cleto. Concessões de serviço público: a equação econômico financeira dos contratos. 1ed, São Paulo: Verbatim, 2011, p. 15-16
[6] MAROLLA, Eugenia Cristina Cleto. Ibidem, p. 17
[7] CRETELLA JUNIOR, José. Regime jurídico das empresas públicas. Revista Forense, v. 237, nº 823-5, 1972, p.5-13
[8] GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. A experiência brasileira nas concessões de serviço público. In: SUNDFELD, Carlos Ari (Coord.) Parcerias público-privadas. São Paulo: Malheiros, 2007, p.182-213.
[9] MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. 2ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.213.
[10] ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado. Coimbra, Portugal: Almedina, 1996, p.4
[11] BRASIL. Constituição Federal (1988). Brasília, DF. Artigo 175.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil _03/constituicao/constituicao.htm> acesso em 04 de out de 2020.
[12] BRASIL. Lei nº 8.987 de 1995, art. 2º. Brasília, DF.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987 cons.htm> acesso em 05 de set de 2020
[13] MAROLLA, Eugenia Cristina Cleto. Op cit, p. 27
[14] MAROLLA, Eugenia Cristina Cleto. Op cit, p. 27
[15] Conforme o art. 4º da Lei nº 8.987 de 1995, que dispõe que a concessão de serviço público será formalizada mediante contrato, que deverá observar os termos do edital de licitação. BRASIL. Lei nº 8.987 de 1995, art. 4º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm acesso em 01 de set de 2020.
[16] BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 609.
[17] MEIRELLES, Hely Lopes. Licitação e Contrato Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1991, 10ed., p. 156
[18] DE FREITAS. Rafael Véras. Os contratos privados celebrados por concessionários de serviços públicos e a sua regulação. Revista Interesse Público – IP, ano 19, n.101. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 225
[19] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Finalidades e fundamentos da moderna regulação econômica. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 9, n. 100, jun. 2009
[20] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos. Rio de janeiro: Forense, 2008, p. 472-473.
[21] MORAIS, José Luiz Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e Arbitragem – Alternativas à Jurisdição!. 3ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2012. p. 111.
[22] MAROLLA, Eugenia Cristina Cleto. Op cit., p. 39
[23] MAROLLA, Eugenia Cristina Cleto. Op cit., p. 44
[24] CÂMARA, Jacintho de Arruda. Tarifa nas concessões. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 171.
Advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP), com atuação na área de Direito Público, especialmente em projetos de desestatização e consultorias regulatórias. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DELSIN, Leonardo. O regime jurídico híbrido dos contratos de concessão: possibilidade de inserção de cláusulas arbitrais e cláusulas econômicas flexíveis como argumento de possibilidade de regência pelo Direito Privado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 maio 2021, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56520/o-regime-jurdico-hbrido-dos-contratos-de-concesso-possibilidade-de-insero-de-clusulas-arbitrais-e-clusulas-econmicas-flexveis-como-argumento-de-possibilidade-de-regncia-pelo-direito-privado. Acesso em: 22 nov 2024.
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