RESUMO: A pesquisa objetiva destrinchar inteligentemente sobre a função social e ambiental da propriedade. Metodologicamente utilizou-se a pesquisa bibliográfica, permitindo que reunamos livros e artigos que discutem especificamente sobre a temática. A pesquisa é justificadamente relevante tanto para os operadores do Direito quanto para a sociedade por debater um tema em que é fundamental que haja o entendimento de que forma devemos utilizar a propriedade, para que não haja a possibilidade de ser perder, sendo necessário que haja uma alusão os ditames da lei. Dividiu-se a pesquisa em 05 itens, quais sejam, evolução histórica da propriedade; evolução dos direitos e sua influência sobre a propriedade; a função social da propriedade; e, a efetividade da função social e ambiental da propriedade.
Palavras-chave: Função Social; Ambiental; Propriedade.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO - 2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROPRIEDADE - 3. A EVOLUÇÃO DO DIREITO E SUA INFLUÊNCIA SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE - 4. A LEITURA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE A PARTIR DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO - 5. A EFETIVIDADE DA FUNÇÃO SOCIAL E AMBIENTAL DA PROPRIEDADE - 6. CONCLUSÃO - 7. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. INTRODUÇÃO
A propriedade configura-se como o instituto basilar do Direito, é, pois, objeto de discussões e construções teóricas em face do estabelecimento de uma ordem jurídica que paulatinamente vem sendo construída pela evolução contínua dos valores, principalmente os sociais.
Por isso que o direito de propriedade de cunho meramente individualista adquire uma função social e ambiental, atribuindo-se ao proprietário, também, o poder-dever de exercer seu direito, plenamente assegurado, em consonância com os interesses da sociedade e os princípios de proteção ao meio ambiente.
Não podemos perder de vista que a Lei Maior garante a propriedade, dá-lhe proteção, evidenciando que ela é assegurada por si mesma. Mas ela, com a noção de função social, compatibiliza o exercício do direito com a destinação social dos bens.
Em virtude de as relações sociais modificarem-se continuamente pela evolução, ou melhor, pela eleição de valores, não há, igualmente, um conceito definitivo de função social, porque ele evolui continuamente, a saída foi implementar, através da Constituição Federal, as diretrizes básicas, que não podem deixar de ser obedecidas pelos comandos legais que a ela se subordinam. Pode-se dizer, inclusive, que o conceito permanece continuamente em atualização, haja vista não ser o Direito estático, mas sim, ciência que acompanha os fatos sociais e os regulamenta.
Colocamos em questão a busca da resolução do aparente conflito gerado entre o direito individual: propriedade; e o difuso: meio ambiente, na busca pelo atendimento de todos os interesses, não deixando de considerar que a ponderação é a premissa básica para a análise do caso concreto.
Entretanto, a intervenção se faz no exercício do direito, e não no direito em si. Respeita-se a propriedade privada, ela é garantida, mas o seu exercício deve estar voltado para o bem comum.
Faz-se necessário uma nova interpretação dos institutos jurídicos ainda marcados pelo cunho individualista frente aos novos direitos de ordem ambiental, fixando-se critérios específicos de realização da justiça.
Neste contexto, os objetivos deste estudo são: proceder ao estudo da proteção legal e do entendimento teórico do direito de propriedade; analisar a função social e ambiental da propriedade, sua positivação, efetivação e incorporação ao ordenamento jurídico; e estudar a efetividade do cumprimento e atendimento desta função sócio-ambiental voltada para a coletividade, deslocando o prisma individual, sopesando o conflito através da aplicação de princípios ao caso concreto.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROPRIEDADE
A configuração da propriedade1 passa por profundas modificações ao longo de sua evolução histórica, representada pelo entendimento deste instituto nas regras jurídicas do Direito Romano, do Direito Medieval, do Direito Moderno, e do Direito Contemporâneo, este marcado por um novo sistema constitucional voltado à realização da justiça social, aquele – Direito Moderno – caracterizado por transformações decorrentes da Revolução Francesa.
Há uma relação intrínseca entre a evolução política do Estado e seus valores determinantes e o modo de regulamentação da propriedade. Sendo assim, analisaremos o desenvolvimento deste conceito em nível de Estado brasileiro.
No Brasil o sistema de sesmaria, implantado por força da colonização portuguesa, foi o responsável pela aquisição “formal” da propriedade no período colonial, e arraigou em nosso povo, desde aqueles tempos e que se conserva até hoje, a ideia de aquisição de propriedade por ocupação, posto que existia grande vazio legislativo à época mesmo em locais de grande interesse exploratório dos recursos naturais.
No período das Ordenações Afonsinas é que surgem as sesmarias, instituto criado pela Coroa Portuguesa para ocupar o território que em sua imensa parte, encontrava-se desocupado e propiciava facilmente a ocupação por outros países.
A falta de gêneros alimentícios traduz-se como gravíssimo problema e reclama a criação das sesmarias como método de aproveitamento total do solo. O sistema das sesmarias determinava a todos que lavrassem e semeassem suas terras, sob pena de o dono perdê-la à pessoa certa para fazê-lo, possibilitando, assim, o cultivo de toda a sua extensão. Para tanto, ocorria a divisão e posterior repartição das terras improdutivas e abandonadas, derivando renda à Coroa da sexta parte dos frutos.
Este, portanto, é o quadro histórico ensejador da necessidade expansionista de Portugal, cujas repercussões alcançaram também o Brasil, além de outras colônias, como Índia e África. Pela linha que a História seguiu, pode-se arriscar afirmar que a preocupação era de cunho meramente econômico.
Sendo assim, os habitantes foram ocupando as terras abandonadas e, seguindo o sistema das sesmarias, tornando-as devolutas e produtivas.
O tratado assinado entre Portugal e Espanha em 1750 dizia em seu preâmbulo “cada parte há de ficar com o que atualmente possui”, ou seja, até a entrada em vigor da Lei 601 – em 1850 – a ocupação constituiu forma originária de aquisição do domínio das terras devolutas.
Com a independência do Brasil, o sistema de sesmarias já se encontrava abolido das leis portuguesas, pois em 1822 foram extintas tais legislações e o Brasil ficou sem uma legislação referente a terras públicas, no entanto, sem uma legislação específica sobre o assunto, sem os embaraços da burocracia, sem o perigo das proteções escandalosas, adentramos uma nova fase.
Até então, as terras eram atribuídas aos posseiros pelo Estado, a partir daí, inicia-se um novo ciclo de colonização, o qual denominado pelos doutrinadores de extralegal, já que desprovido de qualquer regulamento jurídico, ainda que rudimentar. Criou-se, então, um costume que, analisado hoje, ainda persiste, obviamente que dotado de características próprias da época, mas, na sua essência, conserva a ideia de posse privatista.
Com o sistema de ocupação nenhuma solicitação se fazia às autoridades administrativas. Assim, de 1822 a 1850 vivemos um regime quase caótico, imperando, então, o princípio que reconhecia valor à posse, ou ocupação.
A humilde posse com cultura efetiva se impregnou do espírito latifundiário, que a legislação das sesmarias difundiu e fomentou. Isto porque após 1822 – data da abolição das sesmarias – as posses passaram a abranger fazendas inteiras e léguas a fio: a tendência para a grande propriedade já está arraigada definitivamente na psicologia da nossa gente (GIANNINNI, 2007).
Assim, a propriedade privada no Brasil teve origem nas cartas de sesmarias e no uti possidetis, na posse real e efetiva, mansa e pacífica, independentemente de qualquer outro título. Esta posse foi fomentada, sobretudo, pelas bandeiras, expedições patrocinadas pelos particulares que em muito ampliaram os limites territoriais do Brasil, indo além do Tratado de Tordesilhas
Assim, se nos dermos conta de que a função precípua do Brasil era apenas fornecer gêneros tropicais a Portugal e outros países, facilmente concluímos porque a nossa consciência foi fortemente influenciada pela estrutura colonial. Em sendo o Brasil apenas uma grande propriedade latifundiária de recursos naturais, naturalmente que os que aqui nasceram, sob a influência desta consciência, viam a terra como apenas sua. O mesmo ocorreu com as normas ambientais ditadas pela Coroa Portuguesa, sempre com o intuito de resguardar seus interesses financeiros. Então, desde o primórdio, o Brasil já possuía esta destinação que, após sua independência, permaneceu introjetada e foi transmitida a cada geração. Se poderia arriscar afirmar, inclusive, que o motivo econômico foi o alavancador da independência, pois se tínhamos tanto potencial econômico por que o desperdiçar nas mãos de outros?
Este então foi o início do consagrado direito de propriedade que, ao longo dos tempos, foi ganhando diferentes contornos a medida em que o momento histórico se modificava. Sua tradicional concepção egoísta transformou-se em concepção altruísta (GIANNINNI, 2007).
Em outras palavras, conforme veremos no desenvolver do presente trabalho, verificou-se uma mudança de referencial: o direito de propriedade deixou de ser medido exclusivamente do ponto de vista do proprietário para ser delineado conforme interesses da coletividade.
Esse novo enfoque decorreu da necessidade de garantir interesses sociais relevantes que se tornaram incompatíveis com aquela concepção absoluta de propriedade.
A medida em que a população aumentava expressivamente, a industrialização, o êxodo rural e a urbanização resultaram em problemas inéditos e graves, impondo o nascimento de novos paradigmas para o Direito, sobretudo a proteção ao meio ambiente natural e artificial, que exigiu a conceituação do meio ambiente e o colocou como centro de todo o sistema biológico do planeta.
3. A EVOLUÇÃO DO DIREITO E SUA INFLUÊNCIA SOBRE O DIREITO DE PROPRIEDADE
A previsão formal e a materialidade constitucional das normas de proteção ambiental no Estado Democrático de Direito, representa um momento histórico ímpar, elevando o direito ambiental ao nível de direito fundamental, trazendo normas de proteção aos interesses transindividuais, de terceira geração, protegendo interesses difusos em sua carta constitutiva, garantindo direitos e limitando poderes.
O texto constitucional adota diversos princípios na proteção ao direito ambiental, voltados para a proteção da vida, para os seres humanos desta e das futuras gerações. Esses princípios podem ser implícitos e explícitos: os explícitos são aqueles que estão escritos na Constituição Federal; e os implícitos são aqueles que decorrem do sistema constitucional, mesmo não estando formalizados em seu texto. Estes estão fundados nos princípios éticos norteadores da relação entre os homens e destes com a natureza. Encontram sua fonte constitucional no preâmbulo e no art. 1º da Constituição Federal.
Esta análise do ordenamento jurídico brasileiro visa destacar as duas concepções da propriedade passíveis de serem identificadas em seu âmbito: a propriedade de cunho individualista, prevista pelo antigo Código Civil de 1916 e a transformação de tal instituto no novo Código Civil, visando adequação aos preceitos constitucionais; e a propriedade/função social e ambiental, caracterizada na Constituição Federal, bem como a relação destas concepções com o processo evolutivo dos direitos.
De acordo com Derani (2017) :
A norma jurídica, inclusive a norma constitucional, não é simplesmente uma positivação, o estabelecimento de uma prescrição, ela é ao mesmo tempo hipótese e tentativa de solucionar um problema. Pode parecer relativista, mas, na verdade, é a norma mais que um instrumento mediador das atividades sociais, ela é um meio para o alcance de finalidades sociais.
Entendendo que os direitos do homem são históricos, ou seja, produtos de um determinado contexto histórico e social, surgido como resposta a novas exigências e necessidades, pode-se apontar a ocorrência de uma “(...) estreita conexão existente entre mudança social e nascimento de novos direitos (...)” (BOBBIO, 2012).
Para Bobbio (2012)
“(...) os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, a todos de uma vez e nem de uma vez por todas”.
Assim, as mudanças sociais e políticas, as necessidades e a incorporação de novos valores em consonância com estas, acarretam uma evolução dos direitos através do surgimento de novos direitos e da reformulação dos direitos já existentes. Há, portanto, uma necessária adequação dos direitos tradicionais à nova ordem jurídica que se impõe através da positivação de direitos antes inexistentes. Bobbio (2009) refere-se a direitos renovados ao expor que:
(...) é necessário ter em mente que os novos direitos não são apenas jogados no ordenamento, à medida que vão sendo positivados. Para o bem da logicidade do sistema, há um rearranjo do ordenamento jurídico. Os direitos preexistentes são adaptados aos novos anseios da sociedade objetos de positivação. Por isso, deve-se falar tanto sobre novos direitos quanto sobre direitos renovados.
Essa evolução dos direitos pode ser compreendida em três etapas ou gerações, que se sucedem e se sobrepõem, transparecendo, assim, a coesão do sistema e a positivação dos direitos por elas representados. Tem-se os direitos de primeira geração onde há a exaltação da liberdade e autonomia do indivíduo em detrimento do Estado, restringindo sua atuação e interferência; os direitos de segunda geração, chamados direitos sociais, exigem uma atitude positiva do Estado, ou seja, permite-se sua interferência em prol do indivíduo; e os direitos de terceira geração, através dos quais se positivaram os direitos difusos e coletivos, marcados pela solidariedade e noção de poder-dever. Estes direitos impõem ao Estado, e também aos indivíduos, o respeito a interesses individuais, coletivos e difusos, à fruição de bens insuscetíveis de apropriação individual.
Justamente porque entramos em uma nova fase, pois o art. 225 da Constituição Federal de 1988 recepcionou os direitos de terceira geração acerca dos valores ambientais, pode-se arriscar afirmar que hoje a propriedade privada é um microssistema abarcado pelo macrosistema formado pelos direitos de terceira geração, o que significa que os direitos de primeira geração que iniciaram a revolução da concepção absolutista do Estado sofrem agora limitação em face da assoberbada importância que assumiu nesta sociedade excessivamente privatista e que não admite, de forma alguma, sofrer intervenção estatal, ainda que seja para garantir o direito que teoricamente todos se orgulham de ter protegido por seu ordenamento jurídico.
Inicia-se uma nova era de intervenção estatal, no entanto, tal intervenção se dá na medida em que o Estado interfere para proteger a coletividade detentora de direitos coletivos e difusamente distribuídos, independente de classe social, e não apenas para beneficiar a si próprio
A sociedade transita entre os extremos tentando chegar ao ponto de equilíbrio: a propriedade afirmada nos primórdios dos tempos serviu para libertar a sociedade do Estado agressivamente interventor que foi, aos poucos e à custa de revoluções sangrentas, relegado a segundo plano. Esta mesma propriedade que libertou, hoje escraviza, pois segmenta a sociedade através de padrões sociais, pois os ricos delegam aos pobres a tarefa de bem usufruírem o ambiente e de atenderem à função socioambiental da propriedade.
Surge, para nós, a necessidade de inversão dos papéis, ainda que muitos relutem, pois o direito transcende o garantismo e invade o campo do político: não basta imprimir-lhe status de direito, é necessário afirmá-lo perante todo um ordenamento jurídico e uma sociedade que se recusa a transportá-lo do plano jurídico para o fático.
A função ambiental é um “múnus ambiental”, expressão cunhada pelo mestre A. H. Benjamin e Vasconcelos, um poder-dever que exige do Estado uma atuação positiva, ao mesmo tempo em que do homem também. Não se pode seccionar os direitos: na concepção atual, os direitos de terceira geração devem ser vistos integrados aos de primeira e segunda gerações. O homem no afã de mais uma vez aproveitar a natureza como um utilitário que afirma lhe pertencer transfere ao Estado toda a responsabilidade de sua conservação.
Na medida em que o homem espera da propriedade um retorno meramente econômico, o cumprimento da função ambiental perde o sentido, uma vez que se destina a agregar outros valores não capitalistas, mas sim de preservação do equilíbrio ecológico e manutenção de nichos ecológicos, além do bem-estar psíquico, moral, espiritual e físico das populações.
No âmbito constitucional a propriedade é trabalhada em duas acepções: como direito fundamental (art. 5º, incisos XXII e XXIII) e como princípio da ordem econômica. A partir daí, o direito de propriedade ganha uma qualificação pelo cunho social, e só merecerá proteção constitucional a propriedade que efetivamente cumprir com sua função social.
Cavedon (2013) atribui um novo conceito ao direito de propriedade, já que seu uso está condicionado ao bem-estar social, denominando-a ‘propriedade qualificada’. O direito de propriedade não será mitigado, antes pelo contrário: sua concepção é alargada diante de uma nova era de direitos. Na verdade, os direitos difusos e coletivos, dentre os quais o direito ao meio ambiente equilibrado e saudável, são a resposta a novas necessidades, são direitos novos, enquanto o direito de propriedade é um direito renovado.
Esta nova concepção, com bem analisa Álvaro Luiz Valery Mirra (2013):
“(...) A função social e ambiental não constituiu um simples limite ao exercício de direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício de seu direito, fazer tudo que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao proprietário comportamentos positivos, no exercício de seu direito, para que a sua propriedade concretamente se adecúe à preservação do meio ambiente”.
O direito de propriedade – individual e absoluto – renova-se ao agregar os valores sociais, os quais exigiram o cumprimento de sua função social, e, posteriormente, ao incorporar os valores ambientais.
4. A LEITURA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE A PARTIR DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Evoluiu a legislação brasileira no sentido de positivar tais diretrizes, porém, a leitura dos dispositivos legais não esclarece a compreensão do que seja a função social da propriedade, mas, ao menos, facilita tal a percepção do conjunto de elementos formadores do conceito.
É claro que a expressão “função social” pairando no topo do ordenamento jurídico, já que admitida pela norma hierarquicamente superior, tem, isoladamente considerada, um significado e um efeito jurídico próprios (MELO, 2009).
A palavra “função” traz como essência os deveres atribuídos ao proprietário. “Existe função”, segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, “quando alguém está investido no dever de satisfazer dadas finalidades em prol do interesse do outrem” (MELLO, 2010).
Sendo assim, ao direito do proprietário de usar, gozar e dispor do bem, que nada mais é do que um poder, está agregada uma finalidade, introduzindo neste instituto de direito privado um elemento próprio do direito público.
Ao vocábulo “social” damos a acepção de “que interessa a sociedade”. (FERREIRA, 2008). Todavia, a palavra sociedade implica dificuldade de conceituação, daí o indispensável apoio no direito positivo.
A qualificação “social” só merece aqueles interesses, valores ou bens que a lei elegeu como dignos de especial proteção pelo Estado por sua relevância, e senão para todo o conjunto da população, para a grande maioria.
A ideia de função social da propriedade, nessa ordem de raciocínio, emerge como o dever do proprietário de atender à finalidade relacionada a interesses coletivos protegidos por hipóteses legais.
Sendo assim, pode-se vislumbrar uma regra com conteúdo negativo, próprio do poder de polícia, no sentido de que o proprietário ao usar, gozar e dispor de seu bem deve respeitar forma benéfica para a coletividade.
Celso Antônio Bandeira de Mello (2010) aponta o princípio da função social da propriedade como consequência da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Em suas palavras:
O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. Assim, não se radica em dispositivo específico algum da Constituição, ainda que inúmeros aludam ou impliquem manifestações concretas dele, como, por exemplo, os princípios da função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente (art. 170, III, V e VI), ou outros tantos. Afinal, o princípio em causa é um pressuposto lógico do convívio social.
Sendo assim, sob a temática do Código Civil, o uso nocivo da propriedade ganha uma ampliação do que há muito inspira o direito de vizinhança: a nocividade passa a ser medida não apenas do ponto de vista dos vizinhos, mas sim da coletividade, e impõe muito mais do que uma atitude a ser tomada, antes disso, uma privação de uma atitude nociva.
5. A EFETIVIDADE DA FUNÇÃO SOCIAL E AMBIENTAL DA PROPRIEDADE
Ensina Hering (1987) que “o fim do direito é a paz, o meio de atingi-lo a luta. Enquanto o direito tiver de contar com as agressões partidas dos arraiais da injustiça – e isso acontecerá enquanto o mundo for mundo – não poderá prescindir da luta”. Essa luta pode ser compreendida como a busca incessante pela resolução dos problemas vividos em sociedade, que, por natureza, pressupõe o conflito e procura, mas nem sempre encontra, no Direito as respostas
No campo do Direito Ambiental, inobstante haja inúmeras questões conflituosas em outros ramos desta ciência, há o embate primordial: interesse privado e interesse público, ou melhor, a supremacia do bem privado em detrimento do bem de uso comum do povo, demonstrando, claramente, a contraposição de concepções e interesses em nome da hegemonia reinante na coletividade.
Sendo assim, não pode haver decisões estáticas ou rígidas, até porque a Ciência do Direito não evoluiria acaso isso ocorresse. Capra (2015) aponta a necessidade de se estabelecer o equilíbrio para a resolução dos conflitos, assim dispondo:
Em toda comunidade haverá, invariavelmente, contradições e conflitos, que não podem ser resolvidos em favor de um ou do outro lado. Por exemplo, a comunidade precisará de estabilidade e de mudança, de ordem e de liberdade, de tradição e de inovação. Esses conflitos inevitáveis são muito mais bem resolvidos estabelecendo-se um equilíbrio dinâmico, em vez de sê-lo por meio de decisões rígidas.
O Direito, pois, apresenta-se como grande árbitro, já que não apresenta de plano a solução imediata das discussões que se apresentam, verdadeiro mediador de interesses que deverá, de forma igualitária, considerar todas as questões inerentes às partes, buscando a sua harmonização.
As esferas pública e privada estão em permanente tensão, reproduzida na relação propriedade privada e meio ambiente. Assim, de um lado está o proprietário imbuído pela aferição maior possível do conteúdo econômico da propriedade; de outro lado está a função socioambiental que deve ser cumprida no exercício do domínio como afirmação da racionalidade da coletividade em manter preservado o meio ambiente.
A problemática da supremacia de interesses privados em detrimento dos reais interesses sociais é destacada por Rogério Gesta Leal (2008) ao reafirmar o papel da efetivação da função social da propriedade como meio de valorização dos direitos coletivos, ao expor que:
(...) é possível demarcar um sentido político muito definido à expressão Função Social da Propriedade Urbana, erigido pelas necessidades e carências de uma nação espoliada e manipulada por interesses privados de uma pequena parcela de indivíduos, para então introduzir a reflexão de qual o papel do Poder Público enquanto agente regulador e ordenador de espaço público, a saber, instituir políticas públicas que deem efetividade ao que ordenamento jurídico dispõe.
A atual organização política e jurídica encaminha-se para o justo equilíbrio entre o público e o privado através da atribuição de uma função social e ambiental da propriedade que, sem anular o direito de propriedade, impõe ao seu titular a adequação de seus interesses aos interesses da coletividade, de modo que possam ambos coexistir e se complementar, efetivando, assim, a positivação dos interesses difusos.
Para Rawls (2013):
O conflito de interesses surge quando as pessoas deixam de ser indiferentes à maneira pela qual o aumento de produtividade resultante de sua colaboração vier a ser distribuído, pois, para se atingir seus próprios objetivos, cada um dará preferência a partes maiores da partilha. Um conjunto de princípios é necessário para que haja uma opção entre os vários ajustes sociais que, por sua vez, determinará a divisão das vantagens e assegurará um acordo para uma partilha correta.
A busca pelo equilíbrio, pois, inicia sua incursão pelos princípios informadores de nosso ordenamento, os quais assinalam a possibilidade de a função social e ambiental da propriedade ser observada e funcionar como meio-termo entre os dois extremos conflitantes. É, portanto, instrumento que, se incorporado principalmente às decisões judiciais, podem apontar a solução do embate entre o direito de propriedade e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
6. CONCLUSÃO
O direito de propriedade apresenta-se como um direito renovado, ao qual foram se agregando novas nuances que o transformou, também, em direito-instrumento para o bem estar social. Assim, não mais é possível dissociar o conceito de propriedade do dever de preservação do meio ambiente, direito conclamado pela Constituição Federal como difuso e destinado a todos os cidadãos, até mesmo aqueles que não têm condições de exercer sua cidadania.
No que se refere à caracterização e abrangência da função social e da função ambiental da propriedade previstas no Texto Constitucional, a função social é entendida como um dever direcionado à satisfação dos interesses de uma sociedade, vinculado ao poder de uso, gozo e fruição de um determinado bem condicionado a tal dever. A função ambiental da propriedade, por sua vez, é a preservação das características ambientais inerentes à propriedade, encontrando fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que o desenvolvimento sadio do ser humano depende do meio que habita e todas as demais espécies integram igualmente esta engrenagem natural.
Conforme se depreende do presente trabalho, tanto o direito de propriedade quanto o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado são contemplados pela ordem jurídica atual, mas quando se verifica a exigência de uma função socioambiental da propriedade, estes direitos, numa primeira análise, podem conflitar entre si. Esta situação decorre da tensão existente entre um direito de caráter difuso referente aos bens ambientais entendidos como patrimônio comum, e um direito de ordem individual referente a bens de caráter privado.
O que se pretendemos foi evidenciar que a propriedade não pode ter uma utilização que se volte apenas ao egoísmo do dono ou possuidor, prejudicando sua destinação social e econômica, tampouco a intervenção do Estado se dá por motivos próprios, pois o fator de bem-estar da coletividade deve ser compreendido de maneira global.
Em conclusão, qualquer utilização da propriedade que a torne insatisfatória para a coletividade, que não sirva, portanto, à sua função social e ambiental de incrementar o cumprimento dessa função, onde o egoísmo prevalece sobre o coletivo, é ilegal.
Não se pode ignorar a discussão referente à verdadeira incorporação e efetivação da propriedade de cunho social e ambiental na prática jurídica, pois como bem expõe Bobbio, o cerne do problema em relação aos direitos do homem atualmente não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los, principalmente do próprio homem. Trata-se de um problema não filosófico, mas político.
7. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 2012, p 68.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 2009, p 68.
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida, p. 235, citado por Fernanda de Salles Cavedon in Função Social e Ambiental da Propriedade. Florianópolis: Momento Atual, 2015, p. 128.
CAVEDON, Fernanda de Salles. Função Social e Ambiental da Propriedade. Florianópolis: Momento Atual, 2013, p. 59.
DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico.São Paulo: Max Limonad, 2017, p. 211.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2008 p. 1602.
GIANNINNI, Massimo Severo. “Ambiente: saggio sui diversi suoi aspetti giuridici”. In Rivista Trimestrale de Diritto Pubblico, nº 2, 1974, p. 680, apud SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São
HERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito, Rio de Janeiro: Líber Juris, 1987, p. 15, citado por Fernanda de Salles Cavedon in Função Social e Ambiental da Propriedade. Florianópolis: Momento Atual, 2013, p. 127.
LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil – Aspectos Jurídicos e Políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008, p. 159.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 67.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça, Trad. Vamireh Chacon. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981, p. 28, citado por Fernanda de Salles Cavedon in Função Social e Ambiental da Propriedade. Florianópolis: Momento Atual, 2013, p. 134.
Graduando em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Manaus - CEULM/ULBRA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ERICK CORDEIRO ALCÂNTARA, . A função social e ambiental da propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 maio 2021, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56531/a-funo-social-e-ambiental-da-propriedade. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: gabriel de moraes sousa
Por: Thaina Santos de Jesus
Por: Magalice Cruz de Oliveira
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