Resumo: No presente trabalho buscou-se avaliar o tratamento preconceituoso que os transexuais padecem no ambiente familiar e educacional, os quais afetam a sua integridade física e psicológica, decorrentes da sua exclusão da sociedade na qual estão inseridos. Apresentam-se alguns aspectos acerca de educação, sexualidades, relações de gênero e discursos religiosos, importantes ao processo de construção destas pessoas, cujas vidas são marcadas pela experiência social da exclusão. Trata-se de uma pesquisa do tipo exploratória, que utilizou procedimentos de coleta de dados bibliográficos em publicações periódicas de cunho científico, analisando através de vários referenciais teóricos, as histórias de vida dos transgêneros enquadrando-se junto às pessoas com quem convivem e sua relação com a religiosidade.
Palavras-chave: Diversidade sexual; Escola, Religiosidade.
Abstract: In the present study, we sought to evaluate the prejudiced treatment that transsexuals suffer in the family and educational environment, which affect their physical and psychological integrity, resulting from their exclusion from the society in which they are inserted. Some aspects about education, sexualities, gender relations and religious discourses are presented, important to the process of construction of these people, whose lives are marked by the social experience of exclusion. This is an exploratory research, which used bibliographic data collection procedures in periodic publications of a scientific nature, analyzing through various theoretical references, the life histories of transgender people fitting together with the people with whom they live and their relationship with religiosity.
Keywords: Sexual diversity; School, Religiosity.
Sumário: Introdução. 1. O Senso Comum do Binário 2. A Questão Familiar e os LGBT’s. 3. Dos Direitos da Personalidade das Pessoas Transexuais nas Relações Familiares. 4. As Ruas: do Acolhimento aos Riscos. 5. Escolas e Religiosidade 6. A Realidade Social Hodierna. 7.A Presença de Deus, e/ou Relação com “Uma Força Superior” 8. Referências.
Introdução
Apesar de a heteronormatividade ser vista como um parâmetro de sexualidade há indivíduos que fogem à norma heterossexual. Nem todas as pessoas condizem com as expectativas que o imaginário social impinge, em se tratando de normas de gênero e ao que vem a ser a representação social da figura do masculino e do feminino e estas pessoas que não se enquadram nestes moldes, são discriminadas. Um desses grupos é designado como o grupo das transexuais.
As pessoas que fogem ao padrão heteronormativo, isto é, quando o gênero é fundamentado no binarismo, sofrem preconceito e/ou discriminação em função da sua identidade de gênero, o qual é denominado de transfobia. Indivíduos transgêneros são alvo de preconceito, não possuem seus direitos fundamentais respeitados, sofrem exclusão social, possuem dificuldade de acesso à educação, ao mercado de trabalho e até ao uso de banheiros, além de sofrerem intimidações, abusos e homicídios.
Ao se asseverar a “heterossexualidade” como única e legítima forma de exercício do desejo, confere-se inteligibilidade, importância e materialidade ao “sexo” biológico, tomando diferenças de gênero e subordinações culturalmente constituídas como se fossem “naturais” (BUTLER, 2003, p. 38-48).
As identidades de gênero não estão restritas ao sistema binário (homem ou mulher, necessariamente heterossexuais), mas são variadas – por exemplo, transexuais, travestis, transgêneros, crossdressers, drag queen, drag king e gender queer, gender fluid, dentre outros, cada qual com suas particularidades. A expressão transgênero significa toda e qualquer subjetividade que escape à lógica da cisheteronormatividade, ao passo que a expressão transexual – que é uma das manifestações da transgeneridade – é restrita aos casos nos quais há discordância entre o sexo atribuído ao nascimento e ao gênero autodeclarado pelo sujeito – sendo o transexual masculino aquele que nasceu mulher, porém se identifica ao gênero masculino; e transexual feminino aquele que nasceu homem, porém se identifica ao gênero feminino, decorrendo em muitos casos pela procura da cirurgia de redesignação sexual (BENTO, 2012).
No trabalho em questão, será discutido o preconceito contra a transexual no ambiente familiar e de que modo este tipo de violência pode afetar seus direitos de personalidade e dignidade. Para isso, foi adotado o método teórico que consiste em consultas a obras e artigos de periódicos especializados que tratam o assunto.
As Considerações Finais do trabalho remetem a uma reflexão sobre a discriminação e o preconceito, pronunciando-os à identidade, dia a dia e prática religiosa das transexuais. Nesta seara, estes indivíduos elegem uma busca religiosa-espiritual cotidiana em seus próprios lares, voltando-se à prática religiosa aprendida em suas origens, independente de filosofias, dogmas e religiões tradicionais, como resposta à rejeição e que passam nesses espaços religiosos ou em decorrência destes.
1. O Senso Comum do Binário
Diferentemente do que se avalia na sociedade, a transexualidade não é recente ou pouco conhecida, consiste em uma pseudossíndrome psiquiátrica, onde o indivíduo se identifica com o gênero oposto, significando “manifestação extrema da inversão psicossexual, em que o indivíduo nega o sexo biológico e deseja assumir a identidade do sexo oposto”.(FARINA, 1982, p. 117)
Neste mundo pós-moderno que estamos inseridos, se já se torna complexo entendermos o que é ser um homem ou uma mulher, imaginemos quão complicado se torna entender o que é não ser nem homem nem mulher, que é justamente o caso das chamadas identidades transgêneros. Tudo se torna mais dificultoso devido a esta lacuna existente no conhecimento de uma população que tem os mesmos pensamentos e crenças arraigados há anos.
No âmbito global, o reconhecimento da orientação sexual como grandeza da pessoa a ser resguardada por esses tratados encara resistências motivadas por valores religiosos (CORREA, 2006).
Tais sofrimentos decorrentes do preconceito social homofóbico faz levar a questionamentos do verdadeiro papel ocupado pela religiosidade na vida dessas pessoas, como promotor de saúde ou como elemento causador de muitas angústias e sofrimentos.
As transexuais são pessoas que sentem desconforto psíquico com seu sexo oposto, ambicionando obsessivamente ter seu corpo readequado ao sexo contrário que acreditam possuir. Para elas, a operação de mudança de sexo é uma obstinação, já que não se conformam nem se admitem com o seu sexo biológico. A transexual legítima tem repulsa por sua genitália, o que a distingue dos homossexuais, nas quais a genitália desempenha um papel importante.
Fazendo-nos valer da denominação biomédica, transexuais são aqueles indivíduos que se consideram “afetados” por um transtorno envolvendo a sua identidade de gênero, ou na linguagem diagnóstica, que não se reconhecem no corpo com o qual vivem. Essa falta de identificação pode levar a uma aversão intensa ao seu sexo biológico (PETRY, MEYER, 2011).
Sob o contexto médico a transexualidade é uma anomalia da sexualidade humana segundo a qual o indivíduo possui um “sentimento profundo de pertencer ao sexo oposto e a vontade extremada de reversão sexual”. (SZANIAWSKI, 1999, p.53)
Uma pessoa transexual pode ser bissexual, heterossexual ou homossexual, dependendo do gênero que adota e do gênero com relação ao qual se atrai afetivossexualmente. Para entender melhor: mulheres transexuais que se atraem por homens são heterossexuais, assim como seus parceiros; homens transexuais que se atraem por mulheres também o são. Já mulheres transexuais que se atraem por outras mulheres são homossexuais, e homens transexuais que se atraem por outros homens também. Não se pode esquecer, igualmente, das pessoas com orientação sexual bissexual. Nem todas as pessoas trans são gays ou lésbicas (JESUS, 2012).
O resultado das incessantes pressões sociais para a cisheteronormatividade sugerem que diferentes motivos levam as pessoas transgêneras e transexuais a desejar transformações corporais para viver bem, pois independentemente da identidade e da expressão de gênero ou da sua orientação sexual elas buscam harmonia entre a autoimagem e a materialidade do corpo, crendo que essa adequação (corpo/subjetividade) garante sua autonomia (e felicidade). (MISKOLCI, 2009)
Ressalta-se que relações consideradas “corretas” e que detinham a aprovação da Igreja eram as relações heterossexuais; então esta instituição passou a discursar contra a prática da homossexualidade e a supervalorizar as relações entre heterossexuais no espaço do matrimônio, condenam-se as práticas do amor livre (amor/sexo entre pessoas heterossexuais solteiras) e da homossexualidade, taxando-as de condutas que seriam moralmente inaceitáveis (MOTT, 2002).
Assim sendo, é de simples dedução que o bullying cometido ao transexual tende a agredir e dar ênfase a um ato discriminatório mediante a sua vontade de viver e ser identificada como pessoa do sexo oposto ao seu sexo biológico, sofrendo ataques a sua dignidade e integridade.
2. A Questão Familiar e os LGBT’s
Grande parte da população trans enfrenta violência e humilhação justamente onde deveria encontrar acolhimento. Constata-se que o bullying às transexuais é ação que se inicia primeiramente dentro de seu ambiente familiar, onde sua própria família condena e inferioriza a sua condição, tornando-se a transexual perante a sociedade e o Estado um ser invisível, e tendo os seus direitos da personalidade e fundamentais desrespeitados.
A família é o primeiro grupo a atuar de modo preconceituoso e recriminatório. Neste contexto familiar os conflitos e os maus tratos se intensificam e culmina com sua expulsão de casa ou até mesmo sua fuga.
De quase todas as bibliografias consultadas, o início do rompimento de vínculos e o processo de estigmatização ocasionado a transexuais a predisposição a vulnerabilidades teve início a partir da exclusão ocorrida na família. Os processos depreciativos vividos por elas influenciaram em toda a organização de suas subjetividades, construídas ao longo das relações estabelecidas com os outros, com o mundo e consigo mesmas.
A descoberta do corpo e comunicação para a família é motivo para várias surras, ofensas e rejeições familiares. O sentimento destes indivíduos é um só: a mente e o corpo não podem ir contra o que desejam ser e o que realmente são. Então é preciso muita garra e coragem para confrontar-se com a conjuntura ao seu redor.
3. Dos Direitos da Personalidade das Pessoas Transexuais nas Relações Familiares
A dignidade da pessoa humana surge como “uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, adotada como valor máximo pelo ordenamento”. (TEPEDINO, 1999, p. 48) Por ser um valor este atribuído a todo homem, o transexual também é detentor de dignidade.
Quando se coloca em pauta o assunto “dignidade da pessoa humana”, não há que se falar ou concordar que a pessoa ceda, renuncie ou negocie sua dignidade. “Quando se trata da proteção da dignidade do ser humano, não podemos admitir tergiversação. A dignidade do ser humano exige proteção máxima, inegociável”(ALMEIDA NETO, 2005, p.29). Com a dignidade do transexual não seria um fato em isolado e diferente, esta dignidade é irrenunciável, inegociável.
Pode-se afirmar que a família exerce uma função social quando é capaz de proporcionar um ambiente de convivência harmônica e de dignificação de seus membros (PEREIRA, 2008, p. 190).
4. As Ruas: do Acolhimento aos Riscos
Em decorrência das injúrias e experiências negativas na conjuntura familiar, travestis e transexuais se sentem desamparados, à mercê de tudo e todos, “um mundo de possibilidades totalmente desconhecido” e despontam à procura de outros contextos de sociabilidade, onde se sintam aceitas. É quando, geralmente, conhecem outra travesti ou transexual mais experiente, exercendo papel como de uma “mãe” ou “madrinha” que lhes apresente a vida noturna na rua.
As manifestações discriminatórias por parte da comunidade escolar também colaboram para concretizar a segregação das pessoas transgênero, através da limitação da participação destas no espaço social, ao serem avaliadas como fora da realidade heteronormativa, onde não existe espaço para outras demonstrações de gênero sobressair (BENTO, 2009).
Como mostra Junqueira (2009, p.14):
Ao longo de sua história, a escola brasileira estruturou-se a partir de pressupostos fortemente tributários de um conjunto dinâmico de valores, normas e crenças responsável por reduzir à figura do “outro” (considerado “estranho”, “inferior”, “pecador”, “doente”, “pervertido”, “criminoso” ou “contagioso”) todos aqueles e aquelas que não se sintonizassem com o único componente valorizado pela heteronormatividade e pelos arsenais multifariamente a ela ligados – centrados no adulto, masculino, branco, heterossexual, burguês, física e mentalmente “normal”.
Comumente, o primeiro apoio vem dos amigos alheios ao núcleo familiar, que não oferecem oposições diante dos assuntos de gênero ou de identidade de gênero. Este círculo de amizades que inicialmente efetiva os papéis esperados como de caráter familiar: apoio, direção e alento, enquanto a família somatiza o “problema” ou expressa desgosto, deixando de falar com elas por certo período.
A rua é apresentada como um espaço receptivo, que ainda que mostre várias temeridades, permite a edificação de uma nova rede de apoio social fundamentada na experiência comum da vulnerabilidade. Nada mais é que um espaço de sociabilidade por onde transgêneros circulam dia e noite, pois são por meio da prostituição noturna que elas encontram aquele que parece o exclusivo modo de se obter uma renda para proverem as suas necessidades e de sobrevivência. A prostituição é encarada com naturalidade, já que as situações que as levaram a este extremo fazem parte do íntimo das histórias de vida de cada uma.
O fluxo de vida de cada transgênero parece apresentar vários pontos em comum fazendo com que estes adotem a prostituição como meio de trabalho e subsistência enfrentando situações de vulnerabilidade já instituídas.
5. Escola e Religiosidade
São muitas as inseguranças, os conflitos e os medos quando se trabalha frente às sexualidades e gêneros nas instituições escolares, principalmente em se tratando do entrelaçamento entre os valores da educação familiar e àqueles recomendados pelos projetos pedagógicos escolares ou mesmo através de um professor, provocando choques com algumas crenças religiosas.
Na ótica de Reis e Vilar, os valores sociais e culturais acabam então influenciando as atitudes individuais, onde o fator religioso manifesta-se “como elemento que dita valores morais e regula comportamentos sexuais. Importa então refletir brevemente sobre o peso da influência religiosa na sociedade, impondo normas e repressões no que se refere à sexualidade humana” (REIS; VILAR, 2004, p.739).
Algumas religiões cristãs encontram-se atreladas ao machismo e à LGBTfobia, identificando nelas uma intolerância e alguns docentes fazem referência a esta análise e preferem sustentar o ideal heteronormativo. Weinberg sustenta que tal “desprezo” revela uma dinâmica de formação da identidade de pessoas “heterossexuais” que perpetram atos ou são tomados por pensamentos e sensações homofóbicos: trata-se de operações de valorização de si pelo rebaixamento do outro. Esse sujeito desprezado é, ao mesmo tempo, revestido de um caráter atemorizante pelo seu potencial de corrosão de valores cultivados. (WEINBERG, 1973, p.15)
Salienta-se também que muitos docentes expõem não ter dificuldades pessoais em abordar o tema de gêneros e sexualidades no contexto escolar, embora muitos argumentem que acham difícil entender tal comportamento e apenas respeitam.
Miskolci (2005, p. 19) avalia que:
A prática educativa fincada na suposta invisibilidade da sexualidade e no silêncio sobre as formas diferentes de amar é homofóbica, pois pressupõe que ignorar a existência de práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo levaria os jovens a optarem pela heterossexualidade. Assim, a instituição escolar revela que sua neutralidade em termos sexuais nunca passou de cumplicidade com a forma de sexualidade hegemônica e prescrita como única. A neutralidade se funda no objetivo de assumir uma só via para todos, ou seja, a neutralidade não passa de heterossexualidade compulsória disfarçada.
Observa-se que os valores religiosos encontram-se na base das relações sociais, constituindo processos diversificados de formação das experiências religiosas, entendidas, sob uma perspectiva foucaultiana, como os modos pelos quais podemos ser subjetivados/as pelos discursos religiosos, o que envolve as crenças subjetivas, mas também certos modos de agir e viver sujeitados a uma moral, e também os modos como nos ocupamos de nós mesmos e nos conduzimos a partir dos códigos morais associados a essas formações discursivas, isto é, como nos constituímos sujeitos dessa moral (CASTRO e SOUSA, 2016).
As discussões sobre as sexualidades e diversidade sexual ainda têm pouca expressividade na educação e a escola ainda é vista como campo edificador das identidades sociais. Dependendo do posicionamento político apontado, elas atuam na reprodução, ou não, dos papéis sexuais hierarquicamente instituídos.
Os métodos e os artefatos escolares, as linguagens envolvidas nos processos de comunicação, as atitudes pessoais diante do que é dito e do que não é dito na escola, tudo isso nos constitui: meninas e meninos, mulheres e homens, negros, brancas, indígenas, gays, heterossexuais, negras, lésbicas... Essa construção das identidades culturais é um processo permanente, articulado por inúmeras instâncias sociais (entre elas a Escola) que realiza pedagogias da sexualidade, do gênero e das relações étnico-raciais. Essas pedagogias podem tanto reiterar as identidades e as práticas hegemônicas, quanto podem permitir a visibilidade e a disponibilidade de representações contrárias e/ou alternativas (FURLANI, 2009. p.293)
Para Freire (1987, p. 16), “a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos é libertar-se a si e aos opressores”, deste modo, a sexualidade como libertação amplia a efervescência das distintas realidades religiosas vigentes, tanto reitera a própria subjetividade individual homossexual quanto reivindica a novas subjetividades sociais.
Salienta-se, nessa seara, que a discussão do tema na formação inicial e continuada docente; a reorganização curricular nacional através da participação de entidades educacionais; o aprimoramento dos livros didáticos, entre diversos fatores, faz parte do processo de mudanças, pois elas têm a capacidade de formar conceitos e produzir saberes edificando a luta por tolerância, igualdade e respeito.
6. A Realidade Social Hodierna
O Princípio da Dignidade Humana implica na aceitação do outro dentro de suas concepções morais ou valores. Como pode em uma sociedade igualitária e racional haver tanto retrocesso em relação a questões de regras de convivência?
A abertura da sociedade e do direito para a aquiescência de novas expressões, livres de preconceitos e estereótipos sobre a identidade de gênero colabora muito, no combate à violência e marginalização, e traz à tona os corpos transexuais até então sujeitos à invisibilidade.
De acordo com Zanelatto (2015):
O caminho de um transgênero começa e acaba nele mesmo, ao contrário do caminho de uma lésbica ou de um homossexual. A lésbica deseja uma mulher. O homossexual, um homem. O transgênero deseja viver sua identidade de gênero, independentemente de ter um parceiro ou parceira. Sua questão é consigo mesmo, em primeiro lugar, depois vem a questão do relacionamento afetivo. Para o transgênero o desafio é se saber membro do sexo oposto e encontrar formas de viver bem assim na família, na sociedade e no próprio corpo. (ZANELATTO, 2015, p.160)
Rotular as pessoas conforme sua orientação sexual é o mesmo que sintetizar o indivíduo somente ao que faz em sua intimidade, deixando de lado o papel que representa na sociedade. Este preconceito diário pelo qual estas pessoas são expostas implica na sua exclusão e pode ser considerada causadora de brutalidades e violências em razão de sua sexualidade. Existe realmente o certo e o errado, moral e amoral, admissível e inoportuno? Nossa sociedade através de discursos e atuações moralistas só ratifica o quão atrasados estamos não aceitando pessoas que já vivenciam sua sexualidade com liberdade.
A presença da heteronormatividade em nossa sociedade demonstra que ser heterossexual é algo natural e espontâneo. Desse modo, a homossexualidade é vista como um aspecto atípico.
Segundo Foucault (1988), a sexualidade está presente nas relações de poder, a qual é o elemento de maior instrumentalidade, de articulação às mais variadas estratégias:
Não existe uma estratégia única, global, válida para toda a sociedade e uniformemente referente a todas as manifestações do sexo: a ideia, por exemplo, de muitas vezes se haver tentado, por diferentes meios, reduzir todo o sexo à sua função reprodutiva, à sua forma heterossexual e adulta e à sua legitimidade matrimonial não explica, sem a menor dúvida, os múltiplos objetivos visados, os inúmeros meios postos em ação nas políticas sexuais concernentes aos dois sexos, às diferentes idades e às classes sociais. (FOUCAULT, 1988, p. 114).
Existem várias formas de designar as pessoas no mundo da sexualidade; o que devemos assinalar, entretanto, é que estamos diante de seres humanos que buscam em suas peculiaridades uma vida corriqueira, de aceitação e, sobretudo, consideração da sociedade para com sua individualidade.
Henrietta Moore (2000) salienta que a visibilidade e a mobilização política das minorias sexuais procuram abalizar consensos em defesa de valores que, a partir de tal ponto de vista, deveriam ser globalmente difundidos e aceitos. Por outro lado, trata-se apenas da defesa de interesses, ou da manutenção de privilégios que são concedidos a um grupo hegemônico de pessoas às quais é atribuída a identidade de “heterossexuais”, em detrimento dos direitos sexuais da minoria LGBT.
Em consonância com Moore (2000), retoma-se aqui a questão de que os núcleos conservadores encontram-se fechados em torno de justificações religiosas, demonstrando claramente tentativas de silenciar as minorias sexuais diante da esfera pública, reivindicando reconhecimento e equidade.
7. A Presença de Deus, e/ou Relação com “Uma Força Superior”
Alguns especialistas reconhecem o choque entre religião e mudança de gênero. As religiões têm seus princípios relativamente fixos e acolhem as mudanças (quando as aceitam) de modo extremamente lento. Cada nova configuração de gênero que surge ocasiona sofrimento e não encontra apoio/respaldo em boa parte das religiões.
A religião pode ser vista como mais um componente repleto de enigmas, sem explicação. O contato do ser humano com o sagrado através da fé engloba dimensões cognitivas e afetivas, expressas no plano da razão e da emoção com o outro e consigo mesmo.
Observa-se que além da discriminação contra os LGBT’s firmada através do discurso de legitimação da superioridade dos heterossexuais, constrói-se uma preleção religiosa impondo preconceito a este grupo denominado “pecador”.
O presente trabalho buscou observar e refletir sobre a experiência religiosa no cotidiano de transgêneros, não teve o escopo de pesquisar precisamente a religião destas, apenas perceber como estas pessoas se relacionam com algumas circunstâncias do dia a dia a partir de vivências de religiosidade ou espiritualidade.
Passamani (2008, p. 22), ao falar sobre homossexuais e religiosidade, refere-se ao termo “discriminados entre os discriminados” e enfatiza os sentimentos de culpa e pecado, no sentido de oprimir os homossexuais, atrelados a contingências sociais que os leva a ocultarem-se, por medo da exclusão, da ridicularização e da marginalização. Já no gueto, sem as mesmas pressões, o/a homossexual pode experimentar, construir e assumir uma identidade equivalente e coerente aos seus desejos e impulsos, constituindo em treinos que podem se expandir para lugares menos restritos a ponto de ser reconhecido como homossexual nos ambientes que frequenta, apresentando-se em outras áreas do seu convívio social.
As pessoas mais pobres, por não terem acesso à cultura e outros direitos básicos, dependem da Igreja para a socialização e como várias Igrejas estão presentes nas periferias, estas devem cumprir essa função. O que na maioria das vezes ocorre é que tais Igrejas não acolhem as diferenças, o que faz com que essas pessoas mais humildes permaneçam mais vulnerabilizadas. Assim, ao descobrir-se transexual, a maior brutalidade que estes indivíduos podem sofrer é a tentativa de tirar deles sua essência, tornando-os desprezíveis. Muitos transexuais neste estágio podem inclusive tentar acabar com sua própria vida, já que não têm o poder de nascer de novo, segundo os moldes que a Igreja e a sociedade preconiza: heterossexual e cisgênero.
Importante ressaltar que o mais significativo na vida destas pessoas diz respeito a ser elas mesmas, aceitar-se como são perante si e principalmente à sociedade, isso inclui suas cirurgias estéticas. Tais indivíduos acreditam serem concebidos por Deus e por isso, não creem ser um encosto ou uma abominação.
Nesta seara, convém citarmos Joseph Famerée:
...do corpo como caminho de nós até Deus e de Deus até nós. [...] precisamente, em consonância com a descoberta que a fenomenologia fez do corpo como lugar das relações com o outro, nossa intuição teológica confirma que o corpo é verdadeiramente um lugar privilegiado de encontro com Deus (FAMERÉE, 2009, p. 14).
Alguns indivíduos transgêneros encaram o fato do preconceito religioso como parte do seu cotidiano, como qualquer outro tipo de enfrentamento diante das vulnerabilidades relacionadas as suas respectivas identidades, mais um dentre tantos comportamentos e atitudes racistas e preconceituosas. Nesse sentido, segue a citação:
Muitas religiões não aceitam em seus dogmas e cultos a expressão de corpos dissidentes dos modelos hegemônicos de gênero e sexualidade. Por outro lado, em outras, as travestis e transexuais são plenamente aceitas e se tornam “espaços possíveis” de expressão de suas feminilidades. Este é o caso dos terreiros de religiões afro-brasileiras, nas quais as travestis e transexuais estudadas neste trabalho se inserem tranquilamente e são aceitas na plenitude da construção de seus gêneros e de suas sexualidades. (NASCIMENTO, COSTA, 2015, p.183)
As interdições são, sobretudo, relacionadas aos espaços das religiosidades cristãs, como igrejas católicas e evangélicas, mas, ao contrário, suas vivências são possibilitadas às religiosidades de matriz africana, em terreiros e umbanda e candomblé. (ibidem, p.186)
Observando a literatura compilada, o que se pode acrescentar acerca de religiosidade é a noção de respeito e amor ao próximo que as transexuais expõem como atributos e motivações sobrevindas da força superior. As experiências religiosas provêm de memórias, a partir de rituais e dogmas da igreja, como o batismo, primeira comunhão e crisma: momento em que reuniam familiares, parentes e amigos. Eram boas recordações, lembram-se da hóstia, almoços na igreja e reuniões em família.
Adultas foram excluídas da igreja por serem como elas realmente são. Elas acrescentam que respeito e amor ao próximo são o mais importante de tudo, características e motivações norteadoras provenientes da força superior, mas não exercitam a sua fé e nem a religiosidade a partir das amplas práticas, filosofias e ensinamentos em igrejas.
O importante para estas pessoas em uma Igreja é que esta acolha a todos, não julgue seus atos, e não use a religião como instrumento de pressão e opressão. Devemos nos ver como pecadores, e não ficar julgando o próximo, somente respeitá-lo, aconselhando quando necessário, mas nunca colocando a pessoa em posição de inferioridade.
Considerações Finais
Ainda existe um longo caminho a ser percorrido até que possamos garantir os plenos direitos e cidadania às pessoas transgêneros. A começar por uma legislação que não invisibilize suas existências, que não anule suas potencialidades, que não as deixem padecer nesta seara onde a norma de gênero cristalizou-se e desde então massacra seus modos e suas expressões. Precisamos punir, com rigor, os agressores que justificam seus atos em “nome do bem estar social” ou em “nome de Deus”.
A identidade do indivíduo transgênero, por já ser pré-definida ou interiorizada, é vivida como claustrofóbica, portanto interferindo nas relações que estabelecem, já que são desqualificados/as como pessoas aos olhos da sociedade por mais que suas ações comprovem que os estereótipos não condizem com sua vida diária.
Precisamos legislar para as classes mais vulneráveis de nossa sociedade e reconhecer a Constituição Federal como um livro de todos e para todos desconstruindo mitos e preconceitos que rondam as identidades de gênero. Dignidade para uma pessoa transgênero é ser respeitado na sua individualidade, ser reconhecida como uma pessoa de direito e poder de se determinar socialmente sobre o gênero, pelo qual se afirma.
É importante que haja certa flexibilização nas igrejas. As pessoas da igreja não estão imunes a serem preconceituosas, mas procuram lutar contra a violência e intolerância.
Resultados também assinalam para o fato de que o cotidiano e a religiosidade de transexuais são mais bem vivenciados entre àquelas que melhor se adaptam ou correspondem aos padrões heterossexuais hegemônicos minimizando situações de preconceitos e discriminações, majorando a aceitação social das mesmas.
De modo geral, algumas são religiosas, possuem fé em um ser superior e são espiritualizadas, embora não atrelem tais práticas a igrejas ou grupos religiosos. A força superior norteia tudo em suas vidas, seja a força que as faz viver, o bem-estar e conquistas de sonhos e desejos almejados em seu cotidiano, guiando suas condutas, valores e comportamentos.
Aos professores incumbe o desafio de sustentar seus valores e suas crenças, na acepção de que não deixem prevalecer e não refreiem tais crenças e saberes que a eles não se encaixam. Assim, para que a diversidade sexual seja de fato presente na escola fazem-se necessárias mudanças em todo processo envolvido, desde a capacitação, formação e valorização dos professores, bem como maior enfoque das iniciativas governamentais.
Não se pretendeu no presente trabalho a exaustão do tema, que é complexo em particularidades, e as respostas são diversas e muitas delas baseadas em foro íntimo, envolvendo aspectos culturais e também de ordem religiosa, o que se pretende é oferecer uma maior clareza às questões relacionadas à transexualidade em seus aspectos familiares e sociais. O mais importante neste contexto é o reconhecimento e o respeito a estes indivíduos pela sociedade, ainda repleta de preconceitos, para que todos possam ir de encontro a uma vida digna e feliz.
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Advogada (ULBRA), pós-graduada em Advocacia Cível (UNA) e Direito do Trabalho (UNA). Membro da Comissão de Direitos Humanos e do Grupo de Violência de Gênero da OAB Santa Maria-RS. Engenheira Agrônoma (UFSM), Mestre em Ciência e Tecnologia Agroindustrial (UFPel). Graduanda em Formação Pedagógica em Pedagogia (UNIASSELVI).Doutoranda em Educação (UNIT). https://orcid.org/0000-0003-3492-8512
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARIA, Vanessa Andriani. Reflexões acerca da Educação, Religiosidade e Diversidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jun 2021, 04:56. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56611/reflexes-acerca-da-educao-religiosidade-e-diversidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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