ROCHELE JULIANE LIMA FIRMEZA BERNARDES[1]
(orientadora)
RESUMO: O presente artigo busca analisar os recentes escândalos envolvendo a utilização de dados na internet para o desenvolvimento de campanhas eleitorais, a fim de avaliar se essa prática põe em risco a democracia e se a nossa legislação está preparada para combater esses possíveis riscos. Fora motivada pelos recentes casos de manipulação do eleitorado em todo o mundo. Para este estudo, foi utilizado a pesquisa bibliográfica com abordagem indutiva, onde foi feita a análise de fatos ocorridos tanto internacionalmente quanto nacionalmente, para que se possa avaliar os acontecimentos atentatórios ao estado democrático de direito dentro e fora do Brasil, bem como a pesquisa na doutrina atual, jurisprudência e demais meios de informação. Chegou-se à conclusão que o ordenamento brasileiro avança cada vez mais na proteção dos dados pessoais com legislações que buscam não só a regulamentação do tratamento de dados, mas sim a efetiva proteção desse bem jurídico, mas que falta o desenvolvimento de legislação específica para a proteção do sufrágio.
Palavras-chave: Dados Pessoais; Lei Geral de Proteção de Dados; Sufrágio.
A globalização tornou indispensável a conectividade com o mundo, sendo impossível imaginar como seria a humanidade sem as grandes redes de comunicação via internet. São mais de 3,2 bilhões de pessoas[2] que se conectam todos os dias, durante horas, deixando registros de todas as suas ações nesses meios, os chamados dados pessoais.
A utilização desses dados para o direcionamento de propagandas personalizadas pautadas nas suas informações pessoais é para a promoção de mercadorias, tornando o marketing digital um mercado gigantesco. Ocorre que vem tomando cada vez mais notoriedade a utilização dessas ferramentas para a manipulação do eleitorado nas campanhas políticas de todo o mundo, sendo inúmeros casos registrados.
Muito além da ética questionável da utilização dessas informações pessoais, a sua utilização para influência do eleitorado através de Fake News personalizadas, tem se provado capaz de mudar cenários políticos em todo o mundo, podendo colocar em risco a democracia, vez que a vontade do povo passar a emergir não do seu livre arbítrio, mas sim de ideias implantadas no seu dia a dia.
Ainda mais assustador do que a ideia de ventriloquismo é a recente notoriedade do tema mundialmente, principalmente no Brasil, que até o ano de 2018 não havia qualquer legislação com enfoque de fato na tutela dos dados pessoais, até o surgimento da Lei Geral de Proteção de Dados.
Nestes termos, a presente pesquisa objetiva colocar a utilização dos dados pessoais em análise com o direito eleitoral e a mais recente legislação protetora deste bem, a LGPD, a fim de observar as possíveis ameaças que possam trazer ao democrático processo de sufrágio, bem como a capacidade legislativa atual para contenção desses prováveis efeitos.
Fora abordado neste trabalho os conceitos da direito eleitoral, tais como a sua importância para a proteção e regulamentação do sufrágio, objeto da democracia. Também foi trazido a proteção constitucional dos direitos eleitorais.
Houve a conceituação dos dados pessoais, demonstrando como ocorre a sua geração e captação na utilização para o marketing, incluindo a propaganda eleitoral. Foi abordado também fatos históricos recentes da utilização desses dados pessoais para a manipulação dos eleitores no exterior e no Brasil.
Posteriormente, fez-se a conceituação da Lei Geral de Proteção de Dados, onde finalmente ocorreu a abordagem dos fatos anteriormente discorridos frente à LGPD, observando sua capacidade protetiva e regulamentadora.
A relevância está diretamente ligada a manipulação do eleitorado e as ameaças a democracia advindas da utilização desenfreada dos dados na rede, fato recente, com poucas doutrinas e legislações especificas, mas que pode colocar em jogo a democracia de um país, tendo em vista o mundo cada vez mais conectado e manipulável.
O Direito Eleitoral é o ramo do direito que estuda a ligação da vontade popular na administração pública, sendo aquele relacionado aos direitos políticos assegurados pela Constituição Federal, bem como garantindo a tutela do processo eleitoral justo. Portanto, é correto classificar o Direito Eleitoral como o responsável pelo estudo das normas de funcionamento do processo de sufrágio.
Conceituamos o Direito Eleitoral como o ramo do Direito Público constituído por normas e princípios disciplinadores do alistamento, da convenção partidária, do registro de candidaturas, da propaganda política, da votação, da apuração e da diplomação dos eleitos, bem como das ações, medidas e demais garantias relacionadas ao exercício do sufrágio popular. (ALMEIDA, 2017, p. 43)
Sua normatização se dá por código próprio, garantias na CF/88 e mais uma gama de legislações, tal como aponta Santos (2019, p. 11) “o Direito Eleitoral é pautado pelo Código Eleitoral que é recepcionado pela Constituição Federal como Lei Complementas, bem como por inúmeras outras legislações que o complementa.”.
A “Vontade do Povo”, tradução da palavra Democracia, do Grego, Demokratía, significa a ideia da emanação do poder nas decisões que acometem a sociedade serem desta própria sociedade. Sua origem em Atenas, Grécia, teria a incidência do que chamamos hoje de democracia direta, onde o povo se manifestaria em debates acerca das decisões a serem tomadas, sem que qualquer representação fosse tomada.
Hoje, para o Brasil, país democrático de direito, o povo é cidadão, não participando diretamente das escolhas que circundam a administração da nação, mas sim os representantes escolhidos mediante o sistema de votos sendo, portanto, democracia indireta ou representativa. Na concepção de Lenza (2012, p. 1123), democracia indireta é aquele “na qual o povo, soberano, elege representantes, outorgando-lhes poderes, para que, em nome deles e para o povo, governem o país”.
Não obstante, a democracia não se limita ao voto nas eleições de representantes do poder executivo, mas também é previsto por meio do plebiscito, referendo e iniciativa popular, momentos em que a população é consultada a respeito de decisões que influenciam a sociedade.
Os representantes escolhidos devem então atuar de acordo com os interesses da população que, após conhecer seus projetos e ideais, decidem qual atende melhor as demandas da sociedade.
A Constituição Federal de 1988 consagrou-se a constituição cidadã, trazendo a soberania popular de forma definitiva e no mais alto patamar da força legislativa. A doutrina prevê:
A ideia de que todo Estado deva possuir uma Constituição e de que esta deve conter limitações ao poder autoritário e regras de prevalência dos direitos fundamentais desenvolve-se no sentido da consagração de um Estado Democrático de Direito (art. 1.º, caput, da CF/88) e, portanto, de soberania popular. (LENZA, 2012, p. 67).
Nesse sentido, a soberania se traduz como o desenrolar das atividades estatais para atender as necessidades do povo, pois deste se origina todo o poder, isto é, soberania pode ser conceituada ainda como a externalização da democracia, observada em primazia por meio do voto.
Segundo a própria Constituição Federal de 1988, em seu art. 14, caput, “a soberania popular é exercida pelo sufrágio universal e o voto direto e secreto”. O voto é a marca da democracia no sistema brasileiro, pois é o responsável pela eleição dos representantes escolhidos pelo povo.
Amparado pelo dispositivo constitucional anteriormente citado, o voto ainda é direto e secreto, cabendo à Justiça Eleitoral garantir tais características. O voto direto é a atribuição da igual para cada voto computado no processo eleitoral, não havendo distinções ou pesos diferentes entre eles. O voto secreto é o direito de não ser obrigado a identificar ou prover meios que se identifique o direcionamento político do cidadão, afim de que não se tenha tratamento distinto por intenção de voto.
Ante os avanços da globalização marcados com a criação da Internet, é possível presenciar a divulgação de informações a todo momento. São milhares de informações transitando pelo mundo todo em questão de segundos, via redes conectadas.
Nos termos do art. 5º da Lei 13.709 de 2018, os dados pessoais são todas aquelas “informações relacionadas a pessoa natural identificada ou identificável” (BRASIL, 2018)
A democratização da Internet e dos meios de comunicação tornaram o dia a dia das pessoas em uma fábrica de dados pessoais. Tantas informações parecem se dissipar no meio de novas mensagens, imagens ou vídeos, mas na realidade, boa parte está sendo captada e armazenada em bancos de dados.
O banco de dados é o agrupamento das informações coletadas, colocadas de formas mais simples a fim de serem posteriormente tratadas. Empresas de shopping online costumeiramente exigem a criação de cadastros dos seus usuários para efetuar as compras, onde é inserido normalmente e-mail, número de telefone e algum documento pessoal. Essas informações ficam gravadas e assim a empresa pode lhe enviar promoções através de correio virtual ou notificar através de mensagens para o telefone do usuário as atualizações de entrega de um pedido.
Ainda dos bancos de dados, estes podem ser utilizados para o favorecimento de empresas de marketing especializadas em utilizar esses dados pessoais para encaminhar campanhas que chamem a atenção de um público específico, aumentando a eficiência das publicidades.
Funciona como um filtro de interesses, onde os dados são capturados por meio das redes sociais, aplicativos de jogos ou fichas cadastrais; quando a empresa sabe seus interesses, ela saberá qual a melhor forma de apresentar um produto de acordo com suas necessidades, sendo incisiva naquilo que o usuário compartilha, tem interesse, deseja ou rejeita.
Algumas dessas utilizações são consentidas através de longos termos de políticas de privacidade, onde segundo a Federação de Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP)[3], 60% dos usuários não leem os referidos termos de uso. Ocorre que, parte dessa captura dos dados também é feita de forma questionável e sem consentimento, levando aos problemas de invasão de privacidade e ao questionamento sobre qual uso será feito desses dados.
No mesmo sentido da utilização de dados para a colaboração do marketing, está sua utilização nas campanhas eleitorais. Da mesma forma que pode ser utilizado um banco de dados que definem os interesses do usuário para destinar determinada propaganda, pode este sistema ser voltado ao favorecimento de determinadas figuras políticas, bastando apenas que tenha traçado uma boa estratégia capaz de convencer o eleitor.
Informações sobre a classe social, localização da moradia e faixa etária podem definir uma determinada tendência de voto deste usuário. Vez que já se sabe quem é o eleitor, as estratégias são as mais diversas, desde divulgação de mensagens tendenciosas contra os adversários políticos até criação de falsos movimentos protestantes para aumentas a abstenção nas urnas.
Todo esse planejamento e tratamento das informações captadas são realizados por empresas especializadas, que se fazem presente dentro da propaganda política à muito tempo, mas que só veio à tona após recentes os escândalos envolvendo as eleições de 2016 nos Estados Unidos, com grande ênfase em duas empresas: Cambridge Analytica e Facebook.
Cambridge Analytica foi uma empresa subsidiária da SLC Group, especializada na coleta e tratamento de dados pessoais para a realização de marketing eleitoral, onde teve maior atuação no mercado norte-americano ante de ser extinta no ano de 2018.
A subsidiária coletava informações de usuários da internet através de ferramentas on-line, criando um banco de dados com o perfil daqueles que o acessavam, desenvolvendo assim uma gigantesca base capaz de definir a idade, classe social e interesses daquele user.
Em posse de todos os dados, a Cambridge Analytica poderia então determinar quais seriam as melhores estratégias para obter o sucesso dos seus clientes, pois saberia exatamente quais os interesses explorar em cada pessoa que teve suas informações coletadas (Kaiser, 2019)
A coleta de dados ocorria através de aplicativos desenvolvidos principalmente para a rede social Facebook, onde este aplicativo teria uma permissão especial para coleta de dados tanto do usuário que o utilizasse quanto das pessoas que se relacionassem com esse usuário, formando milhares de pessoas que tinham suas informações coletadas e armazenados sem que soubessem que isso acontecia (WYLIE, 2019).
Com essas informações em mãos, a empresa traça então uma estratégia de emitir propaganda extremamente focada, pois saberia quem estaria assistindo e exatamente qual a tendência política deste eleitor, como na histórica eleição de 2016 nos Estados Unidos.
Em 2016, Hillary Clinton disputava as eleições à presidência dos Estudos Unidos contra Donald Trump. Segundo a Reuters/Ipsos[4] no projeto States of the Nation, projeto de pesquisa online sobre os candidatos feito entre 18 e 22 de agosto, publicado em 22 de outubro de 2016, Hillary mantinha a liderança por 12 pontos frente à Trump, sendo a preferida a ocupar a vaga na Casa Branca.
No entanto, Trump ganhou as eleições, contra todas as expectativas, e posteriormente foi revelado, primeiramente pelo jornal inglês The Guardian a sua relação com a Cambridge Analytica e sua coleta de dados pessoais. Segundo o jornal, a empresa traçou o perfil dos eleitores norte-americanos principalmente por meio de aplicativos no Facebook, onde coletavam os dados dos usuários, definindo propagandas contra Hillary e em prol do magnata, enviando vídeos e banners nas páginas com informações que influenciavam o público à votar no concorrente conservador.[5]
Após a divulgação do marketing, Facebook e Cambridge Analytica foram condenados culpados pelo vazamento ilegal de dados pessoais e multados em bilhões de dólares, momento em que a subsidiária da SLC Group declarou falência e abandonou o país.
Em razão desse escândalo, o mundo começou a enxergar os dados pessoais, principalmente nas redes de computadores, de outra forma, levando um movimento global para a regulamentação do tratamento dessas informações, e trazendo à tona vários outros casos de manipulação do eleitorado através da coleta de informações.
Trindade e Tobago são duas ilhas que compõe um país caribenho que possui dois partidos políticos divididos por etnias: um afro-caribenho e outro indiano. Em 2010 ocorreu as eleições gerais do país, marcado pela disputa incessante dos dois partidos, mas dessa vez o partido indiano contaria com a Cambridge Analytica para traçar a sua estratégia de propaganda política, onde o próprio governo do país ofereceu à empresa as informações pessoais da população (WYLIE, 2019).
Com os dados do eleitorado em mãos, a empresa de marketing decidiu criar uma estratégia diferente das convencionais, pois sabia exatamente qual a tendência deveria explorar na população (WYLIE, 2019). Deu então, início à um trabalho voltado ao público jovem de ambos os partidos, criando um falso movimento protestante contra as diferenças políticas chamado de “Do so”, que significava “Não vamos” na língua local.
O falso movimento consistia na abstenção do voto, sendo apoiado principalmente pela população mais jovem de ambos os partidos, onde se negavam a votar como forma de protesto. Ocorrer que, como a Cambridge previa, a parcela de jovens indianos, advindos de uma cultura mais conservadora, obedeceram a seus pais e foram às urnas no dia das eleições, enquanto os jovens afro-caribenhos tiveram maioria em abstenção, levando uma diferença de 6% em favor ao partido indiano UNC[6].
As eleições presidenciais de 2018 no Brasil foram marcadas pelo mesmo contexto da utilização de dados pessoais para a promoção política. Dessa vez a estratégia era a propagação de informações falsas, as tão faladas fake news.
A disputa pela presidência entre Jair Messias Bolsonaro e Fernando Haddad foi marcada pelas fake news, trazendo o termo a conhecimento do público comum após um escândalo nacional que envolvia o aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp, do mesmo grupo Facebook, que já estava envolvido com problemas em propagandas eleitorais relatados neste estudo.
A rede social WhatsApp era utilizada para o envio de mensagens em massa por empresas que eram especializadas nisso[7], disparando para centenas de números de usuários ao mesmo tempo, conseguindo alcance notório, o que por si só, já seria uma questionável ferramenta de manipulação do eleitor. Ocorre ainda que os usuários são identificados através dos seus números de telefone celular, que foram conseguidos por meio de vazamento de dados nas redes sociais, também comercializados por empresas, incluindo as mesmas que oferecem os serviços de divulgação em massa.
O que torna ainda mais grave a perturbadora violação da privacidade é a manipulação da população por meio das mensagens com teor falso ou duvidoso, objeto dos disparos. A alta circulação de informações sem qualquer requisito criavam imagens falsas de pessoas, disseminavam falsas notícias e manipulavam os usuários[8].
Neste sentido, o Tribunal Superior Eleitoral emitiu a resolução nº 23.610 em dezembro de 2019, que dispõe sobre as propagandas eleitorais, onde estabelecia em seu art. 28, IV, a e b, a proibição do envio em massa de conteúdos através da internet, consolidando-se como um dos primeiros movimentos do direito brasileiro contra as ameaças da manipulação do eleitorado através da utilização de dados pessoais (BRASIL, 2019).
Em um contexto histórico onde os dados pessoais possuem tanto poder, nada seria menos previsível que a sua comercialização. O valor contido nas informações dos usuários teve cada vez mais notoriedade, chamando a atenção e evidenciando a necessidade da regulamentação desse bem tão valioso e que até então existia a sombra da dúvida sobre sua titularidade e legalidade de tratamento.
Neste sentido, a legislação brasileira pode contar com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), Lei de nº 13.709 de 2018, impulsionada pelos direitos fundamentais da liberdade e privacidade, que regulamenta a utilização dos dados pessoais, não somente da rede de internet, mas de toda àquela em que a coleta ou o tratamento ocorra em território nacional, bem como aquelas em que o objetivo seja oferta ou fornecimento de bens e serviços que demandem dessas informações, nos termos do art. 3º, I, II e III (BRASIL, 2018).
A LGPD trouxe consigo o conceito dos termos objetos da legislação, trazendo, por exemplo, a figura do titular (aquele a quem se refere os dados), do controlador (a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados) e do operador (aquele que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador), vide art. 5º e incisos desta Lei. Além disso, ainda definiu em seu art. 6º e incisos os princípios a qual devem responder as atividades de tratamento, prioritariamente a boa-fé, presente no caput do mesmo (BRASIL, 2018). Estes primeiros passos discorridos podem parecer mera formalidade, mas é o início da regulamentação das práticas de exploração dos dados pessoais de usuários que até então não tinham a quem se reportar.
No art. 7º da LGPD tem-se as hipóteses cabíveis para o tratamento de dados, onde em seu inciso I diz que a utilização desses dados deve ser consentida pelo titular e somente será utilizado para a finalidade informada (BRASIL, 2018). O parágrafo 5º do mesmo dispositivo ainda tutela sobre o compartilhamento dos dados pessoais entre terceiros, que somente deve se dar através de autorização do titular, ou nos termos em que a própria Lei (BRASIL, 2018), vedando o que ocorreu com a Cambridge Analytica ao utilizar os dados pessoais conseguidos pelo Facebook, ou na venda de dados que ocorreram nas eleições de 2018 para a disseminação de noticiais falsas.
As tutelas previstas regem em sua maioria o direito à privacidade, onde o usuário pode decidir o quanto da sua pessoalidade poderá ser utilizada e de que forma será utilizada (FRAZÃO, 2019). Além disso, a legislação também trata dos direitos do usuário como titular dos seus dados, conferindo-lhe livre acesso e de forma facilitada sobre como estão sendo utilizados, inclusive sobre as informações do controlador, uso, compartilhamento e a finalidade desse tratamento, nos termos do art. 9º da LGPD, que segundo Danilo Doneda, é apenas a consagração ao direito da autodeterminação informativa, onde o titular do domínio possui controle sobre este (DONEDA, 2006)
Ainda, consolidando autodeterminação de Doneda, a justiça brasileira possui o remédio constitucional Habeas Data, amparado no art. 5º, LXXII e alíneas da CF/88, o qual determina o conhecimento e a retificação dos seus dados, ainda que públicos, vejamos o entendimento jurisprudencial:
AGRAVO REGIMENTAL - HABEAS DATAS. O interesse de agir, que justifica a impetração do habeas data, diz respeito à imperiosa necessidade do impetrante de, por meio deste remédio constitucional, obter dados personalíssimos constantes de registro de cunho público, bem como de retificar ou complementar tais dados e registros.
(TRT-3 - HD: 00109665220195030000 MG 0010966-52.2019.5.03.0000, Relator: Adriana Goulart de Sena Orsini, Data de Julgamento: 01/07/2020, 1a Secao de Dissidios Individuais, Data de Publicação: 01/07/2020.)[9]
A legislação em estudo é o que há de mais palpável e completo dentro do sistema jurídico brasileiro para regulamentar a utilização dos dados pessoais e coibir práticas imorais atentatórias contra os direitos da pessoa humana, devendo ser observada com cautela juntamente do direito eleitoral, para que sirva de amparo para possíveis práticas contra a democracia.
Além das gravosas violações da privacidade da pessoa humana que vem sendo colocada com a exploração dos dados pessoais, existe a preocupação com a finalidade do uso dessas informações. Quando se tem a violação de um direito fundamental para trabalhar uma campanha eleitoral, o sistema legislativo deve se atentar às ameaças à direitos tão importantes quanto.
No Brasil, a grande marca para a regulamentação da utilização de dados é a LGPD como já vem sendo exposto, devendo-se observar com olhar especial a necessidade de consentimento do usuário para a utilização de suas informações, podendo escolher se deseja ou não fazer parte de investidas marqueteiras políticas, por exemplo.
Apesar de se tratar de um avanço, é de questionável eficácia, levando em conta as condições em que são submetidos os usuários estes termos de adesão de demasia extensão que impossibilita a pessoa comum o seu entendimento, refletindo a pesquisa já citada do FecomercioSP. Assim sendo, a legislação traz a expressa necessidade da clareza desses termos, devendo ser de fácil compreensão para a pessoa média, assegurando o ato de consentimento da utilização desse bem pessoal (FRAZÃO, 2019).
Neste sentido, se faz fundamental a denominação dos sujeitos envolvidos na captura e tratamento desses dados pessoais, em principal o regido pelo art. 28 da legislação que regulamenta as eleições, Lei 9.504/97, dispositivo que trata da prestação de contas nas eleições, incluindo propagandas eleitorais, como exemplo o § 10, II, vejamos:
§ 10. O sistema simplificado referido no § 9o deverá conter, pelo menos:
II - Identificação das despesas realizadas, com os nomes e o CPF ou CNPJ dos fornecedores de material e dos prestadores dos serviços realizados;
A identificação dos fornecedores ou prestadores de serviço, à luz do art. 3º e incisos da LGPD, trará a figura dos responsáveis pela exploração irregular. Assim as responsabilidades são atribuídas aos partidos e coligações políticas, bem como as empresas que detém as bases de dados. Essas empresas seriam, portanto, os controladores dos dados pessoais, podendo ser responsabilizadas pela utilização indevida vez que agora tem uma regulamentação específica.
Ora, se em 2018 empresas que detinham bancos de dados repassavam essas informações para uma terceira empresa que criava um mecanismo de disparo de mensagens em massa, agora ambas seriam responsabilizadas, sendo acometidas as sanções administrativas e multas. Como já mencionado, o art. 8º da LGPD requer a expressa autorização do titular dos dados quanto ao seu tratamento (BRASIL, 2018). Se o usuário mantinha seus dados em uma empresa de telemarketing e esses dados são compartilhados com outra empresa especializada na propaganda eleitoral, a falta de consentimento acarreta a violação do dispositivo.
Ao final das informações expostas nesta pesquisa, pode-se perceber que o Direito Eleitoral juntamente à Constituição Federal ampara e guarda a democracia por meio da proteção do seu objeto, o sufrágio.
Ainda, é possível desenvolver o entendimento do conceito dos dados pessoais, principal ferramenta do marketing atual, objeto de extremo valor econômico e que vem cada mais tomando notoriedade jurídica. Assim, os dados pessoais passam a ser utilizados no âmbito do marketing eleitoral como poderoso instrumento para as estratégias em propagandas.
O poder das informações pessoais é demonstrado nos conhecidos casos citados, nos Estados Unidos e em Trindade e Tobago, onde eleições foram ganhas através de campanhas organizadas de acordo com dados colhidos dos eleitores. Segundo o ex-funcionário da Cambridge Analytica, as tendências traçadas dos usuários eram utilizadas para definir quais desses teriam mais facilidade de seguirem as tendências das pelas postagens e propagandas contra Hillary e “pro-Trump” (WYLIE, 2019).
A utilização dessas informações, além de claro atentado ao direito à privacidade da pessoa, é também atentatório à formação do livre arbítrio, que deveria ser usada para determinar as escolhas políticas. Uma vez que o usuário é bombardeado por tendenciosas mensagens contra um candidato e a favor de outro, sua concepção inicial começa a ser alterada, tendendo às escolhas que a empresa de marketing deseja despertar.
Não pairam dúvidas, portanto, que a fomentação das decisões particulares dos eleitores por meio da captação ilegal e irregular de dados pessoais é grave manipulação da personalidade, colocando em risco o processo de sufrágio, que deveria ser a escolha do povo nos termos da sua própria concepção.
Não obstante, pode-se concluir que a legislação brasileira já avança na proteção à democracia, desde legislações propriamente eleitorais que regulamentam as propagandas até a própria Lei Geral de Proteção de Dados, que resguarda o usuário neste âmbito de primeira importância para o ordenamento. Contudo, ainda é extenso o caminho para o desenvolvimento da legislação que possa coibir as ações atentatórias aos processos democráticos eleitorais, devendo aumentar a atuação do Direito Eleitoral na proteção dos dados pessoais dentro da internet, bem como a criação de um órgão específico para fiscalização e sanção desta regulamentação.
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[1] Ma. Rochele Juliane Lima Firmeza Bernardes, professora do curso de Direito no Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA. E-mail: [email protected].
[2] G1. Mundo tem 3,2 bilhões de pessoas conectadas à internet, diz UIT. Disponível em: <http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2015/05/mundo-tem-32-bilhoes-de-pessoas-conectadas-internet-diz-uit.html>. Acesso em: 02 de set. de 2020.
[3] FECOMERCIOSP. Comportamento do Usuário Paulistano na Internet. 2013. Disponível em: <https://www.fecomercio.com.br/noticia/pesquisa-fecomercio-detalha-o-comportamento-do-usuario-paulistano-na-iInternet>. Acesso em 09 out. 2020.
[4] CLINTON leads Trump by 12 points in Reuters/Ipsos poll. Reuters, 2016. Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-usa-election-poll-idUSKCN10Y28J>. Acesso em: 22 de out. de 2020.
[5] Leaked: Cambridge Analytica's blueprint for Trump victory. The Guardian, 2018. Disponível em: <https://www.theguardian.com/uk-news/2018/mar/23/leaked-cambridge-analyticas-blueprint-for-trump-victory>. Acesso em: 22 de out. de 2020.
[6] The Great Hacker. Produção: Karim Amer, Pedro Kos, Geralyn Dreyfous, Judy Korin. NETFLIX, 2019. Documentário. Duração, 2h 19min.
[7] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/whatsapp-admite-envio-massivo-ilegal-de-mensagens-nas-eleicoes-de-2018.shtml>. Acesso em 07 de mai. de 2021.
[8] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/empresarios-bancam-campanha-contra-o-pt-pelo-whatsapp.shtml>. Acesso em: 07 de mai. de 2021.
[9] Disponível em: <https://trt-3.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1146306777/habeas-data-hd-09665220195030000-mg-0010966-5220195030000>. Acesso em: 07 de maio.de 2021.
Bacharelando em Direito pelo Centro Universitário Santo Agostinho - UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NETO, Francisco Rodrigues Galvão. A utilização de dados da rede de computadores nas eleições: os riscos a democracia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 jun 2021, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56613/a-utilizao-de-dados-da-rede-de-computadores-nas-eleies-os-riscos-a-democracia. Acesso em: 22 nov 2024.
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Por: DANIELA ALAÍNE SILVA NOGUEIRA
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