WELLSON ROSÁRIO SANTOS DANTAS[1]
(orientador)
RESUMO: O Código Civil de 2002, ao instituir que o “parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” deixou margem a interpretação do estado filiativo que não advém da consanguinidade e da adoção. O que ocorre é uma verdadeira modificação na ideologia do estado de filiação, demonstrando que a relação de pai/filho não está estritamente ligada a transmissão de genes. Desse modo, este estudo tem como escopo discorrer sobre a paternidade socioafetiva, apresentando além de seus elementos, e a sua influência no direito sucessório. A metodologia empregada é o método de interpretação dialético, com uma abordagem pelo método dedutivo, uma vez que esse tema ainda não possui grande abrangência doutrinária no Brasil. A técnica de pesquisa utilizada foi a bibliográfica. Nos resultados, ficou evidenciado que a doutrina e jurisprudência vêm se aperfeiçoando no reconhecimento desta modalidade de filiação, garantindo àqueles que efetivamente preenchem os requisitos de posse do estado de filho a transferência de bens, direitos, encargos e obrigações, quando da abertura da sucessão, no caso de enquadramento como herdeiro, conforme ordem de sucessão hereditária.
Palavras-chave: Paternidade. Socioafetiva. Direito de Sucessão. Brasil.
ABSTRACT: The Civil Code of 2002, by establishing that "kinship is natural or civil, as a result of inbreeding or other origin" left room for the interpretation of the filiative status that does not come from inbreeding and adoption. What happens is a real change in the ideology of the state of affiliation, demonstrating that the parent/child relationship is not strictly linked to the transmission of genes. Thus, this study aims to discuss socio-affective fatherhood, presenting in addition to its elements its influence on inheritance law. The methodology used is the dialectical interpretation method, with an approach through the deductive method, since this theme does not yet have a wide doctrinal scope in Brazil. The research technique used will be bibliographic. In the results, it was evidenced that the doctrine and jurisprudence have been, guaranteeing to those who effectively fulfill the requirements of possession of the state of a child the transfer of assets, rights, charges and obligations, when the succession is opened, in the case of classification as heir, according to order of hereditary succession
Keywords: Paternity. Socio-affective. Right of Succession. Brazil.
Sumário: 1. Introdução. 2. Paternidade socioafetiva: aspectos gerais. 3. Elementos Constitutivos da paternidade socioafetiva. 4. A paternidade socioafetiva relacionada a sucessão. 5. Considerações Finais. 6. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A configuração familiar é um dos assuntos mais recorrentes do Direito. Afinal, a sociedade é oriunda das relações familiares. Deste fato, entende-se que as leis que regem as relações familiares são no campo jurídico, de enorme importância.
Dentre os variados assuntos relacionados a essa área jurídica, a paternidade socioafetiva tem se tornado cada vez mais discutida. Caracterizada como sendo uma relação estritamente afetiva, não envolvendo obrigatoriamente a questão biológica, a paternidade socioafetiva é hoje um assunto que representa bem os novos arranjos familiares.
Com base nessa temática, esse estudo inicialmente discute o que seja esse tipo de relação familiar, apresentando seu conceito, sua normatização e seus efeitos nas relações familiares, trazendo ainda caso específico sobre o tema.
Será ainda discutido de que forma a paternidade socioafetiva afeta as relações familiares, principalmente no que tange à questão sucessória. A problemática desse estudo tem a seguinte indagação: como se dá a questão sucessória na seara da paternidade socioafetiva?
A par disso, o objetivo geral deste trabalho é discutir as questões sucessórias no caso de paternidade socioafetiva. Nos seus objetivos específicos, traz-se a jurisprudência e os princípios constitucionais e civis que norteiam essa temática.
Devido a importância dada a esse assunto, principalmente pelo fato de que as relações familiares vêm se modificando significativamente ao longo das últimas décadas, em especial no que se refere à paternidade, a escolha desse tema é de extrema importância para a área jurídica, ajudando os juristas e doutrinadores a encontrarem um caminho mais plausível para as relações familiares contendo a figura da paternidade socioafetiva.
No que tange a metodologia utilizada, esse trabalho é uma revisão de literatura, onde “esse tipo de artigo caracteriza-se por avaliações críticas de materiais que já foram publicados, considerando o progresso das pesquisas na temática abordada” (KOLLER et al, 2014, p. 40), pois trata-se de avaliações críticas sobre a paternidade socioafetiva no que se refere à sucessão.
Desse modo, teve-se como base à análise qualitativa dos institutos que compõem o nosso ordenamento jurídico pátrio, tanto no que se refere às leis gerais, como a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002, bem como quanto às leis específicas, como a Lei de Alimentos (Lei n. 5.478/68), e mesmo, quando necessário, a utilização do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990). Associando, de forma integrada, o estudo da legislação vigente à análise do atual entendimento doutrinário e jurisprudencial, dando-se particular importância aos precedentes oriundos dos Tribunais brasileiros. Soma-se a isso, a análise do aspecto jurídico desse tema, procurou-se também abordar o aspecto social da relação, como, por exemplo, o afeto que permeia a relação familiar.
Assim a presente revisão de literatura, foi realizada mediante análise de documentos por meio de pesquisa doutrinaria e artigos já publicados sobre o tema além de análise jurisprudencial.
2. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA: ASPECTOS GERAIS
O assunto referente à família é amplo e complexo. Por conta disso, não é intuito desse trabalho abarcar todos os meandros referentes ao Direito de Família. Foca-se extremamente ao tema central do respectivo estudo: paternidade socioafetiva.
De acordo com Oliveira (2018, p. 24) a “paternidade socioafetiva, é a prova da força que o afeto tem na vida dos indivíduos, é o vínculo gerado entre pai e filho, independente da consanguinidade”. Isso fica evidente quando constatado que para se constituir uma família é preciso apenas que haja afeto, não importando de onde venha a filiação sanguínea do filho socioafetivo.
O afeto surge como um novo modelo de análise de paternidade dentro do Direito de família, vez que este está intimamente ligado à base do núcleo familiar. Assim como para a família, a filiação também passa a ser visto pela ótica do afeto, havendo assim uma desbiologização da paternidade, indo além de um código genético. A paternidade não é somente um fato natural, é também cultural, é como o popularmente falado “Pai é quem cria” (OLIVEIRA, 2018).
O pai afetivo é aquele que cuida, que educa, que dá carinho, dá amor, está presente na vida da criança, que assume as suas responsabilidades, que age de forma efetiva com a figura do pai, é aquele em que a criança vê como o pai dela, vê nele a figura de confiança, e principalmente de afeto. Ou seja, a paternidade afetiva, é uma relação construída pelo cotidiano com a criança, de forma cultural e psicológica.
O pai afetivo é aquele que ocupa na vida do filho, o lugar do pai ( a função). É uma espécie de adoção de fato. É aquele que ao dar abrigo, carinho, educação, amor ao filho, expõe o fato íntimo da filiação, apresentando-se em todos os momentos inclusive naqueles em que se torna a lição de casa ou verifica o boletim escolar. Enfim, é o pai das emoções, dos sentimentos e é o filho do olhar embevecido que reflete aqueles sentimentos que sobre ele se projetam. Em suma, com base em tudo o que vimos anteriormente, entendemos que a parentalidade socioafetiva pode ser definida como o vínculo de parentesco civil entre pessoas que não possuem entre si um vínculo biológico, mas que vivem como se parentes fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente entre elas (NOGUEIRA, 2010, p. 119).
A paternidade afetiva está prevista de forma implícita na Constituição Federal e no Código Civil. O Art. 226, §6° CF, estabelece que todos os filhos são iguais, independente da sua origem, há outros artigos em que se faz menção a afetividade, como o art.226, §§§ 3°,4° e 7°. Por sua vez o Código Civil, traz em seu Art.1.593, abertura para o parentesco advindo do afeto, “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (BRASIL, 2002).
Todavia, é necessário apresentar que no Código Civil de 2002 existem outras referências em relação à paternidade socioafetiva, conforme se expõe o Quadro 1:
NORMA |
DESCRIÇÃO |
Art. 1.593 |
O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. A principal relação de parentesco é a que se configura na paternidade (ou maternidade) e na filiação. A norma, ao contrário do persistente equívoco da jurisprudência, inclusive do STJ, é inclusiva, pois não atribui a primazia à origem biológica; a paternidade de qualquer origem é dotada de igual dignidade. |
Art. 1.596 |
Reproduz a regra constitucional de igualdade dos filhos, havidos ou não da relação de casamento (estes, os antigos legítimos), ou por adoção, com os mesmos direitos e qualificações. O § 6º do art. 227 da Constituição revolucionou o conceito de filiação e inaugurou o paradigma aberto e inclusivo. |
Art. 1.597 |
Admite a filiação mediante inseminação artificial heteróloga, ou seja, com utilização de sêmen de outro homem, desde que tenha havido prévia autorização do marido da mãe. A origem do filho, em relação aos pais, é parcialmente biológica, pois o pai é exclusivamente socioafetivo, jamais podendo ser contraditada por investigação de paternidade ulterior. |
Art. 1.605 |
Consagrador da posse do estado de filiação, quando houver começo de prova proveniente dos pais, ou, “quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos”. As possibilidades abertas com esta segunda hipótese são amplas. As presunções “veementes” são verificadas em cada caso, dispensando-se outras provas da situação de fato. Na experiência brasileira, incluem-se entre a posse de estado de filiação o filho de criação e a adoção de fato, também chamada “adoção à brasileira”, que é feita sem observância do processo judicial, mediante declaração falsa ao registro público. |
Art. 1.614 |
Continente de duas normas, ambas demonstrando que o reconhecimento do estado de filiação não é imposição da natureza ou de exame de laboratório, pois admitem a liberdade de rejeitá-lo. A primeira norma faz depender a eficácia do reconhecimento ao consentimento do filho maior; se não consentir, a paternidade, ainda que biológica, não será admitida; a segunda norma faculta ao filho menor impugnar o reconhecimento da paternidade até quatro anos após adquirir a maioridade. Se o filho não quer o pai biológico, que não promoveu o registro após seu nascimento, pode rejeitá-lo no exercício de sua liberdade e autonomia. Assim sendo, permanecerá o registro do nascimento constando apenas o nome da mãe. Claro está que o artigo não se aplica contra o pai registral, se o filho foi concebido na constância do casamento ou da união estável, pois a declaração ao registro público do nascimento não se enquadra no conceito estrito de reconhecimento da paternidade. |
QUADRO 1 – Artigos Civis a respeito da Paternidade Socioafetiva
Fonte: Adaptado de Lôbo (2014)
Esse assunto é hoje bastante discutido, principalmente quando se liga às questões práticas. Ou seja, de que forma isso afeta a família, principalmente a tradicional (pai, mãe e filhos).
Como bem descreve Lôbo (2014), muito se avançou no Brasil no que a doutrina jurídica especializada denomina paternidade (e filiação) socioafetiva, entendida como a que se constitui na convivência familiar, independentemente da origem do filho.
O supracitado autor analisa que esse tema deve ser visto sob duas óticas: uma, a integração definitiva da pessoa no grupo social familiar; outra, a relação afetiva tecida no tempo entre quem assume o papel de pai e quem assume o papel de filho. Em suas palavras:
Cada realidade, por si só, permaneceria no mundo dos fatos, sem qualquer relevância jurídica, mas o fenômeno conjunto provocou a transeficácia para o mundo do direito, que o atraiu como categoria própria. Essa migração foi possível porque o direito brasileiro mudou substancialmente, máxime a partir da Constituição de 1988, uma das mais avançadas do mundo em matéria de relações familiares, cujas linhas fundamentais projetaram-se no Código Civil de 2002 (LÔBO, 2014, p. 02).
O ponto essencial é que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não-biológica; em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não-biológica (SANCHES, 2014).
Tradicionalmente, a situação comum é a presunção legal de que a criança nascida biologicamente dos pais que vivem unidos em casamento adquire o status jurídico de filho. Paternidade biológica aí seria igual a paternidade socioafetiva. Mas há outras hipóteses de paternidade que não derivam do fato biológico, quando este é sobrepujado por outros valores que o direito considera predominantes (SANCHES, 2014).
O Direito de Família está necessariamente ligado ao afeto, pois a base da família é o vínculo afetivo, é o que concretiza o lar familiar e torna esse vínculo irrefutável. A família se fortalece quando o amor fala por ela. Dias (2013, p. 72) coloca que “o atual princípio norteador do direito de família é o princípio da afetividade, posto que é atribuído valor jurídico ao afeto”. Isso reflete nas inúmeras decisões em que o critério afetivo é colocado lado a lado ao critério biológico.
Flávio Tartuce em seu artigo O princípio da afetividade no Direito de Família (2016), explana três consequências deste princípio, incluindo a paternidade socioafetiva, a saber:
A terceira e última consequência da afetividade a ser pontuada é o reconhecimento da parentalidade socioafetiva como nova forma de parentesco, enquadrada na cláusula geral “outra origem”, do art. 1.593 do CC/2002. Não se olvide que a ideia surgiu a partir de histórico artigo de João Baptista Villela, publicado em 1979, tratando da “desbiologização da paternidade”. Concluiu o jurista, na ocasião, que o vínculo de parentalidade é mais do que um dado biológico, é um dado cultural, consagração técnica da máxima popular pai é quem cria. Paulatinamente, a jurisprudência passou a ponderar que a posse de estado de filho deve ser levada em conta para a determinação do vínculo filial, ao lado das verdades registral e biológica. Nos acórdãos mais notórios, julgou-se como indissolúvel o vínculo filial formado nos casos de reconhecimento espontâneo de filho alheio, cumulado com a convivência posterior entre pais e filhos (por todos: STJ, REsp 234.833/MG, Rel. Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, QUARTA TURMA, julgado em 25/09/2007, DJ 22/10/2007, p. 276; REsp 709.608/MS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 05/11/2009, DJe 23/11/2009 e REsp 1.259.460/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 29/06/2012). (TARTUCE, 2016, p. 33).
A filiação pode ser classificada sob a ótica biológica, jurídica e socioafetiva. Sendo ela socioafetiva, Carvalho (2012, p. 107) a define como sendo “construído na convivência familiar por atos de carinho e amor, olhares, cuidados, preocupações, responsabilidades, participações diárias”.
Para esta autora, investe-se no papel de mãe ou pai aquele que pretende, intimamente, sê-lo e age como tal; a saber:
[...] troca as fraldas, dá-lhe de comer, brinca, joga bola com a criança, leva-a para a escola e para passear, cuida da lição, ensina, orienta, protege, preocupa-se quando ela está doente, leva ao médico, contribui para a sua formação e identidade pessoal e social (CARVALHO, 2012, p. 108).
Ao longo das últimas décadas, diversos doutrinadores tinham chamado a atenção para o fato de haver uma necessidade de distinguir o que seja um genitor de um pai. Assim Lobo (2014, p. 02) diz que:
Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Afinal, qual a diferença razoável que deva haver, para fins de atribuição de paternidade, entre o homem dador de esperma, para inseminação heteróloga, e o homem que mantém uma relação sexual ocasional e voluntária com uma mulher, da qual resulta concepção? Tanto em uma como em outra situação, não houve intenção de constituir família. Ao genitor devem ser atribuídas responsabilidades de caráter econômico, para que o ônus de assistência material ao menor seja compartilhado com a genitora, segundo o princípio constitucional da isonomia entre sexos, mas que não envolvam direitos e deveres próprios de paternidade.
A paternidade é muito mais que o provimento de alimentos ou a causa de partilha de bens hereditários. Envolve a constituição de valores e da singularidade da pessoa e de sua dignidade humana, adquiridos principalmente na convivência familiar durante a infância e a adolescência.
A paternidade é múnus, direito-dever, construída na relação afetiva e que assume os deveres de realização dos direitos fundamentais da pessoa em formação “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar” (art. 227 da Constituição). É pai quem assumiu esses deveres, ainda que não seja o genitor.
A filiação socioafetiva é vista como uma construção da realidade fática; pai não é apenas aquele que transmite a carga genética, é também aquele que exerce tal função no cotidiano. Nesse sentido a jurisprudência pátria vem decidindo da seguinte maneira sobre o tema:
PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO CIVIL. ANULAÇÃO PEDIDA POR PAI BIOLÓGICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PREPONDERÂNCIA. 1. A paternidade biológica não tem o condão de vincular, inexoravelmente, a filiação, apesar de deter peso específico ponderável, ante o liame genético para definir questões relativas à filiação. 2. Pressupõe, no entanto, para a sua prevalência, da concorrência de elementos imateriais que efetivamente demonstram a ação volitiva do genitor em tomar posse da condição de pai ou mãe. 3. A filiação socioafetiva, por seu turno, ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família. 4. Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura do venire contra factum proprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família. 5. Na hipótese, a evidente má-fé da genitora e a incúria do recorrido, que conscientemente deixou de agir para tornar pública sua condição de pai biológico e, quiçá, buscar a construção da necessária paternidade socioafetiva, toma-lhes o direito de se insurgirem contra os fatos consolidados. 6. A omissão do recorrido, que contribuiu decisivamente para a perpetuação do engodo urdido pela mãe, atrai o entendimento de que a ninguém é dado alegrar a própria torpeza em seu proveito (Nemo auditur propriam turpitudinem allegans) e faz fenecer a sua legitimidade para pleitear o direito de buscar a alteração no registro de nascimento de sua filha biológica.7. Recurso especial provido. [2] (grifo meu)
Outra categoria importante é a do estado de filiação, compreendido como o que se estabelece entre o filho e o que assume os deveres de paternidade, que correspondem aos direitos mencionados no art. 227 da Constituição. O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco, compreendendo um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados (SANCHES, 2014).
O filho é titular do estado de filiação, da mesma forma que o pai é titular do estado de paternidade em relação a ele. Assim, onde houver paternidade juridicamente considerada haverá estado de filiação. O estado de filiação é presumido em relação ao pai registral (SANCHES, 2014).
Seguindo os ensinamentos de Orlando Gomes (2009 apud OLIVEIRA, 2018, p. 26) a posse de estado de filho se dá pelo:
[...] conjunto de circunstâncias que expõem a qualidade do indivíduo como filho legítimo, e as consequências derivadas desta relação, tendo como requisitos: ter o nome dos genitores; ser tratado como filho legítimo de forma contínua e ser constantemente reconhecido como filho pelos pais e pela sociedade.
Portanto, toda vez que um estado de filiação estiver constituído na convivência familiar duradoura, com a decorrente paternidade socioafetiva consolidada, esta não poderá ser impugnada nem contraditada. A investigação de paternidade só é cabível quando não houver paternidade, nunca para desfazê-la (CARVALHO, 2012).
Ainda sobre essa questão, Lôbo (2014) aponta um fundamento equivocado, frequentemente utilizado pela jurisprudência dos tribunais, antes do Código Civil de 2002, é o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece ser o reconhecimento do estado de filiação direito personalíssimo, indisponível e imprescritível.
Para esse autor, o equívoco radica no fato de nele enxergar-se o direito a impugnar paternidade já existente. Estado de filiação resulta de convivência familiar duradoura. Assim, “se já existe, pouco importando sua origem, o art. 27 do ECA é imprestável (LÔBO, 2014).
De toda forma, a Posse de Estado de filho, é essencial para que seja feito o reconhecimento da paternidade socioafetiva, perante a justiça e o meio social, visto que são elementos que traduzem a existência dessa relação, é necessário ressaltar que esse Estado não é exclusivo da paternidade socioafetiva, mas da biológica também, visto que os pais biológicos também devem o tratar como se fossem os filhos afetivos, dando-lhes o afeto necessário (OLIVEIRA, 2018).
O Conselho da Justiça Federal traz em seu enunciado n° 519, e o Enunciado n° 7 do Instituto Brasileiro de Direito de Família corroboram com a importância deste Estado.
Enunciado n° 519: Art. 1.593: O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais.
Enunciado n° 7 do IBDFAM: A posse de estado de filho pode constituir a paternidade e maternidade.
Cabe ressalvar que todos os elementos que constituem a Posse do Estado de filho, devem ser públicos, notórios, estáveis e inequívocos, sendo assim a determinação da paternidade afetiva, através deste reconhecimento é realizado de forma objetiva, mantendo a segurança jurídica das relações sociais.
3. ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
É possível dizer que um vínculo como tal, não pode ser mensurado apenas por um único ato, mas sim por um conjunto de atos de afeição e solidariedade, de forma que deixem explícita a relação de pai/mãe e filho, comprovando uma convivência de respeito, pública e bem estabelecida. Necessário entender, que todo caso deve ser analisado de forma separada, analisando as nuances de cada um, e considerando sempre os princípios fundamentais e norteadores do Direito de Família, como por exemplo, a dignidade da pessoa humana, direito da criança e do adolescente a convivência familiar e a igualdade entre os filhos.
De acordo com Cassettari (2015), há três elementos que são essenciais para a existência da paternidade socioafetiva sendo eles: o laço da afetividade, vínculo afetivo e o tempo de convivência.
Analisando cada um dos elementos, é inegável, que o afeto, seja um dos pilares fundamentais para a caracterização da paternidade socioafetiva. É necessário que haja a existência de laços emocionais afetivos, entre as partes envolvidas, para que tenha sentido na ação. Esse também é o entendimento do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), inclusive em um dos julgados, não foi reconhecida a paternidade socioafetiva, por falta deste requisito, não conseguiram prova o laço afetivo entre as partes, veja-se:
Ação negatória de paternidade. Pedido de anulação de registro de nascimento e de extinção de obrigação alimentar. Paternidade reconhecida em ação anterior de investigação de paternidade. Exame de DNA. Paternidade afastada. Paternidade socioafetiva. Não comprovação. Relativização da coisa julgada. Recurso provido. Procedência da ação. Embora a paternidade que se pretende desconstituir tenha sido reconhecida e homologada em ação de investigação de paternidade anterior, in casu, impõe-se a relativização da coisa julgada, considerando que àquela época não se realizou o exame de DNA,o que somente veio a ser feito nestes autos, anos depois, concluindo-se pela inexistência de vínculo biológico entre o Apelante e o Apelado. Na situação específica destes autos, não se pode concluir pela existência da paternidade afetiva, já que não comprovada a existência de laços emocionais e afetivos entre o Apelante e o Apelado.[3]
De todo modo, não há uma fórmula para se identificar o vínculo afetivo, porém, há elementos estruturais que podem configurá-lo, são eles: tempo de convívio familiar, afetividade, comportamentos e vontade de ser pai (SANCHES, 2014).
O tempo é um dos elementos primordiais para que se construa os laços de afetividade entre os seres humanos, é com tempo de convivência que conseguimos desenvolver e estabelecer, o afeto, o carinho, a cumplicidade, por isso ele também é fundamental para se consolidar esta relação.
Não há uma fórmula para se estabelecer o momento exato em que nasceu o vínculo afetivo, ou sequer, estabelecer um tempo mínimo para isto, já que tal vínculo varia de caso a caso, levando-se em conta, sempre o melhor para o interesse da criança.
O STJ já enfrentou tal situação quando negou o pedido de anulação de registro de paternidade, por reconhecer o vínculo afetivo gerado em 22 anos de convivência entre as partes.
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - EXISTÊNCIA DE VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO NUTRIDO DURANTE APROXIMADAMENTE VINTE E DOIS ANOS DE CONVIVÊNCIA QUE CULMINOU COM O RECONHECIMENTO JURÍDICO DA PATERNIDADE - VERDADE BIOLÓGICA QUE SE MOSTROU DESINFLUENTE PARA O RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE ALIADA AO ESTABELECIMENTO DE VÍNCULO AFETIVO - PRETENSÃO DE ANULAÇÃO DO REGISTRO SOB O ARGUMENTO DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO - IMPOSSIBILIDADE - ERRO SUBSTANCIAL AFASTADO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS - PERFILHAÇÃO - IRREVOGABILIDADE - RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I - O Tribunal de origem, ao contrário do que sustenta o ora recorrente, não conferiu à hipótese dos autos o tratamento atinente à adoção à moda brasileira, pois em momento algum adotou a premissa de que o recorrente, ao proceder ao reconhecimento jurídico da paternidade, tinha conhecimento da inexistência de vínculo biológico; II - O ora recorrente, a despeito de assentar que tinha dúvidas quanto à paternidade que lhe fora imputada, ao argumento de que tivera tão-somente uma relação íntima com a genitora de recorrido e que esta, à época, convivia com outro homem, portou-se como se pai da criança fosse, estabelecendo com ela vínculo de afetividade, e, após aproximadamente vinte e dois anos, tempo suficiente para perscrutar a verdade biológica, reconheceu juridicamente a paternidade daquela; III - A alegada dúvida sobre a verdade biológica, ainda que não absolutamente dissipada, mostrou-se irrelevante, desinfluente para que o ora recorrente, incentivado, segundo relata, pela própria família, procedesse ao reconhecimento do recorrido como sendo seu filho, oportunidade, repisa-se, em que o vínculo afetivo há muito encontrava-se estabelecido; IV - A tese encampada pelo ora recorrente no sentido de que somente procedeu ao registro por incorrer em erro substancial, este proveniente da pressão psicológica exercida pela genitora, bem como do fato de que a idade do recorrido corresponderia, retroativamente, à data em que teve o único relacionamento íntimo com aquela, diante do contexto fático constante dos autos, imutável na presente via, não comporta Documento. 6238953 - RELATÓRIO, EMENTA E VOTO - Site certificado Página 4 de 8 Superior Tribunal de Justiça guarida; V - Admitir, no caso dos autos, a prevalência do vínculo biológico sobre o afetivo, quando aquele afigurou-se desinfluente para o reconhecimento voluntário da paternidade, seria, por via transversa, permitir a revogação, ao alvedrio do pai-registral, do estado de filiação, o que contraria, inequivocamente, a determinação legal constante do art. 1.610, Código Civil; VI - Recurso Especial a que se nega provimento.[4]
E por fim, mas tão importante quanto os demais requisitos, devemos analisar a solidez deste vínculo, sendo necessário verificar se ele é realmente tão forte, ao ponto de realizar esta ação o colocando em igualdade com vínculo biológico, para tentar evitar, erro, vício ou fraude. Um dos indícios de que há um forte vínculo entre pai e filho, é a guarda fática, em que há essa convivência diária, no entanto ela não garante a solidez da relação, é apenas um indicador.
Uma vez estabelecida a paternidade socioafetiva, a mesma torna-se irretratável, conforme o Enunciado 339 da CJF. “A paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho.”
No momento de analisar os casos referente a paternidade socioafetiva, os Tribunais têm adotado o pensamento de Luiz Edson Fachin, quanto a “Posse do estado de filho” para verificar a existência dos requisitos que caracterizam a paternidade socioafetiva: a publicidade, continuidade e ausência de equívoco (OLIVEIRA, 2018).
Com isso, é possível afirmar que o estado de filiação socioafetiva possui características internas e externas:
O primeiro se dá com traços de indivisibilidade, indisponibilidades (pois diz respeito à personalidade) e imprescritibilidade (não se perde pelo não exercício), ao passo que o cunho externo se dá nos moldes de pessoalidade, generalidade e revestido de ordem pública (FARIAS; SIMÕES, 2017, p. 15).
Porém, é necessário ressaltar que a socioafetividade deve ser analisada em cada caso concreto, pois há variações impossíveis de serem enumeradas em razão do dinamismo social.
Assim, torna-se indispensável a visualização das relações entre pais e filhos com ênfase na realidade social, onde a filiação significa muito mais que um laço de sangue.
4. A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA RELACIONADA A SUCESSÃO
A profunda mudança de paradigma da paternidade, no direito brasileiro, significou centralizar a atenção na realização existencial das pessoas envolvidas (pai e filho) e na afirmação de suas dignidades; em uma palavra, na repersonalização, que em um conceito geral remete a ideia de mudança, transformação e foco nos objetivos em outros meios, tais meios que respeitam acima de tudo a equivalência de um direito sob outro.
Não podem os interesses patrimoniais serem objetos de investigações de paternidade, como ocorre quando o pretendido genitor biológico falece, deixando herança considerável. Todavia como resolver o inevitável conflito que se instaura entre esses interesses, de modo a preservar a paternidade socioafetiva?
Sob outra perspectiva, é razoável a pretensão patrimonial daquele que teve negado seu originário direito à filiação, cuja paternidade foi assumida por outrem. Advirta-se que o conflito apenas é possível em se tratando de situações enquadráveis na posse de estado de filiação, pois os demais estados de filiação não-biológica, isto é, decorrentes de adoção e de inseminação artificial heteróloga, cortam integralmente a relação com o passado biológico; nestas duas últimas hipóteses, a presunção legal de paternidade é absoluta, não podendo haver qualquer relação jurídica com o genitor biológico, salvo para fins de impedimento para casar (LÔBO, 2014).
Posta a questão dentro desses limites, de que modo podem ser compatibilizados os interesses pessoais e patrimoniais, quando o conflito se der entre paternidade socioafetiva derivada de posse de estado de filiação e o pretendido interesse em imputar responsabilidade ao genitor biológico falecido?
A resposta pode ser encontrada nas categorias gerais do sistema jurídico. Em resumo:
O estado de filiação é matéria afeta ao direito de família, inviolável por decisão judicial que pretenda negá-lo. Não pode haver, consequentemente, sucessão hereditária entre filho de pai socioafetivo e seu genitor biológico; com relação a este não há direito de família ou de sucessões. Mas, é possível resolver-se a pretensão patrimonial no âmbito do direito das obrigações. É razoável atribuir-se-lhe um crédito decorrente do dano causado pelo inadimplemento dos deveres gerais de paternidade (educação, assistência moral, sustento, convivência familiar, além dos demais direitos fundamentais previstos no art. 227 da Constituição) por parte do genitor biológico falecido, cuja reparação pode ser fixada pelo juiz em valor equivalente ao de uma quota hereditária se herdeiro fosse. Para isso será necessário ajuizar ação de reparação de dano moral e material, habilitando-se no inventário como credor do espólio, com requerimento de reserva de bens equivalentes para garantia da ação (LÔBO, 2014, p. 07).
O que se discute dentro dessa temática é justamente sobre as questões patrimoniais, que está intrinsecamente ligada ao direito sucessório.
Como explica inicialmente Arruda (2018), o direito sucessório, restrito à condição decorrente de morte (ou mortis causa), nada mais é do que o conjunto de normas que disciplinam a transferência do patrimônio, seja ativo e passivo, do morto.
O direito sucessório possui respaldo jurídico legal no artigo 1.786 do Código Civil, subdividindo-se em sucessão legítima e testamentária. A sucessão legítima é “aquela decorrente de lei, ou seja, a ordem de vocação hereditária prevista no ordenamento jurídico deve ser garantida, presumindo a vontade do autor da herança” (ARRUDA, 2018, p. 01).
Sendo esta sucessão também conhecida como ad intestato, por inexistir testamento prevendo a divisão da herança de forma diversa, abre-se margem para a segunda modalidade de sucessão, a testamentária.
A sucessão testamentária é “aquela originada pelo ato de última vontade do morto, por testamento, legado ou codicilo” (ARRUDA, 2018, p. 01).
Tal direito está embasado não apenas no direito de propriedade e na sua função social, previstos no artigo 5º, incisos XXII e XXIII, como também na valorização da dignidade humana, nos termos dos artigos 1º, inciso III e 3º, inciso I, todos da Constituição Federal.
Com o advento do falecimento de uma determinada pessoa, seus bens, direitos, encargos e obrigações devem ser transmitidos a outra pessoa. O princípio da saisine, previsto no artigo 1.784 do Código Civil, dispõe que a herança se transmite aos herdeiros no momento da morte, quando é aberta a sucessão.
O Código Civil prevê em seu artigo 1.829 a ordem de vocação hereditária, indicando os legitimados para receber a herança. Há a preferência, segundo o citado artigo, pela transmissão de todos os ônus e bônus preferencialmente aos parentes em linha reta, ou seja, aos descendentes e ascendentes (CC 1.591).
Artigo 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
(BRASIL, 2002)
Assim como os descendentes e os ascendentes, os cônjuges e companheiros, são considerados herdeiros necessários (CC 1.845), fazendo jus ao que se chama de legítima, ou seja, a pelo menos metade da herança deixada pelo morto. Os parentes colaterais, ou herdeiros facultativos, por sua vez, somente herdarão do morto se não existirem herdeiros necessários, nem testamento a terceiros.
Aos descendentes é priorizado, em face dos demais herdeiros necessários, o direito sucessório dos bens, direitos, encargos e obrigações da pessoa falecida. Pode haver, ainda, a sua concorrência com cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares (BRASIL, 2002).
O conceito de descendente abrange todas as espécies de filiação admitidas, tais como:
a) Consanguínea ou natural, decorrente da verdade biológica;
b) Civil, quando decorre de adoção;
c) Socioafetiva, constituída a partir da posse do estado de filho; e,
d) Social, decorrente de técnicas de reprodução assistida.
Cumpre ressaltar que, segundo dispõe o artigo 1.833 do Código Civil, entre os descendentes, os em grau mais próximo excluem os mais remotos, salvo o direito de representação.
Por ausência de expressa previsão legal acerca da sucessão socioafetiva, o tema é abordado pela doutrina e jurisprudência de forma bastante controversa. Há a corrente que entende que o não se fala em direito sucessório no contexto da paternidade socioafetiva.
Durante muitos anos a própria jurisprudência vinha recusando o direito sucessório de filhos com pais socioafetiva. Como já bem salientado, apesar de não haver dispositivo expresso de que o filho socioafetivo não possui direito patrimonial, muitas são as jurisprudências que entendem que este não possui direito, ficando a cargo do juiz no caso concreto aplicar o direito de forma adequada.
Reafirma a jurisprudência o pensamento de que não deve haver o direito de sucessão ao filho socioafetivo:
AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. INEXISTÊNCIA DO VÍNCULO PARENTAL. CARÁTER PATRIMONIAL. PROVA. 1. A ação de investigação de paternidade visa o estabelecimento forçado da relação jurídica de filiação. 2. Se o de cujos pretendesse reconhecer o recorrente como filho, certamente teria promovido o seu registro como filho (adoção à brasileira) ou, então, formalizado a sua adoção, ou, ainda, lavrado algum instrumento público neste sentido, mas nada foi feito, não tendo sido o autor sequer contemplado com alguma deixa testamentária, pois testamento ele fez... (TJ-RS - AC: 70041323528 RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 19/10/2011, Sétima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 24/10/2011).
Considerando que durante a vida o pai socioafetivo zela e cuida de seu filho socioafetivo, podendo reconhecer em vida civilmente a relação de filiação, e partindo do pressuposto de que pode ele ainda usar o testamento como meio de proteger o filho socioafetivo, muitos entendem que não há o que se falar em direito sucessório devidamente reconhecido de filho socioafetivo, cabe ao pai afetivo o cuidado e o zelo em deixar esse direito para que ele possa usufruir.
Neste sentido a jurisprudência:
APELAÇÃO DIREITO CIVIL. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. ADOÇÃO PÓSTUMA. AUSENCIA DE EXPRESSA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO ADOTANTE. Não cabe a adoção póstuma, se inequívoca a ausência de vontade do falecido em reconhecer os autores como seus filhos adotivos, ou de criação, porque nada nesse sentido providenciara quando ainda era vivo. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70054468616, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 26/06/2013).
Na visão de Santos (2017, p. 14) “se durante o decurso da vida não houve manifestação de vontade de no sentido de reconhecer o filho socioafetivo ou de testar em seu favor, não há o que se falar em direito de sucessão”, uma vez que caracteriza o interesse deste filho no reconhecimento meramente para efeitos patrimoniais e não para ter reconhecida a relação de afeto e amor que existia.
No entanto, apesar desses posicionamentos contrários, há um grande número de doutrinadores que reconhecem o direito à sucessão, como herdeiro necessário, eis que descendente, com base no princípio da igualdade entre os filhos, trazido pela Constituição Federal, em seu artigo 227, § 6º, reforçado pelo artigo 1.596 do Código Civil.
A tutela jurídica dada à afetividade se torna maior do que a disponibilizada para o direito consanguíneo. O reconhecimento da filiação socioafetiva produz todos os efeitos pessoais e patrimoniais que lhe são inertes, segundo o Enunciado 6 do IBDFAM, que prevê que “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental”.
Neste sentido e, ainda de forma bastante cautelosa, vem sendo proferidas recentes decisões sobre o tema, concedendo aos herdeiros socioafetivos igualdade no direito sucessório. É o que se observa o julgado abaixo citado:
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. DIREITO CONSTITUCIONAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM. INEXISTÊNCIA DE PAI REGISTRAL/BIOLÓGICO. EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO PATERNO-FILIAL QUE CARATERIZA A PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. INCLUSÃO DO NOME PATERNO. ANULAÇAO DE ESCRITURA PÚBLICA DE INVENTARÁRIO E PARTILHA. RECURSOS CONHECIDOS E NÃO PROVIDOS. SENTENÇA MANTIDA. 1. Os apelantes pretendem a modificação da r. sentença da instância a quo para que seja julgado improcedente o pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva e, por consequência seja declarada a legalidade da partilha dos bens anteriormente registrada. 2. Os adquirentes dos direitos sobre o imóvel, objeto do pedido de anulação da Escritura Pública de Inventário e Partilha, alegam, em sede preliminar, a ilegitimidade passiva, sob entendimento de não ser possível incluir o espólio no pólo passivo, mas somente os herdeiros. A preliminar não merece prosperar em virtude da superveniência de fato modificativo do direito que pode influir no julgamento da lide, conforme art. 462 do Código de Processo Civil, com a possibilidade da ocorrência da evicção. 3. A paternidade socioafetiva é construção recente na doutrina e na jurisprudência pátrias, segundo o qual, mesmo não havendo vinculo biológico alguém educa uma criança ou adolescente por mera opção e liberalidade, tendo por fundamento o afeto. Encontra guarida na Constituição Federal de 1988, § 4º do art. 226 e no § 6º art. 227, referentes aos direitos de família, sendo proibidos quaisquer tipos de discriminações entre filhos. 4. A jurisprudência, mormente na Corte Superior de Justiça, já consagrou o entendimento quanto à plena possibilidade e validade do estabelecimento de paternidade/maternidade socioafetiva, devendo prevalecer a paternidade socioafetiva para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole. 5. No caso dos autos resta configurado o vínculo socioafetivo entre as partes, que se tratavam mutuamente como pai e filho, fato publicamente reconhecido por livre e espontânea vontade do falecido, razão pela qual deve prevalecer o entendimento firmado na sentença quanto à declaração do vinculo paterno-filial, resguardando-se os direitos sucessórios decorrentes deste estado de filiação, e respectiva anulação da Escritura Pública de Inventário e Partilha anteriormente lavrada. 6. Recursos conhecidos e não providos. Sentença mantida integralmente. [5]
Com esse julgado, fica evidente constatar que a paternidade socioafetiva além de consagrada na legislação brasileira e na doutrina, possui diversos efeitos, como em relação à sucessão patrimonial.
Assim, é cada vez mais comum que se entenda que a paternidade socioafetiva post mortem é plenamente possível de existir e de se provar. O que fica evidenciado é que a paternidade socioafetiva deva ser reconhecida cada vez com mais frequência na jurisprudência. Na sociedade moderna, com a pluralidade familiar e os arranjos que são feitos, fica mais evidente que o melhor indivíduo de família ainda continua sendo o afeto.
O afeto, portanto, permeia o vínculo familiar, vez que a constituição de entidades familiares não mais está atrelada ao casamento, elas se constituem livremente e seus membros permanecem unidos pelos laços afetivos existentes entre eles, o que reflete na filiação, a qual, também, pode ser estabelecida a partir de vínculos afetivos entre pais e filhos, constituindo-se a denominada paternidade socioafetiva.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A família, como demonstrado é o alicerce do ser humano, onde o mesmo se desenvolve e evolui. Considerando a família como instrumento de desenvolvimento humano e sociológico, o aspecto consanguíneo, tão difundido antigamente, hoje se recai na afetividade. O afeto é o que caracteriza uma família.
Nesse sentido, para se determinar a filiação, pouco importa sua origem, haja vista que o laço que une pais e filhos funda-se no amor, cuidado, respeito e convivência familiar.
Destarte, a filiação mesmo que não mantenha correspondência com o vínculo biológico, todos os filhos devem gozar de proteção integral e terão os mesmos direitos e qualificações, independentemente de sua origem, sendo proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, conforme se observa no artigo 227, § 6º, cunhado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Desse modo, entende-se que o liame biológico não pode ser o único critério para constituir as relações paterno-filiais.
Dito isto, no presente estudo, foi abordado de forma geral o direito sucessório nos casos de filiação socioafetiva, segundo o princípio da igualdade entre os filhos, trazido pela Constituição Federal, em seu artigo 227, § 6º, reforçado pelo artigo 1.596 do Código Civil.
Trata-se de uma relação construída pelo vínculo desenvolvido entre pai e filho, ainda que ausente herança genética-biológica. Este vínculo gera o parentesco socioafetivo.
Estando presente o que se chama de posse de poder de filho, restará reconhecida a relação de parentesco socioafetivo. A posse de estado consolida o vínculo parental, ainda que não assentados na realidade natural, ou biológica, possuindo relevância jurídica para todos os fins de direito, nos limites da lei civil.
Ainda que na lei existem diversas lacunas sobre o tema, a doutrina e jurisprudência vêm se aperfeiçoando no reconhecimento desta modalidade de filiação, garantindo àqueles que efetivamente preenchem os requisitos de posse do estado de filho a transferência de bens, direitos, encargos e obrigações, quando da abertura da sucessão, no caso de enquadramento como herdeiro, conforme ordem de sucessão hereditária.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2016.
[1] Professor Orientador do curso de Direito da Universidade de Gurupi – UnirG.
[2]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1087163/RJ. Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma. Julgado em 18/08/2011.
[3] (TJMG; APCV 0317690-67.2008.8.13.0319; Itabirito; Sétima Câmara Cível; Rel. Des. André Leite raça; j. 22.3.2011; DJEMG 08.04.2011).
[4] Superior Tribunal de Justiça STJ - RECURSO ESPECIAL:REsp 1078285 MS 2008/0169039-0.
[5]Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios TJ-DF – Apelação Cível: APC 20110210037040. Órgão Julgador: 1ª Turma Cível. Julgamento: 16/09/2015. Publicação: 06/10/2015. Relator: Rômulo de Araújo Mendes. Disponível em: https://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/240324998/apelacao-civel-apc-20110210037040. Acesso em: 18 set. 2020.
Bacharelando em Direito pela Unirg Universidade de Gurupi-TO
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Jorge Pereira da. Paternidade socioafetiva: análise doutrinária e jurisprudencial em relação ao direito de sucessão Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2021, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56636/paternidade-socioafetiva-anlise-doutrinria-e-jurisprudencial-em-relao-ao-direito-de-sucesso. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
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