RESUMO: O presente artigo relata a situação do gestor público brasileiro nas três esferas do Estado durante o período de vigência da Medida Provisória nº. 966/2020. Pretende identificar as premissas referentes à Responsabilidade Civil do Administrador Público anteriores à citada Medida Provisória e, também, após a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal àquela espécie normativa que regulou tais aspectos durante a pandemia causada pelo vírus COVID-19, esta ainda não findada. O artigo também busca trazer soluções protetivas ao gestor de boa-fé.
Palavras-chave: direito administrativo, responsabilidade civil, LINDB, medida provisória, corona vírus, covid-19
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO – 2. Medida Provisória: Força Normativa e Vigência no Brasil: 2.1. A medida provisória nº. 966/2020. 3. A Responsabilidade Civil do Administrador Público: 3.1. As alterações na LINDB e atual visão da responsabilidade civil do administrador público. 4. A MP nº. 966/2020: suas prováveis interpretações e a busca pela melhor atuação do administrador público. 5. Conclusão. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Desde o começo do ano de 2020, a administração passa por diversas provações no que se refere a tomada de decisões precisas e eficientes dentro da saúde pública e nos setores consequentes, na busca da proteção daquela. A pandemia mundial causada pelo vírus COVID-19 surgia no final de 2019, na China, tendo se espalhado exponencialmente no restante do mundo, causando uma verdadeira devastação: morte de milhares de pessoas, perdas financeiras, colapsos de gestão governamentais, entre outros.
Praticamente todos os países passaram por idênticos problemas. O Brasil, pela magnitude territorial, viu-se diante de problemas catastróficos, que questionaram muitas vezes o pacto federativo, ao pedir a todo administrador público decisões eficientes a serem tomadas em curto espaço de tempo e exígua receita.
Assim, vislumbrando uma possível ao administrador público bem intencionado, fora editada a Medida Provisória nº. 966, em 13 de maio de 2020, que vigeu até o dia 21 setembro do referido ano, em que buscou delimitar a responsabilidade do gestor público delineando os aspectos a serem observados para responsabilizar os atos daquele ator público.
Como possuía forte viés político, a Medida Provisória logo fora questionada judicialmente, através de Ações Diretas de Inconstitucionalidades que culminaram em decisões que nortearam ainda mais, ou não, os aspectos capazes de gerar a responsabilização de quem toma decisões dentro da Administração Pública.
Assim, presente trabalho busca trazer ideias gerais e específicos sobre o elemento normativo usado, Medida Provisória, para reger a situação em que o Brasil passou; confrontar os aspectos da Responsabilidade Civil do Administrador durante a vigência da MP nº. 966/2020 com os regramentos pré-existentes no ordenamento brasileiro, e indica ao final, na Conclusão, ideias que podem blindar o gestor verdadeiramente bem-intencionado em momento de inegável crise.
2. Medida Provisória: Força Normativa e Vigência no Brasil
A medida provisória é espécie legislativa adotada pelo Presidente da República, em ato monocrático, unipessoal, sem participação do legislativo, que discute a espécie quando tão somente já adotada pelo Executivo, possuindo força de lei e capaz de produzir efeitos jurídicos. Nos termos do art. 62, caput, da Constituição Federal, havendo URGÊNCIA e RELEVÂNCIA, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. Após a Emenda Constitucional nº. 32/2001, uma vez adotada, ela vigorará pelo prazo de 60 dias, prorrogável, de acordo com art. 62, § 7º da Carta Maior, por mais 60 dias, contados de sua publicação, sendo tal prazo suspenso durante os prazos de recesso parlamentar.
Assim, uma Medida Provisória adotada provoca imediatos efeitos desde sua publicação, por exatos 60 dias, sendo submetida de imediato ao Congresso Nacional, sendo prorrogável, quando sua votação não tiver sido encerrada no Congresso, totalizando assim um prazo de 120 dias.
Acaso não seja convertida em Lei referida, tal Medida perde sua eficácia desde sua edição. No caso, o Congresso deverá editar um Decreto Legislativo para reger as relações jurídicas delas decorrentes podendo, acaso este não seja editado, serem mantidas as relações regidas pelo texto da Medida. O professor Pedro Lenza [1] faz uma severa crítica a admissibilidade da Medida Provisória extinta permanecer regendo as relações regidas, acaso tal Decreto Legislativo não seja criado. Afirma se tratar de “regaste do autoritário decreto-lei, que permitia sua aprovação por decurso de prazo”. O professor afirma que tal situação é totalmente inconstitucional e arbitrária.
Embora o doutrinador esteja vestido sóbria razão, a realidade é que no Brasil, atualmente, acaso uma Medida Provisória perca sua vigência e não venha a existir Decreto Legislativo para reger aquelas relações jurídicas então realizadas, estas permanecerão regidas pelo texto revogado.
2.1. A medida provisória nº. 966/2020
Partindo dessas considerações, o presente trabalho busca fazer uma análise sobre a Medida Provisória nº. 966 de 13 de maio de 2020, que fora prorrogada pelo prazo constitucional previsto, vindo a findar sua vigência ao dia 21 de setembro de 2020. Nesta MP ficou, nos termos da EMI nº. 00153/2020 ME CGU, firmado que a proposta seria delimitar o alcance de atos praticados de boa-fé, direta ou indiretamente, acerca de medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia de COVID-19 assim como combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia, assim como garantir que as sanções civis e administrativas recaiam somente sobre os praticados com dolo ou erro grosseiro ou ainda acaso haja conluio entre os agentes (§§ 1º 2º do art. 1º). A proposta, que fora acolhida pelo Presidente da República Jair Messias Bolsonaro, seria de que o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implicaria, necessariamente, na responsabilização do agente público. Para tal, busca explicitar os parâmetros que devem ser observados na aferição da ocorrência desse erro, quais sejam:
“a proposta define o erro grosseiro como sendo o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia (art. 2º). Além disso, são fixados parâmetros que devem ser observados na aferição da ocorrência desse erro, quais sejam: i) os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; ii) a complexidade da matéria e das atribuições exercidas; iii) a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; iv) as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou omissão do agente público; e v) o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia e de suas consequências, inclusive econômicas (art. 3º). ” (paragrafo 4 exposição de motivos)
Contudo, fazendo diversas análises, não é possível tão somente tal interpretação, observando a existência de uma tênue linha entre a tentativa do Executivo de garantir segurança jurídica para o administrador probo e a possibilidade de responsabilização deste, ainda que munido das melhores das intenções.
3. A Responsabilidade Civil do Administrador Público
É cediço que a responsabilidade civil do estado, em consenso pacífico, dá o dever ao estado de ressarcir as vítimas de seus comportamentos danosos. Esta responsabilidade segue em contínua evolução e adaptação. Assim, o princípio da Responsabilidade Civil do Estado é próprio e possui uma fisionomia própria mais extensa que a responsabilidade aplicável ao direito privado. Essas regras mais rigorosas para o Estado são compatíveis com a sua posição jurídica, considerando que os administrados não tem como escapar ou minimizar os perigos de dano provenientes da ação do Estado; ele é quem dita os termos de sua presença no seio da coletividade.
Por expressa previsão constitucional, cabe ao Estado que seja condenado a indenizar a vítima pelos prejuízos causados pelo agente, tendo este agido com culpa ou dolo. Contudo, é possível que o Estado busque a compensação de suas despesas por meio de uma ação de regresso, aplicando a parte final do então art. 37,§ 6º da Carta Magna, sendo esta uma ação autônoma para o exercício do direito de regresso, garantindo o ressarcimento pelas despesas que o Estado suportou.
3.1. As alterações na LINDB e atual visão da responsabilidade civil do administrador público.
Muito embora hoje reste consolidada a Responsabilidade Civil Objetiva do Estado, imperioso ressaltar que em sede de apuração da responsabilidade do gestor, havendo a necessidade reforçar a segurança jurídica nas ações que versem sobre direito público, a Lei nº. 13.655/2020 trouxe acréscimos a LINDB, esta norma de sobredireito, devendo, por isso, ser observada quando da aplicação das demais normas jurídicas.
Tais acréscimos envolvem, inclusive, a própria responsabilidade do agente público, quando expressa o art. 28: “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Assim, quando a atuação do agente público é analisada para fins de aferimento de dolo ou erro grosseiro, não basta simplesmente a ocorrência de grande prejuízo, como também a complexidade da matéria e atribuições exercidas pelo agente público, ora extraído do Decreto nº. 9.830/2019, que regulamenta o dispositivo, sendo necessário a análise do elemento subjetivo usado pelo gestor durante a prática de seus atos.
Ainda neste sentido, o superior do agente que atuou com dolo ou erro grosseiro somente responderá se comprovar que houve falha em seu dever de vigilância e que isso decorreu de dolo ou de culpa grave (erro grosseiro), como dita o art. 12, § 7º, do referido Decreto “No exercício do poder hierárquico, só responderá por culpa in vigilando aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo”.
Logo, muitos doutrinadores questionam o possível conflito existente entre as referidas normas e o inserto no art. 37, § 6º, da Constituição, vez que esta se contenta tão somente com dolo ou culpa.
4. A MP nº. 966/2020: suas prováveis interpretações e a busca pela melhor atuação do administrador público
Desde a publicação da Medida Provisória nº. 966/2020, várias polêmicas foram despertadas: de um lado havia um grupo de pessoas que entendia que a MP não mudava absolutamente nada e de outro lado há um grupo de pessoas que acha ela mudou absolutamente tudo, em termos de Responsabilidade Civil do gestor público. Havia também quem procurasse um caminho do meio.
Quase que em automático, a constitucionalidade de tal MP fora questionada em 7 ADINs ainda no mês de maio do corrente ano, questionando não apenas a MP 966/2020, mas também o art. 28 da LINDB (DL 4.657/42), com a redação dada pela Lei nº 13.655/2018, e os arts. 12 e 14 do Decreto 9.830/2019. Em sede de medida cautelar, o STF decidira que a MP 966/2020 e demais dispositivos impugnados são, em princípio, constitucionais, mas desde que seja interpretada segundo alguns parâmetros fixados pela Corte Constitucional. Partindo da análise de tal julgado, fora possível aferir interpretações que viam uma ocorrência de prejuízo muito maior, quando colocada em prática.
A decisão tratava do Controle da atuação dos agentes públicos, da responsabilização, propriamente dos agentes públicos durante os atos de combate à pandemia pelo novo Corona Vírus, COVID-19.
Ressalte-se que a discussão sobre o tema começara antes desta MP, com o art. 28 da LINDB, que traz uma previsão muito semelhante com a MP 966/2020. Como já citado, ele diz que o agente somente responde por suas ações ou opiniões em caso de dolo ou erro grosseiro, também conhecida como cláusula geral do erro administrativo. A LINDB trouxe essa previsão para dar uma maior garantia à atuação dos agentes públicos, onde só seriam responsabilizados, em última análise, em caso de erro grosseiro.
Como já sobredito, existe uma discussão grande sobre a constitucionalidade deste dispositivo da LINDB, pois a Constituição fala expressamente sobre dolo ou culpa. Em que pese tais questionamentos, o art. 28 vige desde 2018 e é aplicado dentro do ordenamento jurídico. Existem diversas decisões do STJ nesse sentido, dizendo acerca da responsabilidade do Parecerista acerca de dolo ou erro grosseiro. O Supremo também possui precedentes nesse sentido, o MS 35.196, julgado em novembro de 2019, de relatoria do Ministro Luis Fux, em que este mesmo parâmetro fora adotado (condenação pelo TCU de um parecerista que proferiu um parecer sobre um aditivo contratual e foi condenado pelo TCU em multa e ressarcimento ao Erário, no valor de quase R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais). A 1ª Turma do STF entendera que não houve nem dolo nem erro grosseiro, tendo o parecer – ainda que não totalmente correto – se baseado em doutrina, sendo assim uma opinião jurídica, não podendo responsabilizar o parecerista por “crime de hermenêutica”.
Neste sentido é que, até a MP 966, a construção doutrinária e jurisprudencial era de que você só pode responsabilizar por dolo ou erro grosseiro. Assim foi que muitos estudiosos consideraram, frente a publicação da MP, que não havia muito o que ser alterado na prática. O art. 3º da referida Medida Provisória trazia explanação sobre as circunstâncias do administrador público, para ser avaliado no ato da administração. A MP teria, nesta visão, servido para muito pouco, apenas para explicitar o consenso doutrinário e jurisprudencial.
Só que o maior problema da MP seria seu contexto político de edição, o que pode ter influenciado muito o julgamento do Supremo. A MP surgira em momento que o então Presidente da República defendia um tratamento específico da doença pandêmica, através do uso do medicamento com princípio ativo Cloroquina, e havia uma preocupação de que esse tratamento, por não haver base comprovadamente científica, de que ela fosse causar um uso indiscriminado do medicamento pelos agentes públicos e que tal ação poderia vir a isentar possíveis responsabilidades dos agentes públicos. A ideia era que o governo, através da MP, estava trazendo uma bioidentidade para os agentes públicos acerca do combate ao vírus. Essa ideia era a circulada. Em termos técnicos, não faria sentido questionar a constitucionalidade da Medida quando a jurisprudência dos dois mais importantes Tribunais do país trazia julgados em idêntico sentido, assim como a doutrina caminhava nesse sentido.
Professores de direito administrativo, após o julgamento das ADINs pelo Supremo, e que defenderam o art. 28 à época de sua publicação, defenderam o julgamento realizado por aquele Tribunal e que na verdade só estariam placitando e referendando aquilo que o artigo citado já previa, uma visão otimista sobre a espécie legislativa.
Ocorre que nova impressão pela classe jurídica, contudo, surgia e era a de que a MP contrariava exatamente o teor do art. 28 da LINDB. Existia um componente político muito forte na publicação da MP, a tirar pelo envolvimento dos parlamentares federais à época. Existia a questão de imaginar de que o então uso da Cloroquina buscava criar um caminho de imunidade para o Chefe do Executivo Federal e o próprio Executivo Federal em si. O Supremo, um pouco antes, havia placitado que todas as medidas referentes à Pandemia teriam que observar o Federalismo, permitindo uma grande liberdade aos gestores locais para tomar decisões que achassem adequadas.
A saber, o art. 28 da LINDB, questionado nas ADINs, fora retirado de discussão em sede de medida cautelar, mas que, em sede meritória deveria sim ter sido debatido, fato que não ocorreu. Assim, o julgamento de tais ações referiram-se tão somente ao julgamento das circunstâncias que estavam acontecendo naquele período que houve o julgamento. Mas, de antemão, é preciso reiterar: a MP não inovava; ela trazia segurança jurídica pros administradores públicos que até a presente data atuam com cenário de extrema incerteza. O contexto era de que o administrador se via obrigado atuar se posicionando em uma das duas bifurcadas posições: ou ele não atuava por não saber o caminho a seguir, sendo responsabilizado por ter se omitido ou, ainda, ele viria a atuar, efetuando, por exemplo, contratações emergenciais vinda a ser responsabilizado pelas consequências de suas decisões. O gestor público, que naquela discussão primária teve por maior palco o Administrador Federal, passou a ficar em situação complicada: ou faria algo e provavelmente no futuro seria punido ou deixa de fazer algo e também futuramente será punido.
Como ficariam então os administradores que possuem um aparato muito menor? O Executivo Federal, a exemplo, dispensa um aparato tecnológico de recursos e grau bastante superior daquele Executivo Municipal e até Estadual que em situações normais já possuíam dificuldades de “andar com as próprias pernas”.
Mas qual seria o motivo de o administrador público poder vir a escolher, por exemplo, a opção de não atuar? A grande dúvida do administrador público era de, durante sua atuação, não adotar um conceito específico, técnico e/ou científico, como fixou o julgado do Supremo, e poder vir a ser responsabilizado.
O STF fixou que erro grosseiro seria aquilo que violava: 1) o direito à vida, 2) à saúde, 3) meio ambiente e 4) impactos adversos à Economia por inobservância de normas e critérios científicos e do princípio constitucional da Precaução e da Prevenção.
Além dos conceitos científicos, deveriam ser pautados por aquilo que fora decidido pelas Organizações Internacionais que foram nacionalmente reconhecidas. Na versão original, durante a discussão do Plenário, isso não era sequer tratado de forma genérica, mas explicitamente citando a Organização Mundial de Saúde. Houve, portanto, um respeito ao que era pesquisado e consolidado pelas instituições internacionais científicas.
O princípio da Precaução e princípio da Prevenção são mandados de otimização. Por serem fluidos, os estudiosos possuem uma grande dificuldade de delimitar a ideia dos princípios. Eles variam de caso a caso. E quando se usa critério científico, normas técnicas e estudos sobre as matérias, eles dois podem conflitar. Os parâmetros assim fornecidos pelo Supremo acabaram por gerar uma insegurança jurídica grande.
Em um exemplo, o administrador público poderia vir a se valer de um estudo de entidade internacional renomada e respeitada, usando-a, portanto, como critério em sua unidade federada, e abrir os comércios durante o pico de transmissão do vírus, estatisticamente comprovado. Mas quem garante que tal estudo estaria em sintonia com o princípio da Precaução e da Prevenção? É possível que adiante, o poder Judiciário e o Tribunal de Contas competente venham a combater tal ato do administrador e, baseando-se na própria decisão do Supremo, se valendo também em estudos também científicos, respeitados, que contrariassem por completo o parâmetro científico usando por aquele gestor.
O caso concreto tornava-se então bastante complicado. Por diversas vezes ficou-se diante da disparidade da recomendação do Ministério da Saúde, que recomendava o uso da Cloroquina e da OMS que afirmava não ser eficaz o uso de tal remédio. Assim, qual a garantia que possuía o administrador público de criar um protocolo de combate ao vírus em sua circunscrição baseado no ora determinado pelo Ministério da Saúde, em tal período, se ele poderia vir a ser responsabilizado futuramente por consequências geradas pelo afastamento do ora recomendado pela OMS?
A OMS não cria norma cogente pro Estado brasileiro, mas pela decisão do Supremo, ela poderia vir a ser observada, colocando-a no mesmo patamar do Ministério da Saúde ou da Anvisa, por exemplo.
As circunstâncias políticas, contudo, trouxeram dificuldades de compreensão da complexidade da situação. O Ministério da Saúde possui uma rede extensa, que vagueia adentrando as Secretarias de Saúdes estaduais e municipais. Então, aquela decisão acabou sendo um tanto quanto demagógica. Na prática, é difícil executá-la, pois trouxe conceitos fluidos, que por diversas situações concretas viriam a ser conflitantes, com bastante dificuldade de efetivo cumprimento.
Em teoria, é fácil observar a aplicação de princípios, na visão do administrador público para sua atuação. Mas não deve ser esquecido que o controle da atuação do gestor também é realizado pelos usos dos referidos princípios: a atuação do administrador público ao ser realizada com bases em princípios será, em consequência, controlada sobre os mesmos padrões referidos. Assim, os parâmetros dados pelo Supremo, para atuação do gestor, deram instrumentos para juízes, conselheiros de Tribunais de Contas, realizarem seus respectivos controles.
Logo, uma preocupação restara instalada na administração pública: qual a decisão a tomar, diante dos instrumentos de gestão possíveis, com extrema possibilidade de gerar consequências negativas, a fim de que não ocorra responsabilidade sobre suas decisões?
Quem atua dentro da Administração Pública percebe o olhar acusatório dos próprios administrados, verificado a inegável dificuldade de retirar do papel a coisa certa a fazer. E este busca, em geral, os parâmetros mais claros possíveis para efetuar sua atuação. Aí surge a possibilidade, nos termos da decisão do Supremo, do “melhor seria não praticar”. Mas neste caso, também poderia surgir a responsabilidade gerada, por exemplo, pela morte de um administrado pela omissão do gestor público, baseando-se em nexo de causalidade com um ato administrativo remoto, quando do investimento a menor na saúde, como por exemplo a compra de um respirador a menos para um hospital público de atuação exclusiva no combate ao Corona Vírus, ou ainda ao escolher mal um licitante, com inobservância de algum aspecto técnico, vindo a eclodir na morte de um administrado. Qualquer situação exemplificada anteriormente poderia facilmente se enquadrar em violação à saúde.
Em regra, decisões que protegem a saúde ou o meio ambiente equilibrado, irão invariavelmente criar impactos adversos à Economia, haja vista uma correlação lógica: se os administrados não estão trabalhando, por conta de um Lockdown, devem ser subsidiadas pelo governo; se não há pagamento de tributos pelos contribuintes, pode vir a se agraciar uma moratória ou anistia tributária, por exemplo.
Então, analisando a tese fixada pelo Supremo, o respeito aos três primeiros requisitos necessários a afastar a responsabilidade do gestor público, consequentemente poderia haver um desrespeito ao quarto requisito e, em interpretação a contrariu sensu, o respeito ao quarto requisito poderia vir a desrespeitar os três primeiros.
Ainda para mais desnortear o gestor público, o desrespeito aos critérios científicos seria baseado em quê, propriamente, verificando que ninguém tem nenhuma certeza sobre o vírus e suas consequências, haja vista a sua completa novidade, não havendo confirmação sobre o que funciona em seu extermínio, bem como não há confirmação sobre o que deve ser descartado em seu combate. A decisão do Supremo não diz de onde se retirar tais critérios científicos e técnicos, gerando uma mera retórica decisória.
Para mais prejudicar a situação, o uso de tais argumentações poderia causar um verdadeiro caos, quando da análise pelo julgador periférico que, ao ficar diante de atuação do gestor público que não comunga de sua mesma interpretação acerca dos conceitos abertos expressados no julgamento da ADI.
5. CONCLUSÃO
Em que pese as dificuldades relatadas para o melhor caminho a ser tomado pelo administrador probo e eficaz, o melhor controle, seja judicial ou administrativo, ao que parece, seria a possibilidade de suspensão de decisões administrativas quando desprovidas de análise impacto-regulatória, para saber qual ato correto a ser tomado em cada caso concreto. Seria uma decisão meio do caminho: é um pedido para o gestor apresentar quais dados foram usados como critério. Não haveria uma avaliação sobre o mérito da decisão do administrador público estar correto ou errado. A decisão tomada pelo administrador público deveria ser preservada, contudo o administrador deveria se pautar em argumentação pertinente. Percebe-se que é a fundamentação adequada que deve proteger o administrador e seus impactos consequenciais naquilo que o STF pautou que o gestor preservasse. As razões que levam o administrador a, por exemplo, intervir na liberdade do administrado, devem ser preservadas quando, por exemplo, da reabertura do comércio local, assim, nos atos que abrandariam aqueles atos prefacialmente tomados, uma vez que o controle praticado tão somente em um desses atos se tornaria anacrônico.
Essa fundamentação deve vir carregada da maior Transparência possível, para que o administrador seja munido, futuramente, de proteção contra eventual decisão ativista, seja pelo Poder Judiciário, seja pelo Tribunal de Contas, que procure lhe responsabilizar, subjetivamente, nos termos dos critérios definidos pela decisão do Supremo.
A ideia é de que, diante das incertezas que o administrador se encontrar, frente a obrigatoriedade de tomada de decisão, podendo esta ser tomada de modo a não surtir o efeito perseguido, ou ainda de modo eventualmente contrário a regras formais, mas no intuito de proteger direitos dos administrados de seu ente, seja aquele coberto pelo manto da máxima segurança jurídica que puder ser usada no caso concreto.
Sobre análise econômica, em viés de retrospectiva que o administrador terá que lidar, no futuro pós pandêmico, se confirmará, ou condenará, os atos do administrador, nos termos presentes de avaliação pelo Judiciário e Tribunal de Contas. Nesse sentido é a reprimenda que o próprio ministro Barroso fala ao citar a ocorrência de “analisar videoteipe” ser mais fácil do que analisar a situação em concreto, in loco. Logo, a MP trouxe, em seu art. 3º, em consonância com a própria LINDB, a determinação de análise dos atos tomados pelo administrador sob o parâmetro existente à época da decisão tomada pelo administrador. Cumpre ao julgador ou controlador se valer do viés de confirmação na hora de controlar tais atos, que pelo delongar será realizado futuramente, com ciência mais informações contundentes e de comprovada eficácia no combate à Pandemia, mas que deverão ser utilizadas aquelas anteriores, munidas de incertezas mas que foram consideradas corretas pelo então gestor, frente às suas estruturas científicas e financeiras.
6. REFERÊNCIAS
1. LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 23. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
2. MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 4. ed. Niterói: Impetus, 2010.
3. JUSTEN FILHO, Marçal…[ et al]. COVID-19 e o direito brasileiro. Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020.
4. Exposição de Motivos da Medida Provisória nº. 966/200 <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2019-2022/2020/Exm/Exm-MP-966-20.pdf>. Acesso em: 24/10/2020
5. SUNDFELD, Carlos Ari; JORDÃO, Eduardo; MOREIRA, Egon Bockmann; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; BINENBOJM, Gustavo; CÂMARA, Jacintho Arruda; MENDONÇA, José Vicente Santos de; JUSTEN FILHO, Marçal; MONTEIRO, Vera. Surpresa positiva do STF no julgamento da MP 966. Jota Info, Brasília. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/supresa-positiva-do-stf-no-julgamento-da-mp-966-21052020>. Acesso em: 24/10/2020
6. CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Análise da constitucionalidade da MP 966/2020, que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por atos relacionados com a pandemia da covid-19. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://www.buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/815104ed949f9deaf45165c4b8337013>. Acesso em: 24/10/2020
[1]p. 711
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Estado do Piauí - UFPI. Pós Graduada em Direito Público - Uniamérica. Assistente de Magistrado TJ/PI.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, LORENA BARROS. A Responsabilidade Civil do Administrador Público sob o enfoque da Medida Provisória nº. 966/2020 durante a Pandemia da COVID-19. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jun 2021, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/56812/a-responsabilidade-civil-do-administrador-pblico-sob-o-enfoque-da-medida-provisria-n-966-2020-durante-a-pandemia-da-covid-19. Acesso em: 22 nov 2024.
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