VANDERCLEYSON FREITAS DOS SANTOS
LETÍCIA NASCIMENTO SOARES DA SILVA
(coautores)
RESUMO: A gestação que decorre de violência sexual não acarreta apenas nas consequências físicas da gravidez como as alterações no corpo da mulher, mas também prejuízos psicológicos a colocando diante de um paradigma religioso, social e cultural, entre manter a gestação que a fará ter uma eterna lembrança da violência sofrida ou optar pelo abortamento autorizado por lei. Mostra-se, portanto, de extrema relevância, por isso no presente trabalho foi realizado um estudo de revisão sistemática da literatura combinado com dados estatísticos das vítimas de violência sexual que resultaram na gestação indesejada e que optaram pelo seu direito ao abortamento previsto em lei. Teve-se como objetivo analisar a deficiência da aplicação das legislações, normas e portarias do Ministério da Saúde vigentes, nos casos em concreto. Os dados foram colhidos do Instituto da Mulher Dona Lindu da cidade de Manaus (AM), através dos relatórios do Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (SAVVIS). A pesquisa delimitou-se a conceituar os aspectos jurídicos envoltos na realização do abortamento, a apresentar as legislações relativas a esta prática e analisar a aplicabilidade deste instrumento jurídico quanto ao caso real da gestação decorrente de violência sexual. Observou-se que apesar de inúmeras normatizações que visam a capacitação no acolhimento, atendimento humanizado e procedimentos que respeitem a vítima, seja nas unidades de saúde, como nas unidades de segurança, não existe um fluxo padronizado que permita a identificação do infrator, tornando-se apenas dados estatísticos na sociedade o que dificulta a tomada jurídica de tal situação.
PALAVRAS-CHAVE: Estupro. Gravidez. Abortamento. Abordagem jurídica.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Conceituação dos termos envoltos ao abortamento; 2.1. Gestação; 2.2. Violência sexual; 2.3. Interrupção Gestacional. 3. As legislações vigentes relativas ao abortamento. 4. Abordagem da aplicabilidade prática das legislações nos casos reais de gestação decorrente de abuso sexual. 5. Procedimento metodológico. 6. Conclusões. 7. Referências.
A violência sexual contra mulheres é uma realidade desde a antiguidade, porém pouco se falava no assunto, visto que as vítimas temiam represália pelo agressor e julgamento pela sociedade, escondendo-se no silêncio. Com o advento das tecnologias, empoderamento feminino, campanhas em prol da defesa das mulheres e legislações de amparo, elas começaram a relatar os acontecimentos e a buscar apoio estatal. Não que a violência sexual tenha diminuído, muito pelo contrário, no ano de 2018, apenas, foram 66.041 casos registrados, sendo 81,8% vítimas do sexo feminino (Dados do 13° Anuário Brasileiro de Segurança Pública). Ainda, estima-se que apenas 10% das vítimas procuram serviços de proteção capazes de realizar a notificação, ou seja, os dados reais podem chegar a 600 mil casos de mulheres violentadas por ano.
Em decorrência da violência sexual sofrida muitas mulheres têm como consequência uma gestação indesejada e, para esses casos específicos, a legislação brasileira permite o aborto (Art. 128, II do Código Penal), desde que a vítima assim o queira. Não sendo necessário nenhum tipo de procedimento prévio que exponha a vítima, como o boletim de ocorrência e coleta de vestígios por meio do exame de conjunção carnal e anal para possível identificação do autor do crime.
Neste ponto, encontra-se um dilema debatido entre unidades de saúde, secretarias de saúde e órgãos de segurança pública. Ainda que a verbalização do ocorrido ser o suficiente para que a mulher dê início ao procedimento para interromper a gestação decorrente do abuso sexual, aumentando sua segurança de buscar ajuda e privacidade em não precisar se expor a exames invasivos e a reviver o momento da violência, por outro lado não há investigação, materialidade do crime e dados suficientes para identificar o infrator, compor o banco de dados genéticos nacional para fins comparativos de crimes anteriores, de maneira que se evite novas vítimas.
Portanto, faz-se necessário apontar quais as lacunas da lei e falhas na aplicação em concreto na prática do abortamento, analisando as deficiências sob um aspecto jurídico. Contando com revisão sistemática da literatura e pesquisa de campo com dados reais do Instituto da Mulher Dona Lindu – a única instituição credenciada pelo Ministério da Saúde no Amazonas a realizar o procedimento de interrupção gestacional com previsão em lei, serão abordados no capítulo 1 os conceitos envoltos a essa temática, no capítulo 2 serão apontadas as características das legislações vigentes, portarias e normas técnicas na atenção humanizada ao abortamento e às vítimas de violência sexual gestantes e, por fim, no capítulo 3 será feita uma análise da aplicabilidade do instrumento jurídico nos casos da gestação decorrente do abuso sexual.
2 CONCEITUAÇÃO DOS TERMOS ENVOLTOS AO ABORTAMENTO
2.1 Gestação
Para o Código Civil Brasileiro de 2002 logo no seu artigo 1° “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Trata-se da teoria natalista, em que o nascituro não é pessoa, mas goza de expectativa de direitos desde a vida intrauterina, porém que os direitos e deveres passam a existir com o nascimento com vida. Nas palavras do doutrinador Gonçalves: “Para se dizer que nasceu com vida, todavia, é necessário que haja respirado. Se respirou, viveu, ainda que tenha perecido em seguida” (GONÇALVES, 2014, p. 101). Assim, no momento em que o feto nasceu e respirou, adquiriu personalidade jurídica, contudo antes de vir ao mundo já possuía seus direitos de personalidade resguardos.
Apesar do Código Civil adotar a teoria natalista, pode-se observar que ele resguarda desde a concepção o direito dos nascituros, demonstrando uma forte tendência a teoria concepcionista. Nesse contexto, avaliamos o termo concepção em que “a vida começa desde a concepção, ou seja, a vida tem seu início a partir da fecundação do óvulo pelo espermatozoide, gerando um ovo ou zigoto” (ALBERTON, 2001. p. 35). Assim, o pequeno zigoto, já teria personalidade jurídica, podendo figurar no polo ativo ou passivo de uma relação jurídica, possuindo direitos. Conforme observado no Informativo do Superior Tribunal de Justiça, a teoria concepcionista seria aplicada majoritariamente no Brasil:
Informativo 547/2014
"Assim, o ordenamento jurídico como um todo (e não apenas o Código Civil) alinhou-se mais à teoria concepcionista – para a qual a personalidade jurídica se inicia com a concepção, muito embora alguns direitos só possam ser plenamente exercitáveis com o nascimento, haja vista que o nascituro é pessoa e, portanto, sujeito de direitos – para a construção da situação jurídica do nascituro, conclusão enfaticamente sufragada pela majoritária doutrina contemporânea. Além disso, apesar de existir concepção mais restritiva sobre os direitos do nascituro, amparada pelas teorias natalista e da personalidade condicional, atualmente há de se reconhecer a titularidade de direitos da personalidade ao nascituro, dos quais o direito à vida é o mais importante, uma vez que, garantir ao nascituro expectativas de direitos, ou mesmo direitos condicionados ao nascimento, só faz sentido se lhe for garantido também o direito de nascer, o direito à vida, que é direito pressuposto a todos os demais. Portanto, o aborto causado pelo acidente de trânsito subsume-se ao comando normativo do art. 3º da Lei 6.194/1974, haja vista que outra coisa não ocorreu, senão a morte do nascituro, ou o perecimento de uma vida intrauterina.
REsp 1.415.727-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 4/9/2014".
O julgado cita a teoria condicional ou da personalidade formal, nela não é definido se o nascituro é ou não uma pessoa, mas tão somente se limita a apontar que a personalidade para direitos materiais depende do nascimento com vida, sendo uma personalidade formal. Por isso, tal teoria não é adotada.
Abaixo podemos observar outro julgado também do Superior Tribunal de Justiça, em que o nascituro teria direito a indenização por danos morais, portanto possuidor de personalidade desde a concepção:
DIREITO CIVIL. DANOS MORAIS. MORTE. ATROPELAMENTO. COMPOSIÇÃO FÉRREA. AÇÃO AJUIZADA 24 ANOS APÓS O EVENTO. PRESCRIÇÃO INEXISTENTE. INFLUÊNCIA NA QUANTIFICAÇÃO DO QUANTUM. PRECEDENTES DA TURMA. NASCITURO. DIREITO AOS DANOS MORAIS. DOUTRINA. ATENUAÇÃO. FIXAÇÃO NESTA INSTÂNCIA. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
I – Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral não desaparece com o decurso de tempo (desde que não transcorrido o lapso prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum.
II – O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum.
REsp 399028-Sp, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julgado em 24/02/2002.
Ao que pese o Código Civil adotar a teoria natalista, o ordenamento jurídico como um todo caminha para a adoção da teoria concepcionista e é este direcionamento que tomaremos no presente artigo.
Poderíamos citar muitas outras evidências da adoção da teoria concepcionista no Brasil, em que o nascituro figura como titular de direitos de personalidade (à vida, à proteção pré-natal, à imagem, etc.), como, por exemplo, nos casos em que a Lei 11.804/2008 prevê a prestação de alimentos gravídicos, ou como visto anteriormente sendo ele titular de danos morais, o pagamento de DPVAT pela morte de nascituro quando a gestante sofre um acidente de trânsito, ele sendo herdeiro por legado e herança ou, também, no Código Penal que traz dentro do rol de crimes contra a vida o aborto, interrupção do processo gestacional.
Sabe-se que o Direito penal criminaliza condutas dolosas ou culposas que lesionam ou expõem a risco de lesão bens jurídicos que a sociedade tenha como valiosos e que, por isso, mereçam a proteção a ultima ratio. Criminalizando o aborto o Direito penal está resguardando a vida, mesmo que intrauterina. Assim, quando ocorre o processo de nidação - 14° após a fecundação, quando o óvulo já fecundado e em processo inicial de divisão celular, fixa-se ao útero, qualquer tipo de conduta para que esse processo seja interrompido é de interesse penal.
Por óbvio, aborto de caráter espontâneo ou acidental não são objeto para o direito penal.
O Pacto de São José da Costa Rica aduz em seu art. 4° que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.
Apesar de o Brasil ser signatário de tal Tratado Internacional de 1969, que foi internalizado no ordenamento jurídico pelo Decreto nº 678/92, ele explicita no Código Penal Brasileiro, art. 128, inciso II, que para o caso de interrupção da gravidez resultante de estupro não se pune o aborto. Existe, assim, hipóteses em que o Código Penal autoriza uma conduta de interrupção da gestação, sem criminaliza-la: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante (art. 128, I, CP), anencefalia comprovada - ausência de cérebro, calota craniana, cerebelo e meninges ou quando o nascituro padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, não há perspectiva de vida – que é o bem tutelado pela norma penal (ADPF 54 - STF) e a gravidez resultante de abuso sexual (art. 128, II, CP).
É que neste último caso, entende-se que o feto não está sendo privado da vida de maneira arbitrária, sem que haja fundamento lógico, mas levando em consideração o preceito de que o desenvolvimento humano requer a interação de quatro núcleos principais, sejam estes: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo, de acordo com a Abordagem Bioecológica, desenvolvida por Urie Bronfenbrenner (NUNES, 2018), ou seja, fatores de ordem física, social e emocional na relação mãe-bebê e que são colocados em risco, caso seja negado o direito à interrupção da gestação decorrente de violência sexual que geram o repúdio da gravidez, o vínculo da gravidez à violência, a lembrança da violência e do agressor, dentre outros (DREZETT et al., 2011).
2.2 Violência Sexual
Violência sexual trata de qualquer conduta que constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força. No Código Penal Brasileiro está tipificado nos crimes contra liberdade sexual, Art. 213 “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Para que a interrupção da gestação tenha respaldo legal, ela precisa ter resultado de uma relação sexual indesejada pela mulher e que teve como consequência a gravidez (Art. 128, II do Código Penal).
Ainda que pareça improvável, muitos são os casos em que a vítima não procura atendimento imediato após a agressão e, após o passar do tempo, percebe uma gravidez que decorreu da violência sofrida. Nestes casos, ela possui a seu favor a legislação de amparo, em que a interrupção da gravidez não será punida.
Outra questão relevante é o crime de violação sexual mediante fraude, trazido pela Lei 13.718/2018, incluído no artigo 2015 do Código Penal, que nada mais é do que uma continuidade normativa dos crimes conhecidos como posse sexual mediante fraude (antes previsto no artigo 215, CP) e crime de atentado ao pudor mediante fraude (antes previsto no artigo 216, CP), em que o direito penal visa tutelar o bem jurídico da liberdade sexual, garantindo a pessoa a livre escolha de se relacionar sem que seja ludibriada à prática do ato sexual. Nesse caso, a única diferença entre o crime de estupro e o de violação sexual mediante a fraude é que naquele há o emprego de violência ou grave ameaça, enquanto neste foi consentido, porém mediante má-fé em que a vítima fora iludida/ enganada a ponto de perder a percepção da realidade.
Visto isso, caso a vítima que fora ludibriada viesse a engravidar decorrente desta relação sexual, caberia a aplicação por analogia da exclusão de punibilidade já prevista para gravidez resultante de estupro?
2.3 Interrupção Gestacional
A maioria das vítimas de abuso sexual não busca atendimento no Sistema único de Saúde, Serviços de Segurança Pública ou serviços de apoio, seja por vergonha ou culpa pela agressão sofrida e, principalmente, o medo de denunciar o agressor. O desconhecimento de seu direito ao aborto seguro e legal realizado nos centros de referência e dos procedimentos que serão adotados induzem essa vítima a recorrer as clínicas clandestinas, que muitas vezes têm como resultado a morte.
Os procedimentos de justificação e autorização da interrupção da gestação prevista em lei foram relacionados pelo Ministério da Saúde e devem ser adotados pelas unidades de saúde para realização do abortamento nos casos de violência sexual. A Portaria MS/GM n° 1.508, do Ministério da Saúde, de 1° de setembro de 2005, estabelece que devem constar no procedimento que dá início a realização do abortamento: 1) o termo de consentimento livre e esclarecido, em que a mulher declare que dentro das opções apresentadas – seguir a gestação e ficar com a criança, seguir a gestação e entregá-la para adoção ou o abortamento - ela está optando pela interrupção da gravidez, portanto que autoriza o procedimento pela equipe de saúde; 2) o termo de responsabilidade, onde a vítima declara que todas as informações prestadas à equipe multidisciplinar nas entrevistas são verídicas; 3) o termo de relato circunstanciado constando a descrição da violência sexual sofrida: a data, o horário aproximado, o local, e a descrição detalhada do ocorrido, número de envolvidos, se conhecido, idade aparente, raça, cor dos cabelos, trajes, sinais particulares, eventual grau de parentesco, se foi testemunhado por outras pessoas, etc; 4) parecer técnico assinado por médico, atestando a compatibilidade da idade gestacional com a data da violência sexual alegada e 5) termo de aprovação de procedimento de interrupção de gravidez, firmado pela equipe multiprofissional e pelo diretor ou responsável pela instituição. Dessa maneira, a realização do abortamento não está condicionada à decisão judicial que sentencie pela autorização da interrupção da gestação, mas está pautada tão somente na decisão interdisciplinar da equipe que acolheu a vítima.
3 AS LEGISLAÇÕES VIGENTES RELATIVAS AO ABORTAMENTO
Com intuito de esclarecer as dúvidas de profissionais e vítimas, foram organizados protocolos, cartilhas orientativas e normas técnicas para ampliar a visão não apenas dos profissionais que lidam com essas vítimas, mas também de toda a sociedade nesse aspecto.
Apesar do abortamento sentimental ser uma conduta lícita e um direito da mulher, pautado na Constituição Federal e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos que garantem à mulher o direito à integral assistência médica e à plena garantia de sua saúde sexual e reprodutiva, sendo dispensável, para tanto, provas documentais da violência sexual que está sendo relatada pela vítima, algumas condutas práticas vão a contramão da legislação vigente, como por exemplo a necessidade do boletim de ocorrência para que seja encaminhado o feto ao Instituto de Perícia, após o abortamento ou, ainda, as legislações de notificação compulsória da violência física, sexual e psicológica atendidas em serviços de saúde pública e privada (Lei n° 10.778/2003).
Por óbvio a questão em pauta não trata do agressor, mas tão somente da vítima da violência sexual, por isso que se presume veracidade do relato da vítima, sem que a mesma tenha o dever legal de noticiar o fato, restando a notificação obrigatória apenas para fins estatísticos, que embora relevantes continuam a ser somente números.
Contudo, nota-se uma tentativa do legislador em regular tal demanda, como se pode observar na Lei n° 12.845/2013 que dispõe do tratamento da vítima recém violentada. São os casos emergenciais, em que as pessoas em situação de violência sexual têm o direito ao atendimento imediato e obrigatório no âmbito do Sistema Único de Saúde para o diagnóstico de lesões, amparo médico, psicológico e social, profilaxia da gravidez e de doenças sexualmente transmissíveis, realização de exames e fornecimento de informações sobre seus direitos legais. O conhecimento de tal lei pela sociedade reduziria a necessidade de serem realizados os procedimentos invasivos para o abortamento, visto que a vítima teria recebido as precauções para uma gestação indesejada.
Já o Decreto n° 7.958/2013 estabelece os parâmetros para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do SUS; Ainda, a Portaria de Consolidação n° 5/2017, que consolida as normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde, ou seja, normatizações de capacitação para o adequado acolhimento, humanização do atendimento e procedimentos a serem realizados nas vítimas no âmbito da saúde e da segurança existem. Contudo, a aplicação prática de tais legislações ainda precisam ser lapidadas para que a entrada dessas vítimas, seja por hospitais habilitados, maternidades, delegacias, centros de apoio, encontre um fluxo unificado e que esses casos não se tornem apenas dados estatísticos da violência sexual, mas explanando para a vítima a importância do procedimento judicial com fim de identificação do autor da violência, retirando-o do convívio social e evitando novos casos que partam dele.
Nesse sentido, a Portaria Interministerial MS/MJ/SPM-PR nº288, de 25 de março de 2015, estabeleceu orientações para a organização e integração do atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e pelos profissionais de saúde do SUS quanto à humanização do atendimento e ao registro de informações e coleta de vestígio com fim de comparação no banco genético nacional de DNA de agressores.
4 ABORDAGEM DA APLICABILIDADE PRÁTICA DAS LEGISLAÇÕES NOS CASOS REAIS DE GESTAÇÃO DECORRENTE DE ABUSO SEXUAL
O Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual do Instituto da Mulher Dona Lindu no Estado do Amazonas, atendeu entre julho/2010 a maio/2019 o total de 2.100 vítimas, que receberam o acolhimento, o atendimento e, após avaliação da equipe multidisciplinar, foram encaminhadas aos procedimentos emergenciais ou ao aborto legal, quando fora desejo da vítima. Dessa forma, foram realizados 97 abortos legais, com vítimas em média 64% adultas, 23% crianças e 13% adolescentes, a partir dos protocolos para o abortamento instituídos pelo Ministério da Saúde.
Ainda que não tenha sido necessário o exame invasivo e coleta de vestígios da vítima, algumas informações fundamentais quanto as características do crime como o local, o tipo de violência, se a vítima foi forçada a utilizar algum tipo de droga, descrição da aparência do autor, dentre outros, constam nos itens do formulário de atendimento e seriam fundamentais para traçar um perfil epidemiológico desse agressor e evitar prováveis novos casos. Porém, essas informações são compactadas e se tornam apenas dados estatísticos.
De toda forma, os dados são encaminhados ao Ministério da Saúde, compulsoriamente, e para o Sistema de Segurança Pública, quando é necessário o recebimento do feto, após o abortamento. Assim, mesmo que a vítima não tenha o desejo de passar adiante a situação e esteja legalmente segura de que isso não irá ocorrer, na verdade essas informações são repassadas as autoridades competentes, porém não são utilizadas para fins investigativos, tornando-se apenas dados estatísticos.
A metodologia aplicada à pesquisa científica foi a pesquisa descritiva com a finalidade de analisar a situação da gestação decorrente de violência sexual, partindo de uma revisão bibliográfica para apurar os aspectos jurídicos envoltos na realização do abortamento, apresentação de legislações pertinentes ao tema e a análise da aplicação desses instrumentos jurídicos aos casos reais da violência sexual que teve como consequência uma gestação.
O estudo teve caráter qualitativa, com ênfase na avaliação de dados e comparação com o conteúdo bibliográfico e legislativo disponíveis.
Para isso, foi necessária uma pesquisa de campo em que foram coletados dados reais do Instituto da Mulher Dona Lindu na cidade de Manaus – Amazonas, através de relatórios do Serviço de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual e do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
O que pode ser observado na prática é uma ineficácia não quanto a aplicabilidade das legislações, mas no conflito existente entre elas e que acabam gerando uma ineficácia na utilização dos dados que são obtidos durante o atendimento da vítima de violência sexual. O fluxo de informações fica à mercê do caminho a ser tomado pela vítima. A funcionalidade das legislações citadas, anteriormente, esbarra de maneira frontal com questões relativas à burocratização criada, internamente, em cada setor, de forma individual, que relativiza as legislações e que dificulta a tomada jurídica da investigação do agressor.
Por óbvio, é de extrema relevância que a vítima seja preservada e dessa maneira se sinta segura para procurar atendimento, por outro lado, a presunção de veracidade quanto ao relato da vítima, sem que seja necessário procedimentos que visem a identificação do autor da agressão não torna possível a localização e punição pelo ocorrido.
O Direito tem o viés de resolver os liames da sociedade, dessa forma, conseguir identificar o agressor, a partir dos relatos da vítima que sofreu uma violência tão íntima a ponto de engravidá-la, é de suma importância para que ele não aja novamente, aumentando esses dados estatísticos. Pois ter esses dados que podem ser usados na investigação do agressor e nada fazer, gera um sentimento de impunidade estatal e ineficácia do sistema para a sociedade.
Cabe destacar que essa investigação além de identificar o agressor, também visaria não colocar em prova a veracidade do relato da vítima, tendo em vista a presunção de veracidade adotada primordialmente, mas diminuiria a possibilidade de relatos falsos e capazes de legalizar o aborto que não decorreu de violência sexual, mas somente de uma relação sexual casual que gerou uma gravidez indesejada.
O objetivo do legislador, bem como da comunidade científica do Direito deve ser o de estar sempre buscando solucionar as lacunas da lei e solucioná-las da melhor maneira possível. Isso inclui observar os normativos vigentes das mais variadas vertentes e encontrar neles formas de adequar o texto de lei a realidade.
Dessa forma, ainda que já tenhamos o Código Penal autorizando o aborto nos casos de gestação decorrente de violência sexual, importante se faz a aplicabilidade de legislações, portarias, normativos, complementares para que se tenha eficácia, assegurando os direitos da vítima e, também, possa agir ativamente no sentido de identificar, punir e evitar novas ocorrências, ainda que apenas decorrentes desse agressor que pode ter sido retirado do meio social.
7 REFERÊNCIAS
ALBERTON, Alexandre Marlon da Silva. O direito do nascituro a Alimentos. Rio de Janeiro: AIDE, 2001.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. v. 1.
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BRASIL. Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o código civil brasileiro. 2002. Disponível em << http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>> Acesso em: 13 jul. 2019.
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BRASIL. Lei n° 12.845, de 01 de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. 2013. Disponível em << http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12845.htm >> Acesso em: 24 set. 2019.
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria de Consolidação n° 5, de 28 de Setembro de 2017. Consolidação das normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 03. Out. 2017. p. 360.
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria Interministerial n° 288, de 25 de março de 2017. Estabelece orientações para a organização e integração do atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e pelos profissionais de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto à humanização do atendimento e ao registro de informações de coleta de vestígios. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 mar. 2015. p.50.
BRASIL. Ministério da Saúde. Gabinete do Ministro. Portaria n° 1.508, de 1° de setembro de 2005. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 02. Set. 2005. p. 124.
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BRASÍLIA. Decreto n° 678, de 06 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto São José da Costa Rica – de 22 de Novembro de 1969. Disponível em << http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>> Acesso em: 13 set. 2019.
BRASÍLIA. Decreto n° 7.958, de 13 de março de 2013. Estabelece diretrizes para o atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e da rede de atendimento do Sistema único de Saúde. Disponível em << http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d7958.htm>> Acesso em: 13 set. 2019.
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