RESUMO: Os desastres têm se intensificado na sociedade contemporânea e exigido resposta estatal adequada à proteção da vida. Apesar de existir um extenso sistema normativo instalado para a proteção do meio ambiente no Brasil, restou evidenciado com os últimos episódios que, em casos de desastres, os mais diversos ramos do direito são utilizados de forma desarticulada, ou até mesmo isoladas em suas próprias bases dogmáticas, deixando de observar a exigência de gestão do risco e a extrema vulnerabilidade das pessoas. O objetivo neste estudo é compreender de que modo os novos paradigmas decorrentes dos desastres podem ser utilizados para a formulação e interpretação de instrumentos jurídicos que permitam atuação integrada e coordenada entre as instituições responsáveis pela gestão do risco e da vulnerabilidade. Será realizada uma revisão bibliográfica, buscando apresentar os fundamentos da sociologia, filosofia e teoria do direito, realizando uma análise jurídico-dogmática com o método jurídico-descritivo. Partindo do conceito de direito dos desastres, e com base no direito como integridade (DWORKIN, 1999), sustento que estes fenômenos devem ser enfrentados a partir da concepção do direito como um conjunto articulado de valores que visa à proteção da vida, sendo necessário o atuar integrado das instituições com vistas a precaução e proteção.
Palavras-chave: Sociedade de risco; direito como integridade; desastres; ação integrada.
ABSTRACT: Disasters have intensified in contemporary society and required an adequate state response to protect life. Although there is an extensive normative system installed for the protection of the environment in Brazil, it has been shown in recent episodes that, in cases of disaster, the most diverse branches of law are used in a disjointed manner, or even isolated in their own bases dogmatic, failing to observe the requirement of risk management and the extreme vulnerability of the people. The objective of this study is to understand how the new paradigms resulting from disasters can be used to formulate and interpret legal instruments that allow for an integrated and coordinated action between the institutions responsible for managing risk and vulnerability. A literature review will be carried out, seeking to present the foundations of sociology, philosophy and theory of law, performing a legal-dogmatic analysis with the legal-descriptive method. Starting from the concept of the right of the disasters, and based on the right as integrity (DWORKIN, 1999), I argue that these phenomena must be faced from the conception of the law as an articulated set of values aimed at protecting life, requiring the integrated action of institutions with a view to precaution and protection.
Keywords: Risk society; right as integrity; disasters; integrated action.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Direito dos Desastres – 3. Direito dos Desastres e Gestão – Integrada no Brasil – 4. A Gestão dos Riscos e o Direito como Integridade – 5. Considerações Finais – 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
A crescente insegurança e o medo são expoente do novo catálogo de riscos que aportam no seio da sociedade globalizada ao lado de suas conquistas científicas. Esta nova dinâmica da vida pós-moderna requer ajustes nas relações sociais (entre os indivíduos, entre estes e o setor econômico e até mesmo com o Estado), exigindo que o direito, como “último vagão”, venha a reboque para acomodar-se ao contexto social.
Esse modelo social foi denominado por Ulrich Beck (2011) como sociedade de risco, expressão difundida na obra “Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade”. Na sociedade de risco descrita por Beck (2011), os desastres têm se intensificado e exigido resposta estatal adequada à proteção da pessoa humana. Apesar de existir um extenso sistema normativo instalado para a proteção do meio ambiente no Brasil, percebemos que, em casos de desastres (com efeitos mais amplos que, para além dos imensuráveis danos ambientais, afetam a economia, a saúde e a própria vida humana), os mais diversos ramos do direito são utilizados de forma desarticulada, ou até mesmo isoladas em suas próprias bases dogmáticas, deixando de observar a exigência de gestão do risco e a extrema vulnerabilidade das pessoas. Desse modo, os atores aplicam o direito visando objetivos que ao final se comunicam, no entanto muitas vezes estas ações são implementadas sem que se orientem por um conjunto coerente de princípios, por um só paradigma. Movem-se ações civis públicas, ações individuais, procedimentos administrativos e até ações penais, cada um utilizando seus próprios instrumentos, ritos, procedimentos e princípios. Estes fatos se repetem no Brasil, sobretudo porque não há uma disposição normativa que imponha a centralização, articulação e integração da atuação dos organismos públicos e privados na contenção dos danos e dos riscos.
Assim, nesse contexto de sociedade de riscos e de graves violações de direitos humanos que exigem solução complexa, partindo da teoria do direito como integridade, pergunta-se: de que modo deve o ordenamento jurídico disciplinar a atuação integrada e coordenada entre as instituições públicas e privadas a partir do paradigma da catástrofe? O meu objetivo é compreender de que modo os novos paradigmas decorrentes das catástrofes na sociedade de risco podem ser utilizados para a formulação e interpretação de instrumentos jurídicos que permitam atuação integrada e coordenada entre as instituições responsáveis pela gestão do risco e da vulnerabilidade. A fim de atingir o objetivo exposto, será realizada uma revisão bibliográfica a respeito do tema, buscando compreender e apresentar os fundamentos da sociologia, filosofia e teoria do direito, realizando uma análise jurídico-dogmática com o método jurídico-descritivo.
2 DIREITO DOS DESASTRES
Vivemos uma pandemia mundial decorrente do Coronavírus, que pode ser classificada como desastre natural de origem biológica, segundo Délton Carvalho (2020). Este desastre que ocorre em todo o planeta afeta o Brasil logo depois deste país ter enfrentado duas outras catástrofes de magnitude talvez nunca registrada em sua história, como foi o rompimento das barragens em Brumadinho e em Mariana (PEREIRA, 2018). Esses eventos demonstraram o distanciamento do ensino e do próprio ordenamento jurídico da realidade social, uma característica presente na atualidade, dada a base abstrata em que se sustenta.
Nestes desastres, os institutos jurídicos de que se socorreu o Estado foram sobretudo as normas ambientais, calcadas na perspectiva de dano ligada à esfera do direito privado, cujos princípios e regras jurídicas, em uma linha retrospectiva, voltam-se para efeitos e apuração de responsabilidade. Entretanto, em se tratando de desastres, o desempenho jurídico não é exigido em função reparação do dano, mas, ao contrário, requer-se que o direito disponha de instrumentos que sejam adequados a evitá-lo, tendo como horizonte os princípios da prevenção e precaução.
O direito dos desastres – em perspectiva ambiental – é concebido com a atribuição de responsabilidade para precaução, prevenção e dinâmica de concertação de ações em face do risco. Assim, o grande desafio é que o ordenamento jurídico disponha de ferramentas que possibilitem atuação prévia, uma concatenação de deveres de conduta, construção e performance de instituição para uma fase prévia à geração da lesão (KOKKE, 2020, p. 194).
O direito dos desastres se assenta no paradigma da correlação entre potencialidade de ocorrência, ou probabilidade, e magnitude dos efeitos da ocorrência do desastre (KOKKE, 2020, p. 199). Trabalha-se com a concretude da magnitude do risco e dos danos possíveis, a qual se constitui meio para a elaboração e adoção de políticas públicas e privadas capazes de concretizar medidas preventivas e mitigadoras proporcionais aos níveis de probabilidades (CARVALHO, 2015, p. 90). É neste sentido que este ramo do direito instrumentaliza a gestão do risco de situações de vulnerabilidade e de aferição da magnitude dos efeitos potencialmente devastadores e capazes de desestabilizar socioambientalmente uma comunidade.
De acordo com Kokke (2020, p. 200) o direito tem por missão funcionalizar normativamente e anteparar instituições para que autem no ciclo de fases que sucedem quando se tem por objeto um desastre ambiental, seja de causa natural, seja de causa antrópica. Busca-se conter o “ciclo da catástrofe”, por meio de gerenciamento de risco levado a efeito nas seguintes etapas: a) mitigação do risco de desastre; b) desenvolvimento do planejamento e execução de respostas em face do desastre e de situações de emergência geradas; c) adoção de medidas e programas de compensação e estabilização; d) reconstrução das áreas e vidas afetadas, seguindo-se de novos painéis de execução e planejamento de mitigação, com reabertura do ciclo (CARVALHO; DAMACENA, 2013, p. 33).
Além dessas etapas, Kokke (2020, p. 195) acrescenta uma perspectiva institucional, aduzindo que o ciclo de desastre fomenta a reestruturação de instituições públicas e privadas para um marco de otimização em cada uma das fases. Nesse aspecto, Carvalho (2015, p. 47) pontua que o que há de comum em todas estas etapas é a necessidade de gestão de riscos, de modo que o direito dos desastres é unificado por esta atividade coordenada de gestão. Com efeito, exige-se adaptação das medidas jurídicas que possam proporcionar maior grau de eficácia.
3 DIREITO DOS DESASTRES E GESTÃO INTEGRADA NO BRASIL
O marco legal brasileiro do regime jurídico de gestão do ciclo reativo ligado ao desastre, presente na Lei nº 12.608/2012, representa importante do papel do Direito na gestão e funcionalização das medidas de contenção, mitigação, resposta e compensação do desastre. Importa destacar que esta Lei institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), além de dispor sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil (SINPDEC) e o sobre Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil (CONPDEC). Neste mesmo dispositivo normativo há a autorização para a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres e dá outras providências. Expressamente, em seu artigo 2º, instrumento normativo estabelece que é dever da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios adotar as medidas necessárias à redução dos riscos de desastre, as quais podem ser executadas com a colaboração de entidades públicas ou privadas e da sociedade em geral.
Visando à articulação e integração entre os entes federados, seus órgãos e instrumentos, o legislador estabeleceu que a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil abrange as ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação voltadas à proteção e defesa civil, acrescentando que
Art. 3º (...)
Parágrafo único. A PNPDEC deve integrar-se às políticas de ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças climáticas, gestão de recursos hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciência e tecnologia e às demais políticas setoriais, tendo em vista a promoção do desenvolvimento sustentável.
Art. 4º São diretrizes da PNPDEC:
I - atuação articulada entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para redução de desastres e apoio às comunidades atingidas;
II - abordagem sistêmica das ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação;
III - a prioridade às ações preventivas relacionadas à minimização de desastres;
IV - adoção da bacia hidrográfica como unidade de análise das ações de prevenção de desastres relacionados a corpos d’água;
V - planejamento com base em pesquisas e estudos sobre áreas de risco e incidência de desastres no território nacional;
VI - participação da sociedade civil.
Em que pese disponha quanto às fases do ciclo de gestão de desastres, mantem-se alicerçada em ações sem contornos definidos, apresentando lacunas que destoam e comprometem a sua eficiência operacional, de modo que o próprio papel do Direito e dos profissionais jurídicos não está delimitado. Verifica-se ausência de parâmetros compreensivos da sua magnitude, resiliência e vulnerabilidade ainda são carentes de previsões regulatórias, o que inviabiliza a adoção de políticas públicas adequadas para a sociedade de risco ambiental permanente.
De igual modo, o Decreto 10.593 de 2020, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Informações sobre desastres, pouco avançou a respeito do tema. Neste sentido, o art. 3º do Decreto estabelece que o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil tem por objetivo atuar no planejamento, na articulação e na coordenação das ações de gerenciamento de riscos e de desastres no território nacional.
A gestão de desastres tem por pressuposto fundamental a informação, quer em sua coleta ou na publicização, de modo a viabilizar a mobilização dos organismos públicos e privados. Vale dizer, a informação é fundamental para a efetiva prevenção, princípio basilar em matéria ambiental (CARVALHO, 2015, p. 79).
Com efeito, defende-se que para compreensão do desastre e de sua ocorrência, é necessário conjunto informações e de medidas técnicas de gestão interligadas, bem como delinear elementos de uma teoria geral dos desastres (KOKKE, 2020, p. 207).
4 A GESTÃO DOS RISCOS E O DIREITO COMO INTEGRIDADE
Ulrich Beck (2011) realiza uma análise da sociedade a partir da concepção de risco, defendendo que vivemos um momento de ruptura no interior da própria modernidade, que não implicaria no fim, mas sim uma reconfiguração social e uma assunção de novos contornos, que operam modificações em diversos âmbitos, desde o comportamento do cidadão, influenciando a política e a economia. A despeito de todo este cenário, a constatação da irreversibilidade das ameaças e do interesse do poder econômico em sua manutenção deve orientar as estruturas sociais para a revisão de suas bases e adequação à nova realidade da sociedade de riscos, que converte em normalidade o estado de permanente insegurança. As premissas apresentadas por Ulrick Beck (2011, p. 07) ao analisar os riscos advindos com o novo modelo de sociedade, demonstram a universalização dos riscos no mundo globalizado, tendo como paradigma a tragédia de Chernobyl.
Para explicar sociologia do risco de Ulrich Beck, dissemos em outro momento que suas as características são apresentadas a partir de cinco teses que confirmariam a sua dinâmica política e o potencial de autoameaça civilizatória: (1ª) os riscos são criados sistematicamente, são frequentemente irreversíveis e invisíveis; (2ª) os riscos produzem um “efeito bumerangue”, pois atingem, cedo ou tarde, quem os produziu e quem deles se beneficiou – nem os ricos e os poderosos estariam seguros; (3ª) a expansão dos riscos não rompe a lógica capitalista, ao contrário, a criação e exploração comercial dos riscos os transforma em um grande negócio (big bussines); (4ª) o conhecimento dos riscos adquire nova relevância política e gera consciência diferenciada sobre seus efeitos; (5ª) a sociedade de riscos é a sociedade das catástrofes, na qual o estado de exceção (ameaça) converte-se em normalidade (LIMA, 2021).
Para ilustrar seu pensamento, Beck utiliza o recurso metafórico, comparando as transformações encenadas na atualidade com o rompimento do antigo regime da sociedade estamental:
Assim como no século XIX a modernização dissolveu a esclerosada sociedade agrária estamental e, ao depurá-la, extraiu a imagem estrutural da sociedade industrial, hoje a modernização dissolve os contornos da sociedade industrial e, na continuidade da modernidade, surge uma outra configuração social (BECK, 2011, p. 12-13).
É nessa mesma linha de compreensão e socorrendo-se de metáfora análoga que Bauman (2001, p. 234) sustenta que a modernidade líquida (o que para outros autores seria a pós-modernidade) não mantém suas características de forma rígida, como ocorria na modelo social anterior, exigindo mobilidade e capacidade de adaptação. Desse modo, em uma sociedade de riscos em elevada velocidade de mudanças, onde ocorre o derretimento dos paradigmas, exige-se cada vez mais que os meios de controle social sofram reformulações em suas estruturas.
Beck (2011, p. 27-28), ao discorrer sobre as características da sociedade de risco, apresenta cinco teses que confirmariam a sua dinâmica política e o potencial de autoameaça civilizatória: (1ª) os riscos são criados sistematicamente, são frequentemente irreversíveis e invisíveis; (2ª) os riscos produzem um “efeito bumerangue”, pois atingem, cedo ou tarde, quem os produziu e quem deles se beneficiou – nem os ricos e os poderosos estariam seguros; (3ª) a expansão dos riscos não rompe a lógica capitalista, ao contrário, a criação e exploração comercial dos riscos os tranforma em um grande negócio (big bussines); (4ª) o conhecimento dos riscos adquire nova relevância política e gera consciência diferenciada sobre seus efeitos; (5ª) a sociedade de riscos é a sociedade das catástrofes, na qual o estado de exceção (ameaça) converte-se em normalidade.
Nesse contexto, a teoria do direito como integridade de Dworkin (1999) vem corroborar com Beck, apresentado a assunção de uma posição hermêutica que consiste em considerar o ordenamento como um conjunto coerente de princípios, ou seja, um todo considerado de princípios, regras e diretrizes políticas. Vale salientar que, conforme destacam Lima, Batos Netos e Santana (2021),
Todo sistema jurídico tem por base um conjunto de princípios que o orientam. Os princípios, de acordo com Miguel Reale (1999), são “verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade”. De forma mais concisa, podemos afirmar que “princípios são mandamentos de otimização” (ALEXY, 2008).
A teoria do direito como integridade consiste na assunção de uma posição hermenêutica que Dworkin (1999, p. 60) denomina de interpretação construtiva ou criativa. Ele destaca que devemos entender o ordenamento jurídico como um todo considerado de princípios, regras e diretrizes políticas. O autor trabalha com a ideia de que para todo caso colocado diante do juiz há apenas uma resposta normativamente correta. Não se concebe o sentido de resposta certa ou verdadeira, mas sim a acepção de correção, considerando que a coesão e integridade do sistema jurídico só permitiriam ao juiz uma única resposta. Esse pensamento dworkiniano é apresentado inicialmente na obra O Império do Direito, cuja primeira edição foi publicada em 1986. Para Dworkin (1999, p. 6), os processos judiciais suscitam três tipos de questões: de fato, de direito e de moralidade política, que se traduzem em o que ocorreu, qual lei é aplicável e se há justiça nesse ditame. O autor norte-americano compreende que a interpretação das práticas sociais é complexa e deve ser vista em seu contexto, em suas semelhanças e diferenças.
Desse modo, a interpretação das práticas sociais se assemelharia à interpretação artística, pois ambas têm como objeto o produto da criação humana e, por esta razão, consistem em interpretação criativa. Esta interpretação criativa deve ser construtiva e ter como parâmetro a coerência normativa (DWORKIN, 1999, p. 60-62). A interpretação construtiva, nesse contexto trabalhado pelo jusfilósofo, teria a limitação da coerência e da integridade, não se afastando do fato de que a interpretação “reconhece as imposições da história ao mesmo tempo que luta contra elas” (DWORKIN, 1999, p. 75).
É certo que a forma de interpretar o direito muda ao longo do tempo, observando-se épocas em que determinadas soluções interpretativas ganham maior evidência, como o maior relevo à força da legislação e do precedente. No entanto, Dworkin (2020, p. 196) acentua que quando os juízes se debruçam sobre casos difíceis, realizam um processo unitário de interpretação, limitados por restrições institucionais, em diálogo com os valores pessoais e tradições morais da comunidade.
Macedo Júnior (2013, p. 151), ao debruçar sobre a teoria dworkiniana, destaca que quando “as práticas sociais que estamos interpretando envolvem algum valor, nossa interpretação destas é, em alguma medida, criativa, visto que impõem uma intencionalidade (...) como condição para a prática interpretativa”. Assim, interpretar uma prática social pressupõe atribuição de intencionalidade, sempre que esta prática envolva valor ou propósito.
Após delinear essas premissas que direcionam o seu pensamento, o autor apresenta a sua concepção do direito como integridade, a qual pressupõe um certo tipo de comunidade política, que elege determinadas virtudes que buscam refletir os padrões mais básicos da política comum: imparcialidade, justiça e devido processo legal. O próprio direito seria uma prática social interpretativa e a interpretação seria um fenômeno social. Dentre os valores escolhidos pela comunidade e em uma concepção de justa distribuição de recursos e oportunidades e um processo equitativo, Dworkin (1999, p. 201) afirma que é exigido que “o governo tenha uma só voz e aja de modo coerente e fundamentado em princípios com todos os seus cidadãos, para estender a cada um os padrões fundamentais de justiça e equidade que usa para alguns”.
Para Dworkin (1999, p. 213; 261) existem dois princípios da integridade política: um dirigido aos legisladores (que reclama um conjunto de leis moralmente coerente) e, por outro lado, o princípio da integridade jurisdicional, cujo vetor aponta para o juiz, exigindo que veja a lei como coerente, sempre que possível. Em outras palavras, a integridade na legislação – que restringe a ação criadora de normas públicas – e integridade na deliberação judicial, que traz a exigência direcionada aos juízes, de modo que considerem que o sistema de normas públicas deve ser tratado como um conjunto coerente de princípios. Disso decorre a possiblidade e o dever de interpretar as normas extraindo e revelando o seu conteúdo implícito, alinhado aos valores sociais. Nesse aspecto, a integridade seria uma virtude, ao lado da justiça, da equidade e do devido processo legal. Para o ilustre autor, ao aceitar a integridade como virtude, uma sociedade política teria a possibilidade de promover sua autoridade moral para assumir e mobilizar monopólio de força coercitiva, protegendo o cidadão contra a parcialidade, a fraude ou outras formas de corrupção. Dworkin (1999, p. 229) defende que a integridade, nesse sentido, reforça a eficiência do direito, pois evita a necessidade de detalhamento exaustivo na legislação vigente. Vale dizer, a existência e o reconhecimento de um conjunto de normas públicas que decorrem dos princípios evitam a necessidade de exaustão legislativa, o disciplinamento legal de toda e qualquer matéria de relevância social.
Nessa linha, Bobbio (2010), aderindo ao juspositivismo, concebe o ordenamento jurídico a partir da unidade, coerência e completude, vinculando a noção de sistema à ideia de unidade. Esta unidade e coerência do ordenamento jurídico devem ser utilizada para buscar a instrumentalização dos órgãos para que cumpram o imperativo de tutela constitucional.
Logo, para que o Estado atenda ao comando constitucional de proteção da dignidade humana (art. 1º, III, CF/88) e do meio ambiente (art. 225 da CF/88) é necessário que o ordenamento jurídico disponha de medidas para a gestão do risco dos desastres, nisso incluindo previsão concreta de articulação entre os organismos responsáveis pela gestão, fiscalização e investigação de condutas potencialmente geradoras de dano de elevada magnitude.
O desastre ambiental de Brumadinho/MG, revelou não somente um elevado nível de vulnerabilidade diante do evento em si, mas também expôs níveis de vulnerabilidade jurídica e deficit de densidade normativa. Com o rompimento da barragem, foram despejados 13 milhões de metros cúbicos de lama com metais pesados, substâncias químicas e tóxicas, devastando os locais por onde passou, matando 270 pessoas (CUNHA; CALGARO, 2020 p. 23). O Ministério Público mineiro afirma que a sua atuação se desenvolveu em três eixos: o socioeconômico, para a busca da indenização dos atingidos; o socioambiental, para a reparação ambiental, e o eixo criminal. No entanto, a magnitude do desastre de Mariana não parece ter alertado o suficiente as autoridades para a adoção de medidas concretas que evitassem um segundo evento catastrófico (Brumadinho).
Desse modo, adotando o caso Brumadinho como referência, é necessário que os novos paradigmas decorrentes das catástrofes na sociedade de risco sejam aptos a mobilizar a formulação e interpretação de instrumentos jurídicos que permitam atuação integrada e coordenada entre as instituições responsáveis pela gestão do risco e da vulnerabilidade.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme foi trabalhado ao longo desta pesquisa, os desastres que acometem a sociedade contemporânea exigem do direito respostas que sejam adequadas às complexidades. Observou-se que, em que pese existirem normas e ferramentas para atuação em situação de dano ou até mesmo de desastres, ainda não tempos normatização harmoniosa que discipline a atuação dos mais diversos órgãos.
Nesse sentido, compreendendo o direito como um conjunto articulado de valores, conclui-se o sistema jurídico precisa ser visto em sua integralidade, sendo necessário que os novos paradigmas decorrentes das catástrofes na sociedade de risco sejam aptos a mobilizar a formulação e interpretação de instrumentos jurídicos que permitam atuação integrada e coordenada entre as instituições responsáveis pela gestão do risco e da vulnerabilidade, com vistas à precaução e proteção.
6 REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida; tradução Plínio Dentzien – Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2001.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade; tradução de Sebastião Nascimento. 2 Ed. – São Paulo: 34, 2011.
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______. Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013.
CUNHA, Ada Helena Schiessl da; CALGARO, Cleide. Desastre de Mariana e Brumadinho: uma breve análise crítica sob o aspecto da moderna responsabilidade. In: BRASIL, Deilton Ribeiro; CARVALHO, Délton Winter de; SILVA, Romeu Faria Thomé da. (Org.). A emergência do direito dos desastres na sociedade de risco globalizada. 1ed.Belo Horizonte: Conhecimento, 2020, v. 01, p. 21-40.
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PEREIRA, Diego. Histórias de vida interrompidas pelo mar de lama: desastre de Mariana (MG). 2018. 92 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania). Universidade de Brasília, Brasília, 2018.
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Segurança Pública, Justiça e Cidadania (UFBA). Bacharel em Direito (UFBA). Especialização em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Pesquisador do Grupo de Pesquisa de Direitos Humanos e Cidadania da Universidade Federal da Bahia. Promotor de Justiça do estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, JAIR ANTÔNIO SILVA DE. Direito dos desastres e gestão integrada do risco Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 ago 2021, 04:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57116/direito-dos-desastres-e-gesto-integrada-do-risco. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: gabriel de moraes sousa
Por: Thaina Santos de Jesus
Por: Magalice Cruz de Oliveira
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