Resumo: O presente artigo tem por finalidade examinar as implicações negativas e positivas da origem, desenvolvimento e evolução da prática do ativismo judicial no exercício da judicialização da política, sob o enfoque da crescente nova sistemática na aplicação do direito no intuito de adequar da interpretação das normas jurídicas à realidade social contemporânea, bem como suprir lacunas na legislação para atender aos anseios da sociedade. Para tanto, tratando o estudo acerca da judicialização da política e do ativismo judicial, será abordada a distinção entre os institutos, bem como as teorias sobre a expansão da atuação do poder judiciário na política, divididas numa corrente tradicional chamada de procedimentalista e outra com tendência a flexibilizar a atuação ativa dos juízes denominada de substancialista, passando a uma breve análise da origem, desenvolvimento e evolução dos institutos, finalizando com uma abordagem acerca da prática do ativismo judicial no Brasil e suas consequências.
Palavras-chave: Ativismo judicial. Judicialização da política. Expansão do Poder Judiciário.
Abstract: The present work has as it’s main purpose the examination the negative and positive implications of the origin, development and evolution of the practice of judicial activism in the exercise of the judicialization of politics, under the focus of the growing new system in the application of law in order to adapt the interpretation of legal norms to contemporary social reality, as well as filling gaps in legislation to meet society's wishes. To this end, addressing the study on the judicialization of politics and judicial activism, the distinction between the institutes will be addressed, as well as the theories on the expansion of the role of the judiciary in politics, divided into a traditional current called proceduralist and another with a tendency to make the active performance of the judges more flexible, called substantialist, passing to a brief analysis of the origin, development and evolution of the institutes, ending with an approach about the practice of judicial activism in Brazil and its consequences.
Keywords: Judicial activism. Judicialization of politics. Expansion of the Judiciary
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Distinção entre judicialização das Políticas Públicas e Ativismo Judicial; 3. Teorias sobre a expansão da atuação do Poder Judiciário na política; 3.1. Teoria Procedimentalista; 3.2. Teoria Substancialista; 4. Origem, desenvolvimento e evolução do Ativismo Judicial no Brasil; 5. A Prática do Ativismo Judicial no Brasil e suas consequências; 6. Considerações Finais; 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objeto a abordagem do tema a origem, desenvolvimento e evolução da prática do ativismo judicial no exercício da judicialização da política: implicações negativas e positivas, limitado ao estudo do direito constitucional, que é um ramo do direito público dedicado à análise e interpretação das normas constitucionais, compreendidas como o ápice da pirâmide normativa da ordem jurídica.
O seu objetivo geral é examinar as implicações do ativismo judicial no exercício da judicialização da política oriunda da expansão da atuação do poder judiciário, diante da necessidade de uma nova sistemática na aplicação do direito para adequar a interpretação das normas jurídicas à realidade social.
Os objetivos específicos são: Estudar os conceitos de forma a diferenciar a judicialização das políticas públicas e o ativismo judicial para sanar a confusão entre os institutos sempre que analisados amplamente; Identificar as teorias sobre a expansão da atuação do poder judiciário na política; Observar a origem, desenvolvimento e evolução do ativismo judicial no Brasil pela contribuição do direito comparado; Identificar, mediante contribuição de caráter científico, as consequências positivas e negativas da prática do ativismo judicial no Brasil.
Neste contexto, principia-se explanando acerca da judicialização das políticas públicas e do ativismo judicial, onde se discorrerá sobre suas conceituações de forma a diferenciar os termos que não devem ser empregados como sinônimos.
Discorrer-se-á ainda sobre a expansão da atuação politica do poder judiciário, com breve explanação sobre as teorias que defendem uma participação ativa ou limitada do Judiciário, seguindo da análise da origem, desenvolvimento e evolução do ativismo judicial, chegando ao tema central do presente artigo, sendo abordada a prática do ativismo judicial no Brasil, finalizando com uma abordagem sobre as consequências dessa atuação, destacando pontos positivos e negativos intervenção judicial.
A presente pesquisa se encerra com as considerações finais nas quais serão apresentados pontos conclusivos destacados, seguidos da estimulação à continuidade da pesquisa e das reflexões sobre a aplicação do tema proposto.
Quanto à metodologia empregada, registra-se a utilização do método Indutivo. Acrescenta-se que o trabalho não se desenvolverá de forma linear, em termos cronológicos, ou seja, sempre que necessário, se fará interpelações entre épocas e autores.
2. DISTINÇÃO ENTRE JUDICIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E ATIVISMO JUDICIAL
O ativismo judicial está sendo debatido nos meios acadêmicos designado pela terminologia judicialização da política, cuja conceituação, de maneira ampla, refere-se à intervenção do judiciário na arena política pela atuação proativa (HESS, 2012).
Cumpre dizer que é grande a confusão entre os institutos, principalmente se analisado amplamente como feito acima, pois a “judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, portanto, da mesma família, freqüentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas” (BARROSO, 2007, p. 5), e por mais parecidos que possam ser, os conceitos divergem substancialmente.
Judicialização consiste na resolução de conflitos pelo Poder Judiciário, em detrimento dos Poderes Executivo e Legislativo, geralmente pela ineficácia das normas constitucionais oriunda da omissão destes últimos. Atualmente, é um fato comum em países democráticos, tendo ela se originado de acontecimentos externos, não relacionados com a pretensão direta do Poder Judiciário.
No contexto brasileiro, a judicialização é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria (BARROSO, 2007, p. 05).
Neste aspecto, judicialização é tida como fato que representa a transferência de poder político ao judiciário.
Complementando, transcrevam-se as seguintes palavras:
A judicialização da política ocorre porque os tribunais são chamados a se pronunciar onde o funcionamento do Legislativo e do Executivo mostra-se falhos, insuficientes ou insatisfatórios. Sob tais condições, ocorre certa aproximação entre Direito e Política e, em vários casos, torna-se mais difícil distinguir entre um ‘direito’ e um ‘interesse político’, sendo possível se caracterizar o desenvolvimento de uma ‘política de direitos’ (CASTRO, 1997, p. 27).
Portanto, visando garantir o gozo dos direitos previstos nos dispositivos constitucionais que, em tese, só poderiam ser exercidos pelo Poder Executivo, ou por vezes, mediante a criação de uma norma pelo Poder Legislativo, o judiciário obriga-se a exceder a sua competência para suprir a falha, caracterizando assim, a judicialização.
Em síntese, significa que uma parcela do Poder Político está sendo transferido das instâncias políticas tradicionais para o Poder Judiciário, ou seja, questões econômicas, sociais ou morais, estão sendo submetidas ao Poder Judiciário.
O fato é que o excesso de demandas de cunho político levadas ao judiciário é que faz com que os juízes atuem de maneira expansiva, ultrapassando o limite da lei.
Já o ativismo, diferente da judicialização, consiste em atitude, onde se aplica os princípios do direito a situações não previstas na legislação. O ativismo judicial pode ser considerado como uma postura participativa do magistrado tanto na condução do processo judicial quanto na análise e julgamento do mérito.
Diferenciando os institutos, nos valemos das palavras esclarecedoras abaixo:
O ativismo judicial é percebido como uma atitude, decisão ou comportamento dos magistrados no sentido de revisar temas e questões – prima facie – de competência de outros poderes. A judicialização da política, mais ampla e estrutural, cuidaria de metacondições jurídicas, políticas e institucionais que favoreceriam a transferência decisória do eixo Poder Legislativo – Poder Executivo para o Poder Judiciário (SILVA, 1996, p. 56-57).
A judicialização diz respeito a possibilidade de atividade do judiciário na interpretação normativa, onde o juiz atua além das atribuições de aplicação da lei, enquanto o ativismo judicial diz respeito a conduta ativa do juiz em criar normas, mediante novos entendimentos, ampliando as formas legais.
A diferença está, portanto, na atividade criativa dos tribunais.
O ativismo judicial surge quando o Poder Judiciário é provocado e, pelo dever constitucional de decidir, não pode invocar lacuna na lei ou inexistência desta para deixar de resolver o que lhe foi submetido, isso significa que o juiz precisa decidir a matéria mesmo que o Poder Legislativo não tenha atuado, tornando-se um juiz legislador.
Portanto, apesar de próximos, os termos não devem ser empregados como sinônimos, devendo ficar claro que a judicialização é mais ampla, enquanto o ativismo judicial poderá estar contido naquele.
3. TEORIAS SOBRE A EXPANSÃO DA ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA POLÍTICA
Existem divergentes avaliações a respeito da repercussão do papel do direito na política, embora consista numa exigência constitucional a atuação do Poder judiciário em defesa da Constituição e do Estado Democrático de Direito, há quem afirme que não cabe a este Poder a implementação das políticas (PAULA, 2012, p. 204).
Há um eixo procedimentalista, em defesa de um Judiciário com poderes mais limitados, e um eixo substancialista que preconiza uma participação mais efetiva do Judiciário nas democracias contemporâneas.
Passamos, portanto, a uma breve explanação sobre cada uma das teorias.
3.1. TEORIA PROCEDIMENTALISTA
Explorador da proposta de divisão dos poderes na formação do estado, Montesquieu sempre defendeu que a função dos juízes limitava-se a pronunciação do texto legal, inexistindo qualquer possibilidade de interferência construtiva na aplicação da lei.
Essa é a denominada dogmática tradicional, que prega pelo subjetivismo judicial, conduz a uma diminuição da atuação do Poder Judiciário, onde as partes litigantes do processo encontram juízes submissos ao dogma legal, sujeitos a uma interpretação unicamente dos ditames da lei.
Vejamos o que diz a doutrina sobre o assunto:
Todo aquele que considerar atentamente os diferentes poderes perceberá que, num governo em que eles estão separados, o Judiciário, pela natureza de suas funções, será sempre o menos perigoso para os direitos políticos da Constituição, por ser o menos capaz de transgredi-los ou violá-los. O executivo não só dispensa as honras como segura a espada da comunidade. O legislativo não só controla a bolsa como prescreve as regras pelas quais os deveres e direitos de todos os cidadãos são regulados. O Judiciário, em contrapartida, não tem nenhuma influência nem sobre a espada nem sobre a bolsa; nenhum controle nem sobre a força nem sobre a riqueza da sociedade, e não pode tomar nenhuma resolução ativa. Pode-se dizer que não tem, estritamente, força nem vontade, mas tão-somente julgamento, estando em última instância na dependência do auxílio do braço executivo até para a eficácia de seus julgamentos (SOUZA JÚNIOR, 2004, p. 45).
Vale destacar também:
Os dogmáticos prendem-se ao seu estudo isolado, fora do contexto social, restringindo-se à esfera jurídica, não perquirindo suas conseqüências na vida cotidiana da sociedade. Uma vez obedecidos os princípios formais, estará o Direito legitimado, as suas teorias tidas como justas, não se considerando as relações sociais concretas (ALVES, 2004, p. 15).
Para os procedimentalistas o controle judicial prejudica o exercício da cidadania ativa, pois envolve uma postura paternalista, onde os cidadãos deixam de ser autores e tornam-se meros destinatários do direito (PAULA, 2012, p. 204-205).
Tal concepção influenciou a aplicação do direito na solução dos conflitos, constituindo uma atividade neutra e imparcial, onde o juiz funciona meramente como a boca que pronuncia as palavras da lei.
Neste sentido:
O juiz liberal, via de regra, é um artista cujo talento não está em criar, mas em fingir que fala: obediente à máxima da “boca inanimada” o juiz liberal é um juiz ventríloquo iludido que pensa que fala, quando, no fundo, apenas articula os lábios para que as palavras da lei possam ser ouvidas. Talvez uma outra metáfora histórica fosse mais completa: o juiz do Estado liberal é um juiz eunuco, um juiz estéril (não cria leis, aplica-as), de semblante impassível (afinal, sua capacidade interpretativa é, en quelque façon, nula) e encarregado de prestar segurança à integridade da cidadela legalista. (SOUZA JÚNIOR, 2004, p. 49).
Uma particularidade real trazida pela ideologia formalista na atuação do poder judiciário, já que a missão do juiz não era criar regras, mas somente aplicá-las, seria a obrigatoriedade de aplicação destas – embora frequentemente inconsciente disso – em benefício dos detentores de poder econômico e político em detrimento das outras pessoas da sociedade (SOUTO, 2012).
No mesmo sentido, Alves (2004, p. 16) aponta que embora do ponto de vista estritamente metodológico as intenções tenham sido as melhores, o fato é que o formalismo transformou o direito em chancela à vontade do mais forte, ou seja, aquele que detém o poder estatal que selecionará o material que o judiciário deve processar, com rigor formal a ponto de entregar à sociedade uma justiça incontestável.
O doutrinador abaixo citado, leciona neste sentido:
A educação jurídica tradicional, apesar de todo o seu discurso de isenção do juiz, conduzia pois, na prática real, ao desequilíbrio dos poderes, com amesquinhamento da atuação substantiva dos juízes, levados a uma tendência de aplicação maquinal da lei – aplicação que teria seu ideal na cegueira do juiz para todo social não-legal, o que garantiria sua imparcialidade quase ascética. A boa justiça será, na verdade cega, com a tradicional venda nos olhos” (SOUTO, 2012).
O direito transforma-se em técnica de solução de conflitos, uma máquina que executa eficazmente, e com convincente aparência de imparcialidade, as tarefas para as quais foi programada, mas quem a programa, ou seja, realmente decide, é aquele que detém o poder para tanto (ALVES, 2004, p. 15).
Portanto, a concepção da Tripartição dos Poderes teve inicialmente um entendimento rígido, onde cada poder possuía suas funções específicas e arbitrárias, inexistindo, assim, harmonia entre os mesmos.
Para Paula (2012, p. 205), a corrente do procedimentalismo não pode prosperar no Brasil, posto que o Estado brasileiro, embora Democrático e Social, distancia-se de uma prática paternalista, que não pode ser confundida com concessões governamentais provisórias e discricionárias.
O mesmo autor supracitado, complementa seu raciocínio salientando que a expressão ativismo judicial possui entonação que recebe repulsas justamente pela ausência de similar entendimento de que o Estado vigente não se concebe como o liberal, muito menos como o absolutista. Assim, a neutralidade do julgador é uma falácia utópica que nem mesmo os leigos ou calouros acadêmicos do Direito conseguem forçosamente aceitar (PAULA, 2012, p. 147-148).
3.2. TEORIA SUBSTANCIALISTA
Como visto, há quem acredita e defenda, como meio de observar as leis da política sistematizadas por Montesquieu, que os poderes possuem funções estanques, sendo que qualquer desvirtuação das funções respectivas, caracterizaria usurpação de poder. Contudo, pela forma como se encontram dispostos os Poderes na CRFB/88, supera-se a ideia inicial de prevalência de um poder sobre o outro, nascendo a compreensão da necessidade de equilíbrio, independência e harmonia entre estes.
No Brasil, é observada a superação da filosofia formalista pelo reconhecimento da normatividade dos princípios, ainda que não estejam escritos.
A CRFB/88 identifica a dignidade da pessoa humana como o princípio fundamental mais importante, conferindo-lhe caráter norteador aos demais direitos fundamentais.
Nesse sentido, cita-se o seguinte ensinamento:
O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma em construção incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana. (BARROSO, 2007, p. 07).
Neste viés: “[...] o Tribunal deve tomar decisões de princípio, não de política – decisões sobre que direitos as pessoas têm sob o nosso sistema constitucional, não decisões sobre como se promove o bem-estar geral” (DWORKIN, 2001, p. 101).
Ao propor transparência das questões políticas para o Poder Judiciário, referido autor sugere que os litígios sejam solucionados por argumentos jurídicos e não políticos. De sua obra é possível extrair: “Estou afirmando agora apenas que os legisladores não estão, institucionalmente, em melhor posição que os juízes para decidir questões sobre direitos” (DWORKIN, 2001, p. 27).
Em análise à tradicional teoria de tripartição de poderes, pode ser questionado algo muito pertinente ao tema objeto de pesquisa do presente trabalho, refere-se a possibilidade de o judiciário criar o direito em detrimento à função inicialmente exclusiva do Poder Legislativo. Em resposta se expõe que a atividade criadora do legislador resulta da aplicação do texto Constitucional, onde também lhe é dada a atribuição de aplicar o direito, concluindo, portanto, que não há significativa diferença entre a atividade legislativa e a atividade jurisdicional, pois ambas implicam a criação e a aplicação do direito posto (SOUZA JÚNIOR, 2004, p. 113).
A respeito das funções do estado exercidas pelos poderes constitucionalmente designados a uma atuação harmônica, transcreve-se:
Tanto o Judiciário quanto o Legislativo desempenham, além de suas funções próprias ou típicas (judiciária e legislativa, respectivamente), funções atípicas administrativas, quando, por exemplo, exercem a gestão de seus bens, pessoal e serviços. Por outro lado, o Executivo e o Judiciário desempenham, também, função atípica legislativa (este, na elaboração dos regimentos dos tribunais – CF, art. 96, I, “a”; aquele quando expede, por exemplo, medidas provisórias e leis delegadas – CF, arts. 62 e 68. Finalmente, o executivo e o legislativo também exercem, além de suas funções próprias, a função atípica de julgamento (o Executivo, quando profere decisões nos processos administrativos; o Legislativo, quando julga autoridades nos crimes de responsabilidades, na forma do art. 52, I, II, e parágrafo único da Constituição) (PAULO, ALEXANDRINO, 2009, p. 385-386).
Portanto, não se pode reduzir a função do judiciário à tarefa de aplicar mecanicamente as normas legais, sendo, portanto, competente para atuar sobre o Poder Legislativo quando for para impedir abusos de poder, proporcionar a harmonia entre os poderes, garantir as liberdades ou assegurar o exercício das próprias funções (FERRAZ, 1994, p. 14).
A República e o Estado brasileiro são unos, sendo as funções repartidas apenas para possibilitar o sistema de freios e contrapesos, isso significa dizer que os poderes do Estado se comunicam entre si, possuindo idênticos deveres quanto aos fundamentos e objetivos consagrados no texto constitucional (PAULA, 2012, p. 202).
Portanto, aceitando a tese de que o poder do Estado é uno, não se pode falar em separação de poderes, faz-se necessário acreditar no fenômeno da separação ou distribuição de funções desse poder atrelado. Na realidade, a cada órgão ou complexo de órgão atribui-se uma função estatal materialmente definida (CARVALHO, 2008, p. 168).
Apesar de independentes entre si, inexiste subordinação entre os mesmos por serem harmônicos, devendo todos, igualmente, objetivar os fins constitucionais.
Na busca pela conexão da postura contemporânea do judiciário perante questões políticas, pode-se dizer que a separação de poderes pregada por Montesquieu é um mito, o que existem são sistemas de distribuição de funções políticas mais ou menos rígidos (SOUZA JÚNIOR, 2004, p. 135-136).
Para os substancialistas, o Poder Judiciário precisa adquirir novo papel ante a função intervencionista do Estado para ser o intérprete do justo na prática social, ou seja, o Judiciário precisa constituir-se em poder estratégico para assegurar que as políticas públicas garantam a democracia e os direitos fundamentais e não os interesses hegemônicos específicos (PAULA, 2012, p. 205).
Assim, a independência e o poder hoje outorgados aos juízes representa, sobretudo, um direito da população como garantia de um sistema republicano saudável a partir da separação dos poderes. Diante desse entendimento, idealizamos que a crítica exercida sobre o ativismo judicial é realizada apenas pelo temor de desvirtuamento da doutrina dogmática, que, como explanado, teme a possível arbitrariedade do judiciário.
O juiz não é uma máquina e o processo não se presta soluções exatas, sendo necessário rejeitar a tese da mecanicista aplicação do direito (OLIVEIRA, p. 66).
Por mais formal que seja a atuação do magistrado e dos legisladores, as leis e decisões judiciais sempre possuem algum grau de referência social, contudo, logicamente que quanto maior o formalismo na formação de tais operadores jurídicos, menor a abertura social existente.
Sobre uma prática jurisdicional mais atuante por parte dos julgadores na contemporaneidade, temos que na aplicação do Direito na atualidade, não pode o interprete deixar de considerar a multiplicidade de relações que envolvem o funcionamento do Estado Contemporâneo, as suas carências e limitações e também a sua função primordial, que é fomentar o pleno desenvolvimento humano com qualidade de vida em todas as suas formas. Julgar com responsabilidade não é criar mas sim reparar injustiças e garantir direitos fundamentais legítimos e factíveis em determinado tempo e lugar (BODNAR e CRUZ, 2011, p. 125).
4. ORIGEM, desenvolvimento e evolução Do ativismo judicial NO BRASIL
No quadro histórico, o modelo de estado liberal revelou-se incapaz de atender as demandas sociais massificadas e hipercomplexas. Portanto, se no modelo liberal a estratégia de ação era não interferir para resguardar os direitos liberais, no estado social requer-se uma atitude positiva para que a garantia plena dos direitos aconteça também por intermédio do Estado que passa a ser responsável por uma grande quantidade de prestações sociais, é quando se passa a perceber uma atividade mais ativa do Poder Judiciário (BODNAR, CRUZ, 2011, p. 115).
Sendo o ativismo judicial espécie do gênero judicialização da política, importante iniciar as considerações acerca das primitivas manifestações daquele, para uma análise do surgimento e desenvolvimento deste último.
Como visto, Judicialização significa que questões de repercussão social estão sendo decididas pelo Poder Judiciário e não pelas instâncias políticas tradicionais.
Durante a ditadura militar, a intervenção do judiciário nas questões políticas recebeu vedação constitucional, tendo sido transmitido ao judiciário, segundo a doutrina, a neutralidade do direito formal omissa à apreciação crítica da atuação do poder estatal, como meio de consolidar o domínio daqueles que exerciam tal poder (ALVES, 2004, p. 17).
Ao comentar a judicialização da política no Brasil, Teixeira (2001, p. 36) parte do declínio da política macroeconômica com o fracasso do regime militar autoritário na primeira metade da década de 1970, como fator determinante para o seu surgimento, salientando que é conseqüência do funcionamento do sistema democrático de governo onde o sistema constitucional prescreve e assegura direitos e garantias individuais.
Oportuno dizer porém, que o rápido processo de redemocratização vivenciado pelo Brasil nas últimas décadas, produz a ilusão de que o período da ditadura militar pertence um passado muito remoto, e que o formalismo e rigor existente na época já não influenciam na aplicação do direito, mas aos estudiosos não é permitido negligenciar os fenômenos ocorridos, por serem decisivos para aprofundar a compreensão acerca da resistência havida sobre a atuação ativa dos juízes (ALVES, 2004, p. 13).
Também, houve a abertura do magistrado brasileiro para o social, intensificada a partir da difusão no Brasil dos estudos informais (autodidáticos) ou formais (acadêmicos) de natureza sociológico-jurídica. Esses estudos, como formalmente acadêmicos, se iniciaram na Universidade de Recife, agora chamada Universidade Federal de Pernambuco, em 1963, na então Divisão de Ciência do Direito do Instituto de Ciências do Homem (SOUTO, 2012).
Por essa influência, até os dias atuais o ensino sócio-jurídico brasileiro tem dito orientação para contraditar o dogma formalista, onde vários juízes recebem uma educação jurídica que tende a enxergar o julgamento praeter legem como algo perfeitamente natural e a encarar a própria decisão judicial contra legem como algo socialmente existente, embora excepcional, e inevitável em sua excepcionalidade (SOUTO, 2012).
A CRFB/88 é eminentemente social, e ao atribuir dever de harmonia às funções do Estado, acaba por expandir a atuação do Judiciário na efetiva prestação dos direitos sociais. Ademais ao possuir vasto rol de princípios e direitos fundamentais e cláusulas abertas com conceitos indeterminados que demandam interpretação, crescem as demandas judiciais para solução de conflitos entre os próprios dispositivos constitucionais e com a legislação infraconstitucional.
Como decorrência da mencionada expansão do Poder Judiciário, muitas questões antes decididas exclusivamente pelo Poder Executivo passaram a ser objeto de tutela jurisdicional. As políticas públicas e decisões estritamente políticas começaram a sofrer interferência e fazer parte do dia a dia do Poder Judiciário, passando a se misturar com a justiça, sendo tal fenômeno denominado de judicialização (SALOMÃO, 2018).
Tem-se que as primeiras demandas sobre questões políticas levadas ao judiciário brasileiro, foram apresentadas em sede de habeas corpus à Suprema Corte, essencialmente pela falta de outro remédio constitucional disponível. Nestes, o Supremo Tribunal Federal afirmou a possibilidade de intervenção judicial no caso político quando acompanhado de uma questão judiciária, garantiu o exame judicial acerca dos motivos e consequências políticas dos atos de intervenção nos estados, e construiu o entendimento de que o judiciário poderia conhecer de casos puramente políticos quando existente lesão de direito individual (SOUZA JÚNIOR, 2004, p. 88).
A título de ilustração, como meio de efetivar um apanhado da história brevemente exposta, cita-se:
Quando observamos o caso brasileiro, parece-nos que todas essas condições estiveram presentes nos últimos anos, em maior ou menor medida, o que nos tornaria um importante exemplo de judicialização da política. A democracia restabelecida nos anos 80, seguida de uma Constituição pródiga em direitos em 1988, com um número cada vez maior de grupos de interesses organizados demandando solução de conflitos coletivos, contrastando com um sistema político pouco majoritário, de colisões e partidos frágeis para sustentar o governo, enquanto os de oposição utilizam o Judiciário para conte-lo, além de um modelo constitucional que delegou a Justiça a proteção de interesse em diversas áreas, refletindo até mesmo o alto grau de legitimidade do Judiciário e do Ministério Público como instituições capazes de receber essa delegação (ARANTES, 2007, p. 107-108).
Portanto, a redemocratização do nosso país aliado à constitucionalização abrangente e a força normativa destas normas, foram causas decisivas para a expansão da atuação do judiciário, sendo que a partir da CRFB/88, uma maior clarividência na dotação de força normativa vinculante para todos os poderes do estado, não podendo mais o Poder Judiciário se eximir de controlar as políticas públicas.
Pelo contexto exposto, pode-se concluir que a judicialização é decorrente das competências conferidas ao judiciário, pelo próprio legislativo e executivo.
Nesse ponto, é valioso destacar:
Para que o judiciário estenda seu poder a domínios antes reservados a outras forças, é preciso que ele tenha sido instituído como tal e dotado de competências que lhe permitam solucionar conflitos políticos e sociais. A decisão que emprestou autoridade ao judiciário a fim de dirimir tais conflitos não foi, na origem, tomada pelo juiz, mas pelo político. Sem a vontade do político de delegar ao juiz a sua resolução, o ativismo judiciário se encontraria privado de fundamento institucional. Com efeito, constata-se, ao longo do século XX, como resultado de decisões políticas, uma regular expansão de poderes concedidos aos juízes (GRIMM, apud, VIANNA, BARGOS, SALLES, 2007, p. 41).
De qualquer forma, conforme exposto acima, não podemos confundir judicialização com ativismo judicial, sendo então necessário tratar da origem e desenvolvimento desta última.
Sem dúvidas, o berço do ativismo judicial foi os Estados Unidos da América.
Vale dizer que a elaboração da Carta Magna Brasileira sofreu influência americana, onde se principiou o ativismo judicial tido como referência de estudo por muitos doutrinadores. Vejamos:
Como a primeira Constituição republicana foi elaborada com confessada inspiração na Carta norte-americana, não foi necessária a abertura, pela via jurisprudencial, da possibilidade do controle judiciário de constitucionalidade das leis e, no seu vácuo, dos demais atos políticos. Aproveitando-se da experiência bem sucedida da judicial review, desde o caso Marbury vs. Madison, o constituinte republicano explicitou no texto a atribuição desta importante tarefa ao Judiciário [...] (SOUZA JÚNIOR, 2004, p. 91).
A atuação do poder judiciário nos Estados Unidos da América revela-se importante para a origem do ativismo judicial no Brasil:
Primeiro, porque foi no seio da tradição jurídica estadunidense que surgiram as discussões sobre ativismo judicial; segundo, porque na mudança do papel assumido pela jurisdição no constitucionalismo democrático no Brasil a doutrina brasileira passou a incorporar a expressão ativismo judicial, algumas vezes acompanhada (senão fundamentada) pelos aportes teóricos norte-americanos; terceiro [...], importa analisar quais as possibilidades de realizar esta transposição de teorias ao Direito brasileiro (TASSINARI, 2012, p. 52/53).
Neste contexto, o texto da CRFB/88 dá ênfase ao direito de acesso à justiça, concedendo-lhe uma dimensão jurídica mais ampla. As garantias constitucionais e os mecanismos assecuratórios do acesso aos mesmos também foram enfatizados (SOUZA JÚNIOR, 2004, p. 125), criando um cenário promissor para a já tratada judicialização da política, a ser seguida pelo ativismo judicial.
Sobre o assunto, oportuno descrever as seguintes palavras:
[...] a crise que já era marcada pela ineficiência e burocracia da função jurisdicional do Estado, pelo distanciamento do “tempo do Judiciário com o tempo da realidade social”, pela demora de procedimentos de decisões jurisdicionais, entrou em confronto com a aceleração da política social do Estado. Por meio da Carta Política de 1988, legitimou-se à intervenção, conotada como “ativismo judicial”, por meio do controle misto (difuso e concreto) de constitucionalidade de leis e atos de governo (HESS, 2012).
Avigorando o exposto, segue:
As modificações introduzidas à administração públicas, visando aos objetivos do Estado democrático de direito (art. 1, caput; art. 3, da Constituição Federal), passaram a ter peso fundamental para definir as políticas públicas de desenvolvimento e melhorias dos serviços judiciais. Por essa razão, não eximem do controle do judiciário as políticas públicas, cujas premissas e princípios, organizados numa Carta Política, são marcados por momentos históricos de transição democrática, com a evolução dos direitos humanos da 1ª (individuais subjetivos) à 4ª geração (direitos sociais, coletivos, difusos e dos povos) (PIOVESAN, apud HESS, 2012).
Por esta ênfase modernizante refletida na CRFB/88, tornou-se mais difícil justificar a atuação do judiciário apenas como leguleio, tímido para julgar de maneira diversa à recomendada pela hermenêutica tradicional, de forma a manter os olhos vendados para os fenômenos sociais. Essa cegueira do juiz brasileiro seria acentuadamente alienante de sua sociedade e de sua Constituição (SOUTO, 2012).
Portanto, no Brasil, a constitucionalização do direito e a judicialização das relações sociais, proporcionaram uma atitude mais ativa dos magistrados.
A sociedade brasileira é eminentemente complexa, é neste cenário que a atual Constituição se situa, e, conforme já conferido neste estudo, essa se configura como analítica e repleta de princípios e normas programáticas, com termos considerados pela doutrina, abrangentes. É neste cenário que o ativismo judicial se apresenta.
O ativismo consiste na atuação jurisdicional acentuada de tal forma que a decisão dos juízes possui um critério de desejo, de aplicar sua vontade na matéria que está julgando.
o ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do Juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar”. Dessa forma, podemos notar que o ativismo se evidencia de duas maneiras ou sob a forma de um “novo clericalismo dos juristas, se a corporação dos juízes for poderosa, ou, pelo contrário, sob a forma de algumas individualidades sustentadas pelos media, se a magistratura não tiver grande tradição de independência (GARAPON, 1998, p. 54).
Ao comentar a postura dos juízes diante do notável caráter social atribuído pela CRFB/88, é exposto:
O cumprimento desse mandato constitucional de proteger o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, a que têm direito todas as pessoas, há de ser para os juízes e tribunais norte de sua atividade jurisdicional. Por isso, o Tribunal Constitucional fala da necessária colaboração dos órgãos judiciais com as partes na materialização da tutela e também no dever específico de garantir a tutela, dever que impede os órgãos jurisdicionais de adotarem uma atividade passiva nesta matéria (OLIVEIRA, 2006, p. 64).
Cientes do apanhado de fatores que influenciaram o desenvolvimento do ativismo judicial no ordenamento jurídico brasileiro, vale destacar que a constitucionalização de diversos assuntos em 1988, conferiu ao Supremo Tribunal Federal o sistema de controle de constitucionalidade, oportunidade que assiduamente observam-se julgamentos ativos dos ministros.
Atualmente, portanto, influenciado pelos fatores exibidos, o ativismo judicial é uma realidade já presente, embora que às vezes timidamente, no cotidiano da sociedade brasileira. Realidade tendente a crescer significativamente diante dos modernos conceitos e entendimentos sobre o tema.
Observa-se, inclusive, a consciência da necessidade de uma postura mais ativa do julgador pelo próprio Instituto Brasileiro de Direito Processual, que idealizou o anteprojeto de Código Brasileiro de Processo Civil Coletivo, destacando expressamente logo nos primeiros artigos, que dentre os princípios da tutela jurisdicional coletiva inclui-se o “ativismo judicial”, o que aborta a ideia de que o juiz age unicamente de forma neutra e imparcial, evitando proceder de ofício (PAULA, 2012, 149).
Na sequência do breve estudo da história do ativismo judicial, bem como do raciocínio proposto, remata-se com a oportuna, sábia e competente doutrina:
Neste escólio, Ativismo Judicial não deve erroneamente ser concebido como criação desenfreada do direito pelos juízes. O juiz não cria o direito do nada e se assim agisse estaríamos diante de um usurpador autoritário do poder. Porém, o direito não resume ao positivado no ordenamento jurídico, de sorte que as decisões judiciais ditas ‘contra lege’ devem ser analisadas pela existência de lastro no sistema jurídico, mais amplo que o costumeiro e restrito legalismo saboreado incansavelmente por formalistas forenses (PAULA, 2012, p. 148-149).
Conforme já tratado, o excesso de ações judiciais de cunho político levou a uma atuação mais expansiva dos juízes, e a partir do momento que estes não podem negar uma decisão, caso o Poder Legislativo não tenha atuado para regulamentar a matéria, cumpre aos juízes decidirem, tornando-se legisladores.
Além disso, no Brasil, a maior atividade do Poder Judiciário ocorre porque o Poder Executivo está cada vez mais desacreditado pela população, assim como pelo fato do Poder Legislativo se omitir de legislar sobre questões de grande repercussão e debates pela sociedade, o que leva as pessoas a enxergarem o Poder Judiciário como o único capaz de solucionar os problemas.
5. A PRÁTICA DO ATIVISMO JUDICIAL NO BRASIL E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Por óbvio, a tendência do ativismo judicial repercute.
No Brasil, o Poder judiciário decidiu ativamente diversas questões de grande relevância, no qual se pode exemplificar pelo reconhecimento da união homoafetiva, interpretação da CRFB/88 para abranger casos homofóbicos ou transfóbicos como racismo social, descriminalização do abordo em alguns casos, além de outros assuntos sensíveis à sociedade.
Contudo, o crescente protagonismo no cenário da política nacional, por meio de decisões com repercussão geral, na prática, pode apresentar faces positivas e negativas.
Num viés mais conservador, seguindo a linha da teoria procedimentalista, destacando os riscos do ativismo judicial, podemos citar:
“Certamente, o surgimento de um dinâmico terceiro gigante, como guardião e controlador dos poderes políticos do novo estado leviatã, constitui por si mesmo um acontecimento não imune aos riscos de perversão e abuso. Existe, antes, certa semelhança entre esses riscos e os decorrentes de outras manifestações do gigantismo estatal, de natureza legislativa ou administrativa: riscos de autoritarismo, lentidão e gravosidade, de inacessibilidade, de irresponsabilidade, de inquisitoriedade policialesca.” (CAPPELLETTI, 1993, 49).
Entre os riscos apontados como consequência do expansionismo da atuação ativa do Poder Judiciário, fica o alerta para os pontos negativos do instituto.
A questão é que em alguns casos a intervenção do Poder Judiciário pode, de fato, trazer a sensação de arbitrariedade e atuação para além das suas competências, o que causa comoção social pela percepção de que os juízes estão atuando de forma comprometida, sob a influência de aspectos ideológicos e subjetivos, sem seguir a letra da lei.
Como argumento contrário ao ativismo judicial verifica-se a perda de legitimidade do Poder Legislativo, num contexto em que o Poder Judiciário aplica ao caso concreto que lhe é apresentado, uma decisão baseada em inúmeros princípios de interpretação e aplicação constitucional que se sobrepõem às próprias leis existentes.
Portanto, a crítica ao ativismo judicial se dá também porque se baseia na banalização dos princípios constitucionais. Vejamos:
E a outra face da moeda é o lado do decisionismo e do “oba-oba”. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de através deles, buscarem a justiça – ou que entendem por justiça -, passaram a negligenciar no seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta “euforia” com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. (SARMENTO, 2007, p. 144).
Outra crítica recorrente que revela um ponto negativo do ativismo judicial, é que o mesmo se apresenta como fator prejudicial à harmonia entre os poderes na medida em que o Judiciário interfere na gestão pública e no poder constituinte.
Neste sentido:
O principal argumento contrário ao ativismo consiste no fato de que somente o Legislativo e o Executivo são eleitos pelo povo. Assim, apenas os membros do Legislativo estariam autorizados pelos cidadãos a elaborarem leis que atendam seus apelos e reclamos. Por sua vez, como o Poder Judiciário não passa pelo sufrágio, estaria descredenciado, numa visão juspositivista, para criar o direito, via decisões judiciais, tendo em vista que tal conduta desafia o sistema de freios e contrapesos inspirado por Montesquieu, que equilibra a gravitação entre os três Poderes. (VITÓRIO, 2011, p. 224)
Por todo o exposto neste tópico, conclui-se que a prevalência de entendimentos subjetivos em detrimento aos preceitos legais, bem como, a usurpação da competência legislativa ordinária e violação da separação de poderes, fere o Estado Democrático de Direito e causa instabilidade e insegurança jurídica.
Neste caso, a intervenção indevida do Poder Judiciário na esfera de atuação dos demais poderes, muito além da sensação, implica efetivamente na falta de segurança jurídica, princípio que não pode ser mitigado, sob pena de perda da estabilidade nas relações e do bom funcionamento das instituições.
Neste contexto, a aparente discricionariedade atribuída ao Poder Judiciário, que revela a ausência de limites ou restrições, o concederia superpoderes, havendo, de fato, a arbitrariedade mencionada acima.
A sensação de insegurança jurídica e instabilidade no sistema causada pelo ativismo judicial, também é sentida pelos operadores do direito, que tem suas atividades afetadas, uma vez que a conduta ativa do juiz diante da inexistência de lei anterior, exige dos profissionais teses complexas e coerentes para convencimento do julgador.
O exposto revela um novo argumento negativo, uma vez que se torna crescente a dificuldade das pessoas terem informação adequada dos seus direitos e deveres que passam ir além do previsto na legislação, exigindo conhecimento técnico para sua plena compreensão, o que, por diversos fatores, não é acessível a toda a população.
Ainda, a politização dos tribunais levaram o ambiente de imparcialidade e razoabilidade para um local de embates políticos, o que, não raro, causa repercussão com reações populares negativas e descontentamento dos Poderes Executivo e Legislativo.
Referido efeito é denominado backlash:
“O termo backlash pode ser traduzido como reação, resposta contrária, repercussão. Dentro da teoria constitucional, vem sendo concebido como a reação contrária e contundente a decisões judiciais que buscam outorgar sentido às normas constitucionais. Seriam, então, reações que acontecem desde a sociedade e questionam a interpretação da Constituição realizada no âmbito do Poder Judiciário. No Brasil, penso ser o caso, especialmente, das reações populares às decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas em sede de controle concentrado/abstrato de constitucionalidade. O engajamento popular na discussão de questões constitucionais não apenas é legítimo dentro dessa perspectiva, mas pode contribuir, também, para o próprio fortalecimento do princípio democrático.” (KOZICKI, 2015, p. 194).
Pelo texto transcrito, todavia, percebe-se que o ativismo judicial está longe de apresentar consequências exclusivamente negativas, uma vez que o próprio backlash, apesar de ser reflexo de reações contrárias que causam efeitos indesejáveis, pode fortalecer a democracia, o que certamente é positivo.
Na contramão dos aspectos negativos descritos acima, muitos doutrinadores defendem o ativismo judicial, afinal, aplicar a lei estritamente por sua palavra e sem abertura a interpretações já se revelou ineficaz.
Sabe-se que a interpretação da linguagem reflete diferentes perspectivas sobre o que é positivado, significa compreender a diferente aplicabilidade conforme as particularidades dos casos concretos.
Neste ponto, e como um aspecto positivo a ser destacado, a conduta ativa do Poder Judiciário constitui forma de concretização dos direitos fundamentais, uma vez que, como atividade decorrente da judicialização das relações sociais representa garantia destes direitos e proteção contra omissões ou excessos oriundos dos Poderes Legislativo e Executivo.
Em homenagem à dignidade da pessoa humana, há que se preservar uma eficácia mínima de direitos fundamentais, nem que para isso sejam necessárias intervenções do Poder Judiciário.
Neste escopo, em detrimento ao entendimento trazido como pejorativo, seguindo uma linha de raciocínio mais substancialista, temos o Poder Judiciário como garantidor da sobrevivência do estado democrático de direito, uma vez que o controle judicial sobre os atos ou omissões dos Poderes Executivo e Legislativo representa uma forma adequada para efetivar a democracia:
Nesse sentido, ensinam:
Dessa forma, a judicialização da política faz parte do próprio processo democrático, pois que constitui mecanismo de concretização de direitos fundamentais pelo Poder Judiciário, quando forem eles sonegados, quer seja pelo Poder Executivo, quer seja pelo Poder Legislativo. (MEDEIROS; NELSON, 2012, p. 212).
Além da permissão ao Poder Judiciário de corrigir defeitos e omissões dos demais poderes, a legitimidade para atuar de forma ativa e invalidar os atos, decisões e normas oriundas do Poder Executivo e Legislativo, também representa um caráter de proteção à democracia.
Neste sentido, o ativismo judicial teria um caráter muito mais protetivo à democracia do que qualquer afronta a mesma.
Neste sentido, temos que a jurisdição constitucional quando exercida de forma impecável torna-se uma garantia para a democracia. Todavia, para tanto, destaca-se a importância da CRFB/88 e do Poder Judiciário como seu interprete maior que não pode suprimir os demais poderes, nem impor suas próprias escolhas e preferências, devendo atuar legitimamente quando capazes de fundamentar racionalmente suas decisões (BARROSO, 2007, p.12).
Nesta linha raciocínio cumpre destacar que a atividade judicial de invalidar atos, decisões e normas oriundas do Poder Executivo e Legislativo não enseja afronta à divisão de poderes, pois tal conduta, conforme já tratado neste estudo, está permitida pela própria CRFB/88.
Por fim, importante ressaltar que há uma linha tênue entre a atuação jurisdicional nos limites da lei, ou além do que lhe é permitido pela CRFB/88, motivo pelo qual, os limites e possibilidades devem estar bem evidenciados para o bom exercício do ativismo judicial.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo da prática e das consequências do ativismo judicial no Brasil, são de suma importância na área do direito constitucional, por abranger um campo complexo, atual e carente de aprofundamento nos estudos para formação de uma nova mentalidade jurídica que conceba com precisão meios de alcançar a eficácia da prestação jurisdicional.
Enquanto a judicialização diz respeito a possibilidade de atividade do judiciário na interpretação normativa, onde o juiz atua além das atribuições de aplicação da lei, o ativismo judicial diz respeito a conduta ativa do juiz em criar normas, mediante novos entendimentos, ampliando as formas legais, podendo estar contido naquela.
O ativismo judicial surge como um marco jurídico que indica um aperfeiçoamento dos sistemas político e jurídico, e consiste num desafio hermenêutico diante da motivação constante para a aplicação estanque da norma nos moldes da teoria procedimentalista.
Da crescente preocupação da coletividade na defesa de seus interesses, observou-se a necessidade de se desenvolver mecanismos e alterar as velhas práticas de neutralidade do juiz, que passou a assumir uma conduta ativa em busca da efetividade dos direitos.
A CRFB/88 é eminentemente social, e ao atribuir dever de harmonia às funções do Estado, acaba por expandir a atuação do Judiciário que, ao aplicar a lei ao caso concreto que lhe é imposto, depara-se com um vasto rol de princípios, direitos fundamentais, cláusulas com conceitos indeterminados que demandam interpretação.
Significa dizer que está ultrapassada a ideia de separação absoluta dos poderes, pois, apesar de apresentarem funções que lhes são precípuas, o Poder Judiciário pode intervir na execução das funções do outro quando pertinente a alcançar a eficácia esperada, visto que os poderes devem se equilibrar, suprindo lacunas eventualmente existentes.
Assim resta justificada a conduta ativa do juiz, pois o Poder Judiciário não pode se escusar da aplicação dos direitos fundamentais constitucionalizados e o consequente atendimento das políticas públicas, trazendo à baila um poder/dever de atuar na perseguição dos objetivos e fundamentos da República Federativa do Brasil.
A prática do ativismo judicial no Brasil repercute de forma que é perfeitamente possível visualizar faces positivas e negativas oriundas da atuação pró-ativa do Poder Judiciário.
O agigantamento do Poder Judiciário pela atuação ativa é acompanhando de críticas ao risco de autoritarismo e imparcialidade, o que reflete como fator negativo ao instituto, pois estaria causando instabilidade e insegurança jurídica, já que o Poder Legislativo perderia a sua legitimidade, enquanto os princípios constitucionais acabariam banalizados.
Longe de apresentar consequências exclusivamente negativas, muitos doutrinadores defendem o ativismo judicial, afinal, aplicar a lei estritamente por sua palavra e sem abertura a interpretações já se revelou ineficaz.
É perfeitamente possível visualizar inúmeros benefícios na atuação pró-ativa do Poder Judiciário como um atendimento mais efetivo às demandas sociais, concretização dos direitos fundamentais e proteção contra omissões ou excessos oriundos dos Poderes Legislativo e Executivo, além de representar um caráter de proteção à democracia.
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Graduada em direito pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci - Uniasselvi; Pós-graduada latu sensu em Direito Público pela Universidade Anhanguera Uniderp; Pós-graduada latu sensu em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera Uniderp; Advogada militante no estado de Santa Catarina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: EHRHARDT, Glaucia Hellmann. A origem, desenvolvimento e evolução da prática do ativismo judicial no exercício da judicialização da política: implicações negativas e positivas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 out 2021, 04:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57274/a-origem-desenvolvimento-e-evoluo-da-prtica-do-ativismo-judicial-no-exerccio-da-judicializao-da-poltica-implicaes-negativas-e-positivas. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
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