RESUMO: Este trabalho tematiza sobre o ativismo judicial e seus efeitos no ordenamento jurídico brasileiro. Por meio de uma pesquisa bibliográfica, pretende-se discutir os efeitos que a mutação constitucional, em conjunto com uma postura ativista do Judiciário, pode exercer sobre a interpretação e a aplicabilidade de normas presentes na Constituição Federal de 1988. Embora esteja superada a ideia de um positivismo que separa o Direito do mundo fático, é possível atestar, diante discussões apresentadas neste estudo, que a visão cautelosa sobre a abrangência e eventuais perigos do uso de mutações constitucionais, sobretudo em tempos de ativismo, é bem motivada. Se por um lado houve progressos evidentes, há casos controversos que merecem críticas e acompanhamento minucioso, a fim de que sejam respeitados os critérios devidos. Em um contexto de polaridade ideológica, em que a disputa de narrativas dita o tom de políticas públicas, discursos midiáticos e defesa de direitos, conclui-se que a prática ativista do Poder Judiciário ameaça a consolidação e o amadurecimento da democracia no país.
Palavras-Chave: Ativismo judicial. Mutação constitucional. Judiciário.
ABSTRACT: This study focuses on judicial activism and its effects on the Brazilian legal system. Through a bibliographic search, it is intended to analyze the effects that the constitutional mutation, together with an activist stance of the Judiciary, can have on the interpretation and applicability of norms present in the Federal Constitution of 1988. Despite the idea of a positivism that separates law from the factual world, it is possible to attest, in view of the discussions presented in this study, that the cautious view on the scope and possible dangers of the use of constitutional mutations has grounds, especially in times of activism. If, on the one hand, there has been some progress, there are controversial cases that deserve criticism and thorough monitoring in order to ensure that due criteria are respected. In a context of ideological polarity, in which the dispute over narratives sets the tone for public policies, media discourses and defense of rights, it is reckoned that the activist practice of the Judiciary threatens our democratic institutions.
Key words: Judicial activism; constitutional mutation; judiciary.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2 Reforma informal da constituição; 2.1 Mutação constitucional; 2.2 Limites do poder constituinte difuso; 2.3 Perspectivas do Supremo Tribunal Federal. 3. Ativismo judicial e mutação constitucional; 3.1 Mutação e ativismo; 3.2 Análise da reclamação nº 4.335/AC. 4 Considerações finais. 5 Referências
INTRODUÇÃO
O presente estudo tematiza sobre os efeitos da mutação constitucional desencadeada pelo ativismo judicial no ordenamento jurídico brasileiro. Propõe- se, então, com este artigo, responder à seguinte questão: Qual a repercussão da mutação constitucional para a segurança jurídica? Mutações constitucionais equilibradas podem ampliar a efetividade de direitos, desde que haja legitimidade, isto é, respeito às instituições democráticas e ao Constituinte originário. Por outro lado, quando as narrativas ideológicas e a realidade subjetiva são valorizadas em detrimento dos limites principiológicos e semióticos na interpretação constitucional, tem-se uma mutação perigosa e capaz de provocar insegurança e instabilidade jurídica.
A enunciada relação dos fenômenos jurídicos se evidencia na medida em que uma postura mais ativa e intensa do Judiciário na interpretação da Constituição favorece eventuais inovações semânticas em suas normas. Embora tais conceitos possam por vezes servir para um Direito mais dinâmico e menos arcaico, há ressalvas sobre suas repercussões no meio jurídico. Doutrinariamente, diz-se que a mutação constitucional exaustiva pode representar a degradação do texto da legislação e desrespeito aos seus preceitos – especialmente em lugares em que há mais apreço ao positivismo -, ao passo que o ativismo é visto por muitos como uma atitude intervencionista e antidemocrática do Judiciário, que causa excesso em suas atribuições e deprecia a função dos outros Poderes, mormente o Legislativo.
O objetivo principal deste trabalho é discutir os efeitos que a mutação constitucional, em conjunto com uma postura ativista do Judiciário, pode exercer sobre a interpretação e a aplicabilidade de normas presentes na Constituição Federal de 1988. Pretende-se também examinar as diferentes concepções a respeito da mutação constitucional apresentadas por ministros do Supremo Tribunal Federal, a fim de se averiguar possível dissonância entre os ministros da Corte.
Ademais, busca-se, aqui, especificamente, uma análise mais minuciosa sobre a Reclamação nº 4335/AC, cujo julgamento é essencial para a compreensão a respeito da forma com que a tese da mutação constitucional é aplicada pelo Pretorio Excelso. O argumento de suposta mutação constitucional no artigo 25, inciso X, da Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988) traz à discussão um receio sobre os limites do fenômeno jurídico em estudo e potenciais riscos de seu uso desenfreado em um momento de ativismo judicial constante.
Para tanto, será realizada uma pesquisa bibliográfica, na qual se fundamentará em livros, artigos, revistas, publicações e documentos oficiais, concernentes ao tema tratado.
2 REFORMA INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO
2.1.MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
A Constituição é compreendida como o fundamento de ordenamento jurídico de um Estado, sendo indispensável que sua estabilidade seja respeitada, visto que modificações sem real necessidade ou sistematização podem provocar insegurança político-jurídica.
O conceito de Constituição é elaborado a partir de dois aspectos: o formal e o material. Por sentido material, define-se o conjunto de normas referentes à organização do poder, à distribuição da competência, ao exercício de autoridade, à forma de governo e aos direitos individuais e sociais da pessoa humana (BONAVIDES, 2012). Já o sentido formal descreve a Constituição como o documento escrito e solene que positiva as normas jurídicas hierarquicamente superiores do Estado, elaboradas por um processo constituinte específico, seja originário ou de reforma (BRANCO, 2012).
Historicamente, o Direito Constitucional sofreu mudanças significativas após a Segunda Guerra Mundial. A partir da superação dos regimes nazistas, notou-se que era necessário elaborar normas de direitos e garantias fundamentais para a defesa do cidadão ante a possíveis abusos do Estado (DWORKIN, 2002) ou em decorrência de quaisquer mecanismos de jurisdição constitucional (ANDRADE, 2003). Neste sentido, ampliou-se a relevância política do Poder Judiciário, que passou a tratar mais frequentemente de temas polêmicos e relevantes para a sociedade.
A forma estrutural de uma Constituição e as correntes de constitucionalismo presentes em determinado país possuem relação direta com o eventual favorecimento à ocorrência de mudanças. Há, assim, uma busca por uma sintonia entre as normas constitucionais originárias e a atualização da realidade fática. Para Alves,
Se a constituição é o retrato da manifestação do poder constituinte originário de um determinado tempo, é natural que a constante necessidade de evolução ocasione uma tensão entre este pré-compromisso original e as novas aspirações sociais. O sucesso de uma constituição é, em grande parte, o sucesso do seu modelo de abertura em relação às mudanças. O governo estável e brando que se aspira com o constitucionalismo não subsiste onde não pode haver mudança ou onde ela seja fácil ou rápida demais. (ALVES, 2016, p. 196).
Dessa forma, deve-se observar os caminhos para a realização das alterações pretendidas. No que se refere aos mecanismos de reforma constitucional, há em suma duas vias de realizá-la, quais sejam, a formal e a informal. Aquela, conforme exposto no tópico anterior, ocorre através de Emendas Constitucionais. Em contrapartida, o caminho informal é feito via mutação constitucional.
De acordo com Bulos (1996), a mutação constitucional equivale à mudança de normas sem revisões ou emendas, sendo atribuídos novos sentidos às palavras do constituinte através da interpretação, da construção, ou ainda dos usos e costumes constitucionais. Ao tratar da origem histórica do termo, Flávio Martins (2020, p. 471) afirma que esta “[...] foi cunhada, em 1895, por Paul Laband, em sua obra Mutações na Constituição do Reich Alemão, ao analisar as mudanças empreendidas na Constituição do Reich alemão de 1871.”. O primeiro a se referir ao fenômeno como forma de poder difuso foi Georges Burdeau, devido à possibilidade de ser feito por qualquer intérprete da Constituição (MARTINS, 2020, p. 471).
José Afonso da Silva (2013, apud MARTINS, 2020) complementa a conceituação:
Mutações constitucionais são mudanças não formais que se operam no correr da história de uma Constituição, sem alterar o enunciado formal, sem mudar a letra do texto. Segundo a doutrina tradicional, isso se dá por força da modificação das tradições, da adequação político-social, dos costumes, de alteração empírica e sociológica, pela interpretação e pelo ordenamento de estatutos que afetam a estrutura orgânica do Estado” (MARTINS, 2020, p. 471)
Na trilha da citada menção à estrutura estatal, giza ressaltar que a estabilidade e a eficácia da Constituição são elementos indispensáveis ao equilíbrio e à consolidação do Estado Democrático de Direito. No esteio do texto constitucional “[...] encontramos a autoconsciência de um povo, assentado em uma base territorial definida, e submetido a um governo soberano, numa determinada época histórica, sujeita a fatores sociais cambiantes” (BULOS, 1996, p. 42).
Contudo, em que pese a vocação de permanência das normas constitucionais, sua firmeza não significa que a aplicação deva ser estanque e imutável – já que a Constituição é um organismo vivo, ligado às demandas modernas da sociedade. A esse respeito, Bulos (1996, p.35) assevera:
Assim, a vida constitucional dos Estados desenvolve-se perante dois elementos, aparentemente contraditórios: o estático e o dinâmico. O elemento estático consigna uma exigência indispensável à segurança jurídica, evitando, ao menos em tese, a instabilidade institucional, procurando salvaguardar os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana; o elemento dinâmico propicia a adaptação das Constituições às exigências do progresso, da evolução e do bem-estar social.
Diante do referido dinamismo necessário à legislação magna, há os, já referidos, métodos formal e informal de reforma. No Brasil – onde há rigidez constitucional -, o instrumento formal consiste na propositura de emendas, que é permitida apenas a um seleto grupo de membros dos poderes Legislativo e Executivo.
Já a mutação constitucional pode ser dividida em três hipóteses: a) mudança de interpretação da Constituição (a mais comum); b) praxe constitucional; c) construção constitucional. (MARTINS, 2020, p. 472).
Hipótese mais frequente, a mudança da interpretação da Constituição pode ser feita por qualquer intérprete da Constituição, mas principalmente pelo Judiciário (e, claro, pelo guardião da Constituição Federal, o STF). Embora o texto constitucional permaneça o mesmo, a interpretação do texto é alterada. [...] Por sua vez, a praxe constitucional é uma reiteração de atos políticos que acabam por alterar o sentido da Constituição, sem alteração do seu texto. [...] Por fim, construção constitucional é a criação doutrinária ou jurisprudencial que altera, de forma inovadora, o significado da Constituição. Dá-se como exemplo a “teoria brasileira do habeas corpus”, na Constituição de 1891. (MARTINS, 2020, p. 476)
Historicamente, a mudança constitucional ocorre mediante diversas formas que repercutem, de modo mais ou menos intenso, na validade e no valor da Constituição. A mutação constitucional, objeto de foco do presente estudo, é originário da teoria constitucional alemã e foi relevante em célebres casos da jurisprudência norte-americana no século XX – Brown v. Board of education, por exemplo. Além disso, no Direito brasileiro também há exemplos históricos de mutação constitucional e, ainda, indícios sólidos de que a análise de seus efeitos é pertinente no cenário atual.
Barroso (2010) salienta que, além das modalidades já consagradas de poder constituinte - poder constituinte originário e poder de reforma constitucional – constata-se a existência de uma terceira forma: a interpretação das normas.
Tal modalidade é exercida através de mecanismos informais, que não são descritos na Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988). Burdeau (1969 apud Barroso, 2010, p.128), sobre essa terceira forma, afirma que
(...) o poder constituinte é um poder que faz ou transforma as Constituições, deve-se admitir que sua atuação não se limita Às modalidades juridicamente disciplinadas de seu exercício. (...) Há um exercício quotidiano do poder constituinte que, embora não esteja previsto pelos mecanismos constitucionais ou pelos sismógrafos das revoluções, nem por isso é menos real. (...) Parece-me, de todo modo, que a ciência política deva mencionar a existência desse poder constituinte difuso, que não é consagrado em nenhum procedimento, mas sem o qual, no entanto, a Constituição oficial e visível não teria outro sabor que o dos registros de arquivo.
Essa terceira forma de poder constitucional acaba sendo exercida pelos órgãos do poder constituído, que buscam refletir os interesses sociais e demandas coletivas. Em uma sociedade plural e democrática, entende-se que a Mutação Constitucional desempenha um papel significativo na efetivação constitucional, uma vez que esse fenômeno permite o equilíbrio da significância normativa com a segurança jurídica (PEDRA, 2018).
A mutação constitucional, portanto, consiste em um fenômeno no qual o texto sofre transformações em seu sentido, sem mudanças da norma e advém da necessidade de adaptar a mudança no olhar do direito e na realidade efetiva, intrínsecas ao texto constitucional, de modo que a norma assume um significado distinto daquele anterior.
Não obstante o suposto espírito “modernizador” presente na caracterização do movimento jurídico enunciado neste tópico, vale trazer à baila o posicionamento crítico de parte da doutrina a respeito da mutação e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. Na visão de Streck, Lima e Oliveira (2013) “a mutação constitucional apresenta um grave problema hermenêutico, no mínimo, assim como também de legitimidade da jurisdição constitucional.” (p. 59). Ademais, estaria presente, também, um eventual caráter antidemocrático, uma vez que “[...] um tribunal não pode mudar a constituição; um tribunal não pode “inventar” o direito: este não é seu legítimo papel como poder jurisdicional, numa democracia.” (p. 61).
[...] não haveria sob a base da tese da mutação constitucional um problema hermenêutico grave? Ora, a suposta correção jurisprudencial desse hiato entre realidade e normatividade não está na verdade encobrindo uma concepção limitada de compreender o próprio Direito contemporâneo, que deveria estar afinado a um paradigma do Estado Democrático de Direito? Ou, dizendo de outro modo: não se está tentando lançar mão de um instrumental teórico típico da crise do positivismo para solucionar o que parece ser um problema do tempo atual? (STRECK; LIMA; OLIVEIRA, 2013).
Na esteira desse entendimento que preconiza o zelo à firme tripartição dos Poderes, Pedron e Silva (2020, p. 169) chegam a usar a expressão “estado de exceção permanente”, decorrente da ideia de mutação constitucional contribui para a erosão do Direito democraticamente posto, pois representa “tudo contrário ao ideal de uma democracia constitucional fundada por nós em que deve ser o povo que se autogoverna e não os tribunais.” (2020, p. 169). Para os autores, a mutação constitucional é
[..] incapaz de assumir uma compreensão hermeneuticamente adequada do direito contemporâneo, pois ainda reduz norma a texto e não consegue compreender o papel dos princípios jurídicos como normas, já que ainda compreende o direito a um mero conjunto de regras. O recurso à mutação encobre um paradoxo: sob o argumento de que os fatos e as forças sociais pressionam o direito para uma mudança, a Constituição, para conservar sua normatividade e sua legitimidade, tem que se redirecionar, modificando-se para preservar sua primazia no sistema do direito; mas, com isso, concretiza exatamente o inverso, ou seja, a diluição da tensão norma e realidade pela confirmação da superioridade desta última. (PEDRON e SILVA, p. 216).
Ante o exposto, percebe-se que o estudo da mutação tem como fator imprescindível a compreensão de quais são os limites que devem ser respeitados ao se levantar a tese desse tipo de interpretação. Alves (2016, p. 196) alerta que “a proclamação ostensiva de uma alteração informal no sentido da constituição depende, antes de tudo, do reconhecimento de que as premissas fáticas subjacentes ao significado original da norma não mais se verificam no momento [...]”. Assim, o equilíbrio entre a flexibilização demasiada do intérprete e a postura arcaica frente às normas constitucionais é uma das premissas que contribuem para o conhecimento a respeito do fenômeno em análise nesta pesquisa.
2.2 LIMITES DO PODER CONSTITUINTE DIFUSO
Juridicamente, o poder constituinte emana da compreensão de que a comunidade política é resultante de um acordo natural de interesses e vontades entre os entes que serão regidos pela ordem jurídica estabelecida com o contrato. Assim sendo, o poder constituinte estaria relacionado “ao povo, ao conjunto de indivíduos e uma deliberação idealizada a respeito das regras de convivência social” (SOUZA; GOMES, 2005, p.35).
O Poder Constituinte Difuso é caracterizado pelo poder adjudicado aos agentes políticos de amoldamento da Constituição Federal de um modo inespecífico, isto é, a adequação do texto constitucional, sem mudanças na letra, às evoluções que acontecem na sociedade (MATTAR; MINAGÉ, 2020). Por vezes tratado como sinônimo de mutação constitucional, “trata-se de um poder de fato, e não de direito (ou seja, não é um poder regulamentado pelo direito, existindo antes da edição da própria Constituição).” (MARTINS, 2020, p. 471).
Esse Poder que se expressa em uma forma de mutação constitucional tem limites e o avanço dessas fronteiras configura em uma violação do poder constituinte e da soberania popular. Diante disso, as normas jurídicas se desprendem da natureza subjetiva que as cunhou e assumem uma existência objetiva que possibilita sua influência mútua e atualização ante as novas realidades e demandas.
Ocorre que este movimento normativo não pode modificar a essência da Constituição Federal. Por isso, faz-se necessário analisar dois importantes limites: as possibilidades semânticas do relato da norma, ou seja, os significados presumíveis do texto constitucional a ser interpretado e a preservação dos princípios fundamentais que norteiam a Constituição Federal (MATTAR; MINAGÉ, 2020).
Cruz (2004, p.345) delimita o controle difuso afirmando que
O controle difuso aproxima a Jurisdição Constitucional e a sociedade. Disperso por todos os ramos do Judiciário, especialmente nas comarcas da Justiça Estadual Ordinária, o controle difuso tem o condão de incrementar o exercício da cidadania, robustecendo a noção de democracia, especialmente em países como o Brasil, com uma história constitucional tão atribulada. Assim, não são somente os tribunais, normalmente distantes, situados nas capitais dos Estados ou da República, que têm atribuição exclusiva para apreciação da constitucionalidade de leis e debates sobre a aplicação de leis e de atos normativos (CRUZ, 2004, p. 345).
A mutação constitucional não se dá somente por intermédio de canais convencionais e em razão de um direito constitucional estático, acomodatício, pelo contrário, ela também pode ser produzida de diversas formas, como por exemplo, por intermédio da interpretação, dos usos e costumes, da construção judicial, entre outras formas de ocorrência do fenômeno. Na perspectiva de Bulos (2014), os limites postos seriam respeitosos à subjetividade do intérprete e sua disposição em não dispor dos princípios que regem o Estado.
Para Denise Soares Vargas (apud MARTINS, 2020, p. 478) as limitações à mutação constitucional devem: “se circunscrever aos sentidos possíveis do texto; decorrer de genuína mudança na sociedade e não avançar no campo próprio da reforma constitucional”.
Luís Roberto Barroso, por sua vez, adota a classificação de Burdeau e “aponta como limites à mutação, e, por sua vez, ao poder difuso: a) as possibilidades semânticas do relato da norma; b) a preservação dos princípios fundamentais que dão identidade àquela Constituição” (MARTINS, 2020, p. 278).
Diante das diferentes visões enunciadas, constata-se que, esteja ou não presente a visão de a mutação constitucional possui limites claros, deve-se observância àquilo imposto pela Constituição Federal de 1988. Segundo Pedron e Silva (2020), a interpretação deve ser guiada pela proteção ao núcleo essencial dos princípios e em respeito à ideia de checks and balances, que é essencial para o funcionamento de instituições democráticas.
2.3 PERSPECTIVAS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
No âmbito de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), a alusão à mutação constitucional é fator relativamente recente, sobretudo se comparado ao histórico do tema em discussões internacionais. A primeira menção a tal fenômeno ocorreu em 2001, através de decisão monocrática do ministro Celso de Mello na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.484, do Distrito Federal (BRASIL, 2001).
Segundo Lourenço Junior (2018, p. 66),
[...] até maio de 2018, houve mais de 73 referências às mudanças informais, sendo 29 em acórdãos e 44 em decisões monocráticas. Passou-se a fazer referências ao fenômeno em ações formalmente distintas, com os mais variados objetos. O ministro Gilmar Mendes [...] aponta a existência de mutações constitucionais em normas que tratam da perda do mandato eletivo, do controle difuso de constitucionalidade, da união estável, do benefício assistencial, dentre outras, e ressalta o papel da jurisprudência do STF como fonte originária das alterações informais. “Tais mudanças foram empreendidas em decorrência de decisões colegiadas prolatadas em ações diretas de inconstitucionalidade, em ações de descumprimento de preceito fundamental, em recursos extraordinários, em mandados de segurança, dentre outros”.
Ao se fazer um exame mais detalhado das citadas referências a esse tipo de mecanismo de mudança informal, pode-se perceber certa inconstância na conceituação realizada pelos eminentes ministros. A Corte, “[...] por vezes, põe este rótulo em situações de simples mudança jurisprudencial, noutras o emprega genericamente para tratar de alterações informais no sentido da Constituição.” (ALVES, 2016, p. 195).
Tal inconsistência é demonstrada pelas variadas interpretações citadas nos votos dos ministros, que, em diversas ocasiões, partem de premissas diferentes ao tratarem dos elementos da mutação constitucional – como, por exemplo, no julgamento da Reclamação nº 4335/AC. Nesse sentido, ao citar os votos de Gilmar Mendes e Eros Grau no referido Pleno, Pedron e Silva (2020, p. 914) fazem a seguinte crítica:
É interessante observar que as leituras desenvolvidas pelos ministros Mendes e Grau acerca da mutação constitucional são ainda colidentes entre si. Para o primeiro, a mutação é instrumental hermenêutico-constitucional, através do qual o Tribunal pode modificar a norma, mas com a preservação do texto original; para o segundo, a mutação constitucional exige a alteração tanto da norma como do texto normativo. Em ambos os casos, o que fica claro é a redução da estrutura normativa do direito a um mero conjunto de regras jurídicas, olvidando-se, de modo absoluto, uma compreensão do Direito a partir de uma dimensão principiológica; e mais, uma dimensão principiológica organizada a partir de uma exigência de integridade
De acordo com o ministro Gilmar Mendes, as mutações são “mudanças da concepção jurídica” que levam à alteração da jurisprudência da corte e se impõem por meio da interpretação aberta da Constituição.” (Ex 522.897/RN, p. 19). Ademais, para Mendes “a mutação é criação que ‘atualiza’ para os novos padrões a realidade, supostamente diminuindo o déficit entre norma e realidade” (voto na Rcl. n. 4.335/AC, p.55).
Já o ministro Celso de Mello, no julgamento do Habeas corpus nº 96772, caracterizou a mutação como “o poder interpretativo” do STF deve ser exercido, em alguns casos, para “reformular o texto” constitucional, de acordo com “as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam a sociedade contemporânea”. (ALVES, 2016, p. 100).
Lourenço Junior (2018, p. 155) lembra que “[...] os ministros Marco Aurélio e Edson Fachin, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 46/DF (p. 27) e no habeas corpus (HC) nº 127.900/AM (p. 26), respectivamente, também equiparam a mudança informal à interpretação evolutiva/atualizadora da Constituição Federal”.
Por sua vez, o ministro Luís Roberto Barroso – entusiasta de um comportamento proativo do Supremo Tribunal Federal – afirma que a mutação constitucional ocorrerá “[...] quando, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal vier a atribuir a determinada norma constitucional sentido diverso do que fixara anteriormente, seja pela mudança da realidade social ou por uma nova percepção do Direito.” (BARROSO 2010 apud ALVES, 2016, p. 100), desde que com lastro democrático.
Destarte, percebe-se que, embora o cerne dos conceitos expostos apresente similaridades, há sutis diferenças que ensejam críticas quanto à legitimidade de decisões baseadas em mutações constitucionais.
Quando são prolatados votos no Supremo Tribunal Federal no intuito de que seja sepultada a resolução do Senado Federal ou permitida a união estável entre pessoas do mesmo sexo, não houve uma clara autolimitação pelas possibilidades de sentido do texto constitucional. E este é o ponto de questionamento da legitimidade destas posições jurisprudenciais. [...] O respaldo de soberania popular para a adaptação constitucional também é contestável no que tem de pouco aferível, e, por outro lado, a adoção do pensamento majoritário como norte para as decisões constitucionais não é uma garantia de boas decisões. A inclinação dos juízes com base no argumento de que muitos indivíduos estão pensando em um sentido ou noutro [...] é uma forma potencialmente ruim de solução dos problemas afetos aos grupos minoritários. (ALVES, 2016, P. 101).
Flavio Pedron e João Paulo Soares e Silva (2020, p. 905) se posicionam de forma ainda mais ferrenha: segundo eles, a tese da mutação constitucional encobre uma faceta decisionista do STF, que se se coloca como vanguardista e alega se utilizar da mutação constitucional quando na verdade quer exercer atribuições de um Poder Constituinte.
É verdade que a posição assumida pelo STF demonstra uma faceta decisionista da função jurisdicional, principalmente no que tange ao exercício dos mecanismos de controle de constitucionalidade, já que passam a exercer um papel hipertrofiado, avocando uma legitimidade duvidosa para, não apenas “guardar” a constituição, mas assumir como uma modalidade de Poder Constituinte permanente (STRECK; CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, 2007, p.12-13). Assim, se para o STF a Constituição de 1988 não está suficientemente em compasso com o que ele entende por “realidade”, a questão deixa de ser tratada sob o ponto de vista de uma discussão pública e democrática sobre a necessidade de reforma/alteração da Constituição pelos canais institucionais que o próprio Texto Maior prevê, e passa a ser vista como uma saída mais imediatista, qual seja, a alteração da normatividade constitucional pelo STF. (PEDRON; SILVA; 2020, p. 905)
Haja vista a controvérsia sobre a divergência do uso da mutação constitucional pelo STF, Alves (2016, p. 104) assevera que “[...] mais interessante que a definição é a discussão em torno da atualização do documento através da atividade dos seus intérpretes e dos atritos que surgem de novas leituras constitucionais”.
O debate nesse ponto não é se os juízes devem adaptar a Constituição à realidade contemporânea. O debate é sobre quão livremente devem interpretá-la para chegar à conclusão que mais lhes agrada e sobre o que faz essa conclusão legítima. [...] O modo pelo qual deve se dar a construção das decisões, entretanto, é uma formulação em desenvolvimento, cujas respostas serão fornecidas por cada caso na sua singularidade, como se a interpretação se reinventasse a todo tempo, em cada concretização, em cada reconciliação entre o constitucionalismo e a democracia. (ALVES, 2016, p. 104).
A preocupação maior é, portanto, quanto à efetividade dos limites e requisitos impostos ao fenômeno em voga – especialmente naqueles que veem seu uso instrumental e retórico pelo STF. Nessa toada, Lourenço Junior (2018, p. 158) afirma que, em alguns casos, “[...] o Supremo impõe o que entende ser uma mutação constitucional, e não constata a existência de uma alteração informal já consolidada. Não trata o fenômeno como resultado de um processo, e sim como instrumento a ser manejado pelo intérprete.”.
Na esteira desse entendimento, alertam Pedron e Silva (2020):
Todo o problema é desenvolvido pelos ministros a partir de uma dicotomia entre “texto e norma” (STRECK; CATTONI DE OLIVEIRA; LIMA, 200, p.13), apostando na tese da mutação como a solução taumaturga do problema, mas que é falha por não problematizar paradigmaticamente a questão [...] o que se vê é a utilização do mecanismo da mutação constitucional para a resolução de problemas típicos de paradigmas jurídicos diferentes do assumido pelo Estado Democrático de Direito. Isso porque tais propostas de soluções aos problemas se dão ainda dentro dos limites de uma concepção positivista já em crise e descompromissada com uma função jurisdicional democrática, que, necessariamente, tem que assumir uma interpretação construtiva (DWORKIN, 1999) do Direito, tendo em vista que o direito é um empreendimento coletivo do qual participa toda a sociedade – na forma de uma comunidade de princípios. (PEDRON; SILVA; p. 921)
Há uma clara distância entre adequar o texto constitucional à realidade fática contemporânea e a mudança que revoga ou anula preceitos sem os ressignificar positivamente. (ALVES, 2016, p. 123). Afinal, a segurança jurídica de um constitucionalismo pautado em uma constituição escrita é muito dependente do respeito àquelas normas textuais.
Portanto, é pertinente que grande parte da doutrina seja vigilante em relação à falta de critério que muitas vezes se observa nas citações à mutação constitucional no Pretório Excelso. Ademais, para a compreensão precisa desse fenômeno, é preciso que se examine o contexto em que ele está inserido atualmente, qual seja um cenário onde o ativismo judicial é pujante. A mutação constitucional é um corolário de um Judiciário ativista, de modo que este oferece o cenário perfeito para aquele crescer.
3.ATIVISMO JUDICIAL E MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
3.1 ATIVISMO E MUTAÇÃO
O presente estudo baseia-se em dois pilares: o exame do fenômeno que permite a alteração informal da Constituição Federal e o cenário ativista que a potencializa. A enunciada relação dos fenômenos jurídicos se evidencia na medida em que uma postura mais ativa e intensa do Judiciário na interpretação da Constituição favorece eventuais inovações semânticas em suas normas.
Faz-se mister, portanto, o enfoque mais detalhado do que vem a ser o termo “ativismo judicial”. Este admite diversos significados, que compreendem a ação judiciária de instrução, invalidação de atos normativos dos demais poderes e participação e decisão de questões polêmicas (CAMPOS,2014).
Kmiec (2014) apresenta cinco sentidos para o termo ativismo judicial, a saber: 1. Posição do judiciário de determinar a invalidação ações dos outros poderes (Executivo e Legislativo), de modo que passa a ser visto como ativista um tribunal/ corte que, regularmente, classifica atos normativos dos outros poderes como inconstitucionais; 2. A expressão indica a conduta de um tribunal/corte que se distancia dos princípios já consagrados para adotar uma interpretação peculiar sobre o Direito; 3. Compreende a mudança de função, quando o tribunal passa a legislar, deixando de julgar, que é sua função. Sobre isso, Continentino (2012) alerta que “Cortes ativistas seriam aquelas que, ao desprezarem os limites de suas próprias atribuições e o princípio da separação dos poderes, criariam direito novo, a pretexto de interpretá-lo”; 4. O ativismo como ocorrência de uma interpretação diferente da visão tradicional; 5. Julgamento que é encaminhado pelo resultado, de modo que o tribunal toma uma decisão a partir de um motivo finalístico.
Percebe-se, portanto, o quanto o termo ativismo judicial apresenta significados diversos e, até mesmo, inconsistências. Convém ressaltar, porém, que a este trabalho interessam os quatro últimos sentidos descritos por Kmiec (2014), a saber: 1) distanciamento dos precedentes sem a devida argumentação; 2) substituição da finalidade do tribunal, ou seja, a corte passa a legislar em detrimento ao seu papel de julgar; 3) adoção de interpretações diferentes das comumente aceitáveis; e 4) orientação do pelo resultado.
De acordo com Araújo (2018), a ampliação da força jurisdicional acabou promovendo uma atuação mais criativa dos magistrados. Com isso, os juízes passaram não apenas a proteger os direitos, como também a criá-los. Esse movimento vem sendo alvo de críticas e denúncias da minimização da significância e atuação do poder legislativo, como aponta Romboli (2015), e por isso se torna importante refletir sobre essa questão.
Shapiro; Swett (2002) e Friedman; Pérez-Perdom (2003) apresentam concepções mais profundas sobre o ativismo judicial. Os autores explicam que a ciência jurídica vem assumindo um papel invasivo, produto da incursão do Direito nas relações sociais, classificada como a judicialização da sociedade, como nos poderes, apresentada como a judicialização da política. Nesse sentido, o Judiciário passa a ser regulado pelas demandas e expectativas da sociedade e dos interesses de determinados grupos e ideologias.
Assim sendo, o ativismo judicial pode ser compreendido como a participação mais significativa do Poder Judiciário na elaboração dos valores constitucionais (ROOSEVELT, 2006) ou, ainda, como uma intervenção mais acentuada nas ações dos outros dois Poderes do Estado e não deve ser entendido como ativismo extrajudicial, como ativismo dialógico ou como ativismo procedimental (MARSHALL, 2002).
Para parte dos estudiosos do tema, o ativismo judicial consiste em um fenômeno inevitável para o Estado Democrático, devendo ser analisado sob dois aspectos: (i) sua relação com o processo democrático (soberania e separação de poderes) e (ii) instrumentalização dos direitos fundamentais e sociais.
De acordo com Gomes (2015, p.20),
Há o ativismo judicial inovador (criação, ex-novo, pelo juiz de uma norma, de um direito) e há o ativismo judicial revelador (criação pelo juiz de uma norma, de uma regra ou de um direito, a partir dos valores e princípios constitucionais ou a partir de uma regra lacunosa). Neste último caso o juiz chega a inovar o ordenamento jurídico, mas não no sentido de criar uma norma nova, sim, no sentido de complementar o entendimento de um princípio ou de um valor constitucional ou de uma regra lacunosa.
Trata-se de uma manifestação tanto de caráter institucional como também de caráter eminentemente político. É um fenômeno que deriva do neoconstitucionalismo. Para Ferrajoli (2006), tem-se o constitucionalismo jurídico, argumentativo, que equivale ao próprio Estado Constitucional e tem-se o constitucionalismo político, que corresponde ao Estado Legislativo, partindo da reformulação do positivismo.
O constitucionalismo contemporâneo está diretamente relacionado à “constitucionalização” das normas infraconstitucionais, ou seja, deve a lei se subordinar aos princípios constitucionais, aos ideais de justiça e aos direitos fundamentais, modificando, substancialmente, o método do julgador.
A concretização possibilita, a partir da nova hermenêutica, a análise de uma situação em concreto para compreensão do direito e da qualidade, por assim dizer, da norma jurídica. Isso por si só reafirma o ativismo judicial com um fato (FERRAJOLI, 2006).
Afirma Laporta (2003) que a relação entre constituição e lei se estabelecem através de dois modelos: (i) modelo constitucionalista judicialista: a constituição determina normas de conduta plenamente eficazes; os juízes podem aplicar a constituição, em detrimento da lei; (ii) modelo democrático legalista: a constituição não pré-determina a solução de todos os conflitos; determina a competência política (quem manda; como manda; onde manda); o legislador ordinário determina as normas do sistema jurídico, cabendo ao sujeitar-se à legalidade, observando se a lei excede ou não os limites políticos.
O modelo judicialista, embora apresente-se mais técnico-jurídico, distancia-se dos vieses democráticos, pois a função da jurisdição não consiste em substituir o legislador, mas sim em controlar o sistema jurídico, retirando do ordenamento decisões e normas que estejam em desconformidade com a constituição, mediante o exercício interpretativo.
No Brasil, diversos autores defendem que as decisões tidas como ativistas caminham no sentido de ampliar direitos fundamentais com o pretexto de preencher as lacunas resultantes da ineficiência dos outros Poderes do Estado (RAMOS; OLIVEIRA JR, 2014). Por isso, há uma inquietação com a denominada “legislação judiciária” e o “ativismo à brasileira” (ARAÚJO, 2018).
Uma possível razão para esse ativismo judicial no Brasil está ligada à cláusula constitucional do amplo acesso à justiça, que, segundo Zaneti Jr. (2007), faz com que o Poder Judiciário funcione como o “motor da democracia participativa”, fenômeno que foi intensificado com o discurso jurídico e judicial posterior à Constituição, deixando de ser um “discurso fundado em regras codificadas, centralizado no juiz, apodítico e demonstrativo, que aplicava o direito material posto e fundado nos direitos subjetivos preconcebidos, para um discurso democrático”, assumindo um caráter argumentativo em resultado da “principialização do direito”.
Com a Constituição de 1988, o Poder Judiciário no Brasil vem sofrendo intensas transformações. Inúmeras modificações institucionais promoveram a ampliação do acesso à justiça, o revigoramento do Ministério Público e a revitalização de instrumentos processuais. Além disso, as liberdades democráticas promovem um maior esclarecimento e consciência dos cidadãos sobre os seus direitos.
Essas mudanças contribuíram para um crescimento da litigiosidade, da judicialização da política e do processo de “empoderamento” do judiciário, que passam a pressioná-lo intensamente, estimulando e até forçando uma prática mais ativista já que se exige desse Poder respostas imediatas aos problemas de ordem social, econômica e institucional.
O que se vê na realidade brasileira é um ativismo judicial que figura como “uma atitude, ou seja, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance” (ABREU, 2013, p. 140), e ao mesmo tempo, “se mostra como a ampliação do poder dos tribunais no controle dos demais poderes, pelo viés constitucional” (p. 142).
Quando o Legislativo e o Executivo se mostram silentes diante de um clamor social por transformações, adequações ou inovações normativas, o Poder Judiciário é incitado a resolver e, por não poder se abster, acaba por inovar o ordenamento jurídico e normativo sobre a questão. Sobre isso, Streck (2013, p.314) explica que
O que ocorreu e o que vem ocorrendo em terrae brasilis: as decisões dos Tribunais são proferidas de acordo com a visão de cada componente, soçobrando, com isso, a legislação e, o que é pior, a Constituição. Sob pretexto de o juiz não ser mais o “juiz boca da lei” (positivismo primitivo), agora temos o juiz (tribunal), para quem (para qual) a lei é apenas – como diriam alguns doutrinadores adeptos de teorias voluntaristas – a ponta o iceberg. E, por vezes, nem mesmo isso...! No fundo, volta-se ao velho positivismo fático, versão voluntarista do realismo jurídico: a lei é aquilo que os Tribunais dizem que é (como que a repetir a famosa frase do juiz Oliver Holmes).
O ativismo judicial, portanto, caracteriza-se por duas vertentes: a prima quando ultrapassa o âmbito do Legislativo e reconfigura o ordenamento jurídico, afetando a representação da sociedade naquele que democraticamente por ela foi eleito e a segunda, quando o magistrado, ao perceber uma inação legislativa, busca prover essa lacuna instituindo um novo precedente (GOMES; CABRAL, 2019).
O magistrado, em face de sua função e conhecimento técnico poderia ter decidido usando direito posto, que compreende normas, jurisprudência, súmulas e vários outros recursos disponíveis, porém – e isso se tornou também um aspecto marcante do ativismo judicial – escolhei inovar no ordenamento jurídico, portando-se como legislador positivo, que cabe apenas ao Poder Legislativo, órgão político e representado democraticamente por cidadãos eleitos pelo povo. Trata-se, então, de uma sobreposição às fronteiras estabelecidas pela CF/88, visto que “[...] os juízes não são eleitos, bem como não são responsáveis perante os eleitores, como ocorre com os legisladores, logo não poderiam criar leis” (ABREU,2013, p. 229).
Em uma pesquisa documental recente, Pereira (2021) apresenta algumas decisões do STF que podem ser classificadas como ativistas, uma vez que usurpam o caráter legislativo que não é de sua competência. Entre 2004 e 2020, o autor encontrou mais de sessenta decisões relativas a assuntos significativamente complexos e de elevado impacto e polêmica na sociedade.
Nesse sentido, o protagonismo ofertado ao Poder Judiciário, sobretudo, ao STF evidencia a cominação do jurídico em detrimentor do político. Convém advertir que tal influência do jurídico no campo político, cujos membros não são eleitos, pode afetar de forma negativa na consolidação e no amadurecimento da democracia, visto que o povo está equidistante dessas decisões (PEREIRA, 2021).
O princípio da Supremacia da Constituição e a primazia de sua interpretação para coesão do sistema reivindica uma atuação quase que legislativa do Tribunal e/ou Corte Constitucional. Eventuais reflexos políticos derivariam, em tese, da própria outorga constitucional e assunção de competências (ABREU,2013).
A atuação do Judiciário, nesse sentido, seria expansiva ou proativa, de caráter político, conjugando as finalidades do Estado, a proteção dos direitos constitucionalmente garantidos e a interpretação normativa, diante de uma contumácia do legislador. De acordo com Pereira (2021), a constitucionalização e a nova hermenêutica jurídica resguardam os interesses do Estado Constitucional, defensor das garantias individuais, dos direitos sociais e fundamentais, mediante um juízo de valoração criativo, baseado na ponderação dos princípios.
Segundo Alencar Filho (2011), o ativismo judicial deve ser analisado e compreendido a partir da hermenêutica, diante dos novos meios de interpretação (ou de concretização) para integrar e alcançar soluções mais satisfatórias aos anseios sociais, desde que a sua forma seja constitucional. Como consequência da concretização ou interpretação técnica-jurídica, é possível maior efetividade na aplicação do conteúdo da norma, ou seja, resultado do processo, através do qual se aplica o direito real.
Martins (2020, p. 102), todavia, trata esse fenômeno de forma diferente. Segundo o autor,
[...] não se deve confundir “ativismo judicial” com “maior protagonismo do Poder Judiciário”. Este último é uma consequência natural do neoconstitucionalismo, já que o Judiciário, como “guardião da Constituição”, tem o dever de garantir a sua força normativa, questionando os atos e as omissões do Poder Público que descumprem os ditames constitucionais. Todavia, o primeiro (o ativismo) é o exagero, a ação desmesurada do Poder Judiciário. Enquanto o ativismo pode ser acusado de violar a “separação dos Poderes”, o protagonismo do Poder Judiciário pode ser visto como um avanço na implementação dos direitos fundamentais (como no controle das políticas públicas) e na consecução de sua função contramajoritária (nome criado por Alexander Bickel), assegurando os direitos fundamentais de uma minoria, ainda que contra a vontade de uma maioria episódica.
Em que pese as diferentes perspectivas da doutrina brasileira sobre o movimento jurídico em tela, é fato notório que a eventual hipertrofia de um dos Poderes da Federação requer parcimônia. Quando esta ocorre no Judiciário - mesmo em casos nos quais a motivação é justa, como omissão do Legislativo -, deve-se inspecionar em que medida pode haver uma centralização exacerbada de competências e atribuições. O maior alvo desse exame atento é o Supremo Tribunal Federal e suas decisões, haja vista a óbvia relevância da Corte e sua função de “guardião” do Texto Constituinte. Dentre a miríade de julgamentos que trazem reflexões importantes concernentes ao ativismo, um possui caráter simbólico e fundamental para a discussão proposta: o posicionamento do Tribunal a respeito da Reclamação nº 4.335/AC.
3.2 ANÁLISE DA RECLAMAÇÃO nº 4.335/AC
Ao longo do presente estudo, foi possível perceber que a mutação constitucional, seja ela conceituada de forma mais ampla ou objetiva, é favorecida por um contexto onde está presente o ativismo judicial. Nesse sentido, vale analisar, em especial, o caso da Reclamação nº 4.335/AC, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, que gerou a tese de uma suposta mutação constitucional no artigo 52, inciso X, da Constituição Federal.
A Reclamação em foco foi ajuizada pela Defensoria Pública do Estado do Acre, contra decisões do Juiz de Direito da Vara das Execuções Criminais do Acre, e, Rio Branco. O magistrado havia indeferido a progressão de regime de uma série de réus em cumprimento de pena por crime hediondo, com fundamento no artigo 2, §1º, da Lei nº 8.072/90, embora o Supremo Tribunal Federal já houvesse decretado a inconstitucionalidade do referido dispositivo (no HC nº 82.959).[1]
O magistrado argumentou que sua recusa em aplicar a posição do STF estava protegida pelo artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, segundo o qual “[...] compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”. Como a decisão da Corte foi em sede de controle difuso, o juiz acreano não se reconheceu vinculado a ela, mas sim à chancela do Senado Federal citada no artigo mencionado.
Devido a superveniente Súmula Vinculante nº 26, a reclamação foi julgada procedente. Entretanto, mais que o resultado da ação em si, requer atenção, para fins desta pesquisa, o voto do ministro Gilmar Mendes. Nele, foi proposta uma revisão do papel do Senado Federal no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro – função que, de acordo com o relator, sofreu desgaste no decorrer do tempo.
Todas essas reflexões e práticas parecem recomendar uma releitura do papel do Senado no processo de controle de constitucionalidade. Quando o instituto foi concebido no Brasil, em 1934, dominava uma determinada concepção da divisão de poderes, há muito superada. Em verdade, quando da promulgação do texto de 1934, outros países já atribuíam eficácia geral às decisões proferidas em sede de controle abstrato de normas, tais como o previsto na Constituição de Weimar de 1919 e no modelo austríaco de 1920. A exigência de que a eficácia geral da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal fique a depender de uma decisão do Senado Federal, introduzida entre nós com a Constituição de 1934 e preservada na Constituição de 1988, perdeu grande parte do seu significado com a introdução do controle abstrato de normas. (Voto de MENDES, na Rcl. n. 4.335/AC, p.32 - 33).
Mendes defende uma “objetivação” do controle difuso e uma interpretação evolutiva do artigo 52 da Constituição Federal de 1988, uma vez que, na sua visão, este teria ficado obsoleto. Acrescenta, ainda:
Portanto, a não-publicação, pelo Senado Federal, de Resolução que, nos termos do art. 52, X da Constituição, suspenderia a execução da lei declarada inconstitucional pelo STF, não terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia jurídica. Esta solução, resolve de forma superior uma das tormentosas questões da nossa jurisdição constitucional. Superam -se, assim, também, as incongruências cada vez mais marcantes entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a orientação dominante na legislação processual, de um lado, e, de outro, a visão doutrinária ortodoxa e - permita-nos dizer - ultrapassada do disposto no art. 52, X, da Constituição de 1988 (Voto de MENDES, na Rcl. n. 4.335/AC, p.56).
Embora a tese do relator tenha ganhado apoio do ministro Eros Grau, ela foi rechaçada pela maioria dos outros membros da Corte. Dentre estes, vale ressaltar, inicialmente, o posicionamento dos ministros Sepúlveda Pertence e Joaquim Barbosa. Em seu voto (Rcl n. 4335/AC, p. 91), Pertence afirma, em palavras contundentes, que não se anima à mutação proposta “[...] por decreto do poder que com ela se ampliaria; o que, a visões mais radicais, poderia ter o cheiro de golpe de Estado”. Segundo o ministro, não haveria necessidade de colocar o Senado em uma posição “subalterna de dar publicidade a decisões do Supremo Tribunal em processos subjetivos” (Rcl n. 4335/AC p. 95).
Joaquim Barbosa, por sua vez, explicita em seu voto sua discordância quanto à ideia de que a suspenção da execução pelo Senado significa óbice à efetividade das decisões do STF (Rcl n. 4335/AC, p. 98). A respeito da posição do ministro, Pedron e Silva (2020, p. 547) observam:
O ministro levanta, ainda, um importante argumento: a doutrina constitucional assinala, de um modo geral, que, para se poder identificar uma mutação constitucional “idônea”, dotada de legitimidade (ou seja, o inverso de uma mutação inconstitucional), deve-se atentar para dois requisitos fundamentais: (a) a existência de um lapso temporal razoável; e (b) a definitiva “dessuetude” do dispositivo.[29] Mas, especialmente nesse segundo requisito, o argumento trazido pelo Min. Barbosa é de importância ímpar, pois aponta em seu voto que o Senado Federal, desde 1988, já fez uso da atribuição do art. 52, X, da CR/88 quase cem vezes [...]. Logo, onde está o desuso do dispositivo que legitimaria a aplicação da mutação constitucional pelo STF? Argumentando, ainda, a partir do pensamento de Canotilho, o Min. Barbosa não explicita o que seja, em seu entendimento, a figura da mutação constitucional, mas informa o que não é. Para ele, a simples mudança de interpretação de um dispositivo não pode ser entendida como modalidade de mutação constitucional.
Percebe-se, portanto, que ademais da já mencionada divergência dos ministros a respeito da conceituação do que viria a ser uma mutação constitucional, houve entre os membros do órgão o receio sobre os efeitos potencialmente nocivos que o uso desmedido desse fenômeno jurídico pode gerar. Barbosa discorre, ainda, sobre as os princípios de self restraint que devem ser obedecidos pela Corte no exercício da jurisdição constitucional. Segundo ele, o Poder Judiciário deve ter “virtudes passivas” e agir de modo a: “a) anular a legislação em desacordo com a Constituição; b) declarar a sua compatibilidade com o texto constitucional; c) abster-se de pronunciar-se sobre a questão da constitucionalidade em respeito ao princípio da democracia” (Rcl n. 4335/AC,p. 101).
Da mesma forma, o ministro Ricardo Lewandowski seguiu a posição de cautela, ao afirmar que “Suprimir competências de um Poder de Estado, por via de exegese constitucional, a meu sentir, colocaria em risco a própria lógica do sistema de freios e contrapesos, como ressalta Jellinek.” (Rcl n. 4335/AC, p. 121).
A doutrina também se mostra atenta quanto aos riscos que uma eventual alteração informal e ativista pode causar ao princípio de separação dos Poderes e ao sistema de Freios e Contrapesos. O STF, ao expandir suas atribuições – como observado nos votos de Mendes e Grau -, força os limites que vários doutrinadores costumam impor à mutação constitucional. Nesse sentido, Pedron e Silva (2020, p. 932) observam que, nos votos da Reclamação 4335/AC,
(...) todos os argumentos parecem se apoiar apenas em uma racionalidade instrumental (celeridade, efetividade e segurança jurídica, como razões elevadas a verdadeiros dogmas no interior do discurso decisório), segundo a qual “os fins justificam os meios”.
Para Martins (2020, p. 692), “[...] nada, absolutamente nada, justifica a criação de uma interpretação que retira uma atribuição constitucional de um órgão como o Senado. [...] tal interpretação viola o princípio da justeza ou conformidade funcional”. O doutrinador acrescenta, ainda: “quando o intérprete elabora uma interpretação que não se encontra no limite do texto constitucional, está desvirtuando a Constituição e, por isso, avançando no campo da reforma constitucional” (MARTINS, 2020, p. 479).
Outrossim, Streck, Cattoni de Oliveira e Lima (2007, p.04 apud Pedron e Silva, 2020, p. 814) destacam
[...] que o ‘novo’ papel que pretendem os ministros do STF para o Senado Federal no controle difuso perde de vista o fato de que o mesmo é composto por representantes eleitos pelo povo brasileiro que exercem uma função importante no que toca à legitimidade democrática.
Na mesma esteira segue Alves (2016, p. 58), cujo posicionamento sintetiza a perspectiva geralmente cauta da doutrina frente à tese enunciada na Reclamação em tela:
Essa tese de mutação constitucional é parte de uma guinada maior de ativismo por parte do STF, talvez evidenciando uma das suas facetas mais perigosas, a do ativismo alargador de competências. Poucas coisas devem ser tão adstritas ao princípio democrático quanto a prerrogativa dos cidadãos de, por meio da constituição, delimitarem a parcela de poder que querem delegar às suas Cortes. Todo o contexto de ativismo judicial característico desse momento do STF se descortina e envolve a discussão. O avanço do Supremo na interpretação da questão pode abrir ensejo – como tem aberto – para outros cerceamentos às competências do parlamento (ALVES, 2016, p.58).
Diante do exposto no presente tópico, faz-se evidente a importância do julgamento da Reclamação 4335/AC para o estudo e constatação do vínculo natural entre o comportamento ativista da Suprema Corte brasileira e o uso da mutação constitucional como argumento balizador de eventuais alterações de normas presentes na Lei Maior. Percebe-se, claramente, uma relação direta de interferência do Judiciário sobre o Legislativo, fato que gera, de forma bastante pertinente, questionamentos referentes à presença ou não de legitimidade democrática nas ações dos ministros.
Como demonstrado pela doutrina examinada e pelos votos dissonantes da relatoria, é possível concluir que o tema “mutação constitucional” gera mais indagações que entendimentos uniformes. Além disso, “acaba por revelar a fragilidade teórica da compreensão levada a cabo pelo próprio STF sobre o que seja a mutação constitucional” (PEDRON e SILVA, 2020, p. 955).
No que tange ao equilíbrio necessário ao tema, assevera Martins (2020, p. 477)
Não há dúvidas de que não podemos ficar presos à interpretação originária do texto constitucional, já que, nas palavras de Thomas Jefferson, “o mundo é dos vivos”, não podendo ser governado pelos mortos e suas vontades, seus valores. Todavia, é imperioso reconhecer os limites da mutação constitucional, sob pena de flexibilizarmos exageradamente a Constituição, de acordo com a vontade e os valores do intérprete.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição representa a ordem jurídica fundamental de uma comunidade, vez que toda sociedade politicamente organizada tem no regramento constitucional a forma de estruturação do Estado e a proteção aos direitos fundamentais de seus indivíduos. Tamanha importância para a ordem jurídica, política e social de um país enseja estudo zeloso sobre os modos de interpretação e reforma da legislação constituinte. O presente trabalho buscou ampliar os conhecimentos sobre os efeitos da relação entre alterações semânticas sobre a Constituição Federal de 1988 e a atual tendência ativista do Poder Judiciário – simbolizada pelo Supremo Tribunal Federal.
No que se refere à mutação constitucional, sendo esta um mecanismo informal de alteração do sentido do texto e não da redação em si, devem ser observados os limites aos quais inovações interpretativas devem se submeter. Embora o intérprete da Constituição possa, por vezes, alegar uma adaptação que modernize o Direito e o aproxime da contemporaneidade, é nocivo que a pretensa adaptação se afaste do significado original da norma, já que tal conduta não caracteriza uma atualização, mas sim um rompimento.
Destarte, é perceptível que a mutação constitucional gera questionamentos quanto à sua legitimidade desde a conceituação, uma vez que, em uma democracia federativa, o papel de modificar leis corresponde ao Poder Legislativo. Ademais, no caso da rígida Constituição Federal de 1988, a modificação formal de seu texto – através de Emendas Constitucionais - obedece a um rito ainda mais estrito, no que tange ao rol de proponentes e às regras de quórum para aprovação.
Contudo, a existência desse receio não implica, necessariamente, em dizer que a mutação constitucional é ilegítima per se. A presença do sistema de Freios e Contrapesos no ordenamento pátrio permite que, eventualmente, objetivando o equilíbrio, um Poder possa interferir nas atribuições do outro, quando este se excede ou se omite. Todavia, consoante ao que foi apresentado nesta pesquisa, é fundamental que a mutação constitucional ocorra de forma cautelosa, pontual e obediente a critérios de limitação.
Porém, daí surge nova problemática: em um momento no qual o Ativismo Judicial mostra considerável força e presença, é mais difícil que a mutação constitucional obedeça a delimitações. Quando o Judiciário – sobretudo na figura do Supremo Tribunal Federal - concentra competências por meio de uma postura exagerada ou demasiadamente proativa, há o risco de insegurança jurídica. A recorrência da mutação é, portanto, corolário do momento ativista e a relação entre os dois fenômenos é inerente. Quanto maior for o Ativismo Judicial, maior será a possibilidade de uma mutação constitucional desenfreada e o esvaziamento da função do Texto Constituinte.
Além disso, a dissonância entre os ministros do Supremo Tribunal Federal no que tange à conceituação e os limites do fenômeno em estudo é outro fator que provoca receio. Diante da análise dos votos da Reclamação nº 4.335/AC e de outros julgamentos, feita no presente trabalho, foi possível concluir que, em algumas ocasiões, o significado e os efeitos dados à mutação constitucional são adaptados pelo julgador para se amoldar às suas intenções. Pode haver uma situação em que a determinação constitucional acaba sendo aplicada ou suspendida arbitrariamente pelo Judiciário, de modo que resulte no esvaziamento da normatividade e legitimidade da norma constitucional.
A mutação constitucional é relevante objeto de debate, seja por sua conceituação em si, seja por sua aplicabilidade. O exame dos seus possíveis efeitos no ordenamento jurídico brasileiro – especialmente através dos julgamentos em que ela é mencionada como parte da argumentação – é necessário, sobretudo, em momentos de tensões entre Poderes e hipertrofia das atribuições do Judiciário. Situações como a proposta de se alterar as prerrogativas de controle de constitucionalidade do Senado, apresentada na supracitada Reclamação nº 4335/AC, excedem limites e devem gerar alerta.
A Constituição Federal de 1988, após décadas de sua promulgação, deve ser um organismo vivo, ligado às demandas modernas da sociedade. Tal característica não invalida, contudo, a vocação de permanência das normas constitucionais. Embora a alteração informal do Texto Constitucional seja aceitável em alguns casos, é necessário haver cautela a obediência aos princípios decorrentes do Constituinte Originário. A estabilidade e a eficácia da Constituição são elementos indispensáveis ao equilíbrio e à consolidação do Estado Democrático de Direito.
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Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUTO, Pedro Henrique Carvalho. Mutação constitucional na era do ativismo judicial: efeitos no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2021, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57302/mutao-constitucional-na-era-do-ativismo-judicial-efeitos-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: JAQUELINA LEITE DA SILVA MITRE
Por: Elisa Maria Ferreira da Silva
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