RAFAEL SILVA OLIVEIRA
(Orientador) [1]
RESUMO: Partindo do pressuposto de que a história de uma nação não é feita aquém dos anseios de seu povo e que os ecos oriundos da vocalização das contradições internas e das feridas abertas de uma civilização jamais devem ser ignorados, o estudo resultante deste artigo busca fazer viável uma reflexão acerca do direito de protestar e de sua fundamentalidade aos regimes democráticos de governo, das formas legítimas de participação política e do valor dos anseios expressados diretamente pelos cidadãos do Estado. O direito de protestar, mesmo sendo um dos pilares das democracias modernas, não é uma garantia prevista de maneira expressa na Constituição Federal Brasileira. Deste modo, a pesquisa de cunho bibliográfico descritivo pretende discutir acerca dos revestimentos de legalidade e da fundamentalidade atribuídos ao direito de protestar e de como a relação por ele estabelecida com o conceito de direito de resistência pode nos propiciar valiosas reflexões acerca das formas legítimas de ampliação da participação popular nas decisões da política institucional.
Palavras-Chave: Direito de Protestar. Fundamentalidade. Participação Política. Democracia. Direito de Resistência.
ABSTRACT: Based on the assumption that the history of a nation is not made without the wishes of its own people and that the echoes coming from the vocalization of internal contradictions should never be ignored, the study resulting from this article aims to make viable a reflection about the right to protest and its fundamental importance to democracies, the legitimate forms of political participation and the value of the wishes expressed directly by citizens of the State. The right to protest even being a pillar of modern democracies is not a guarantee expressly provided in the Brazilian Constitution. In this way, this descriptive bibliographical research intends to discuss the legality and fundamentality of the right to protest and how the relationship established by this right with the concept of the right of resistance can provide us a valuable reflection on the legitimate forms of increasing popular participation in the decisions of institutional politics.
Keywords: Right to Protest. Fundamental Importance. Political Participation. Democracy. Right of Resistance.
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Noções conceituais e revestimentos de legalidade: afinal, quão fundamental é o direito de protestar para a democracia?. 3. Ampliando a noção de participação política: por uma democracia mais participativa. 4. Conclusão. 5. Referências.
A história de uma nação não é feita aquém dos anseios de seu povo. O eco oriundo da vocalização das contradições internas de uma sociedade e o enfrentamento das feridas abertas de uma coletividade jamais deve ser ignorado. A doutrina jurídica constitucional e a ciência política moderna não relutam em admitir que enxergar a democracia contemporânea como fruto de lutas e reivindicações populares é um bom começo para as mais variadas reflexões que podem ser extraídas das experiências desse tipo de regime de governo.
Em vista disso, partindo de um debate acerca da fundamentalidade do direito de protestar, que ressalta a valorização das reinvindicações sociais, os capítulos que estruturam este texto buscam evidenciar que esse direito e as manifestações populares devem ser enxergados, por todos os brasileiros, como pressupostos intrínsecos de um saudável modelo democrático.
Ao Brasil, que se configura como um Estado Democrático de Direito desde o ano de 1988, é imperativo garantir um direito de protestar aos seus cidadãos. Embora o direito de manifestação popular se encontre entre os temas de interesse das ciências jurídicas que gozam de tímidas divergências doutrinárias acerca de seu conceito, amplitude e importância são justamente elas, e uma notável carência de aprofundamento sobre as questões oriundas de seu exercício, que fazem ser pertinente discutir a respeito da fundamentalidade do protesto para as atuais democracias.
De antemão é preciso explicitar que o ordenamento jurídico brasileiro não garante expressamente um direito de protesto social. Contudo, não há de se questionar sua existência e relevância dada a constatação, copiosamente defendida ao longo do texto, de que a essência dos protestos se externaliza por meio dos desdobramentos interpretativos da combinação de três garantias fundamentais de liberdade elencadas no Art. 5º da Constituição Federal Brasileira (CF/88).
Logo, as discussões aqui propostas se amparam na perceptível dificuldade de acesso à literatura especializada a respeito do tema, na falta de previsão expressa na CF/88 (e consequentemente na legislação infraconstitucional) bem como no caráter ineficaz ou de mera perturbação comumente atribuídos às manifestações de rua por uma parcela considerável de nossa população. Além de discutir um dos pilares da democracia moderna e frisar a real importância a ser dada ao direito de protestar, este trabalho intenta propiciar reflexões acerca das formas legítimas de ampliação, por vias extra institucionais, da participação do povo nas decisões cotidianas da política institucional.
2. NOÇÕES CONCEITUAIS E REVESTIMENTOS DE LEGALIDADE: AFINAL, QUÃO FUNDAMENTAL É O DIREITO DE PROTESTAR PARA A DEMOCRACIA?
Tendo como premissa uma livre associação da expressão direito ao protesto com o que comumente se entende por manifestação popular, ao nos dispormos a examinar os significados atribuídos ao verbo protestar, uma pesquisa em um dicionário de língua portuguesa indicará a natural predisposição de o relacionarmos com as palavras rebelião, insurreição, brado e clamor (FERREIRA, 2001). No mesmo sentido, outra formulação, também encontrada no dicionário, é a de que protestar consiste em “reclamar com veemência.” (FERREIRA, 2001, p. 564).
Embora pertinentes as acepções apresentadas pelo parágrafo anterior, compreender o significado isolado do verbo protestar não nos é suficiente e ainda pode representar um reducionismo pejorativo acerca do entendimento do conceito. Ao refletirmos sobre o direito de protestar devemos ter em mente que seu exercício extrapola a noção de mera reclamação ou reinvindicação de algo, vez que protestos são “verdadeiras janelas para a manifestação da democracia” (GODOY, 2011, p. 119) e servem como demonstrativo de que “é somente no dissenso que a democracia é verdadeiramente constituída e operada” (GODOY, 2011, p. 119).
Logo, o presente texto procura discutir acerca da importância concedida pelo cidadão brasileiro, que a ele tiver acesso, ao direito de protestar e às manifestações populares. Salienta-se que, mesmo reconhecendo a possibilidade de este ser mais amplo do que aquele, esta não é uma questão a ser aqui analisada. Os termos foram utilizados como sinônimos no decorrer dos parágrafos.
Ao longo das pesquisas bibliográficas para formação do referencial teórico deste trabalho foi possível verificar que o direito de protestar não se encontra entre temas com expressiva discussão doutrinária no Direito. A perceptível carência de aprofundamento sobre as questões oriundas do exercício do direito de protestar se constitui como um dos motivos que fazem ser pertinente a análise aqui proposta.
É importante destacar que há a impossibilidade de elencar e tecer comentários sobre todas as maneiras que o direito de protesto pode ser entendido ou todos os enfoques que a ele podem ser atribuídos. Contudo, as ideias apresentadas a seguir não possuem a pretensão de serem excludentes entre si e quanto mais ampla for a noção deste instituto jurídico, mais qualificada poderá ser a consciência democrática de quem decidir compreendê-lo.
Não sendo você alguém que elegeu o direito como a área do conhecimento humano merecedora de sua atenção e disposição exploratória, e se, porventura, a consecução de fins úteis não se fizer a única razão pela qual novos conhecimentos passam a constituir seu repertório, a leitura da Constituição Brasileira, por mais despretensiosa que seja, se mostra bastante valiosa. A aventura proporcionada pelas ideias que constituem ou configuram a maneira que conhecemos “nosso país de agora” pode ser interessante.
É importante compreender que a Constituição Federal não faz uso das expressões protesto e manifestação com a finalidade de restar caracterizado algum tipo de direito ou garantia específica de protestar. De fato, a CF/88 não estabelece de maneira expressa uma garantia ao cidadão brasileiro de insurgir, individualmente ou de maneira conjunta, nos momentos em que julgar necessária a externalização de suas ideias sobre determinado tema (FUGAÇA; LORENZETTO, 2019).
Contudo, em posse dessa informação, não devemos encarar o protesto como um “não direito”, vez que o texto constitucional possui “contrapartidas necessárias para que o protesto possa ser revestido de legalidade” (FUGAÇA; LORENZETTO, 2019, p. 2).
Seguindo a mesma linha de pensamento dos autores supracitados, a organização não governamental (ONG) de Direitos Humanos Artigo19[2] enfatiza o caráter de direito fundamental do protesto e das manifestações públicas no caderno “Exercendo direitos em protestos”, publicado no site brasileiro da ONG, e ressalta sua importância para a saúde das democracias ao considerá-los “a base prática e funcional do sistema democrático” (MARQUES; VALENTE, 2020, p. 20).
A partir da leitura da Artigo19, bem como de pesquisas acadêmicas que versam sobre a maneira como a constituição brasileira trata o direito de manifestação popular, é possível afirmar que o revestimento de legalidade do direito ao protesto tem seu núcleo essencial amparado na junção de três liberdades garantidas por incisos do Art. 5º da CF/88, a saber: a liberdade de expressão, nos incisos IV e IX; a liberdade de reunião, no inciso XVI e a liberdade de associação, no inciso XVII.
Para aferirmos a amplitude de um direito que é composto pela aglutinação de outros direitos, uma análise de seus elementos constitutivos se faz necessária. Começando pela liberdade de expressão, o texto constitucional, no inciso IV do Art. 5º, dispositivo que por vezes pode ser enxergado como um tipo de “cláusula geral” (SARLET, 2018, p. 518) da liberdade de expressão, se limita a dizer que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (BRASIL, 1988).
Pelo fato de conciso ser o texto constitucional cabe à doutrina jurídica a missão de esmiuçar as questões oriundas de tal garantia fundamental. Inegável é a importância da liberdade de expressão para o ordenamento jurídico de nosso país, a ponto de ela ser considerada “um dos mais relevantes e preciosos direitos fundamentais, correspondendo a uma das mais antigas reivindicações dos homens de todos os tempos” (BRANCO, 2019, p. 405).
Partindo de um conceito mais amplo, “a liberdade de expressão consiste, mais precisamente, na liberdade de exprimir opiniões, portanto, juízos de valor a respeito de fatos, ideias, portanto, juízos de valor sobre opiniões de terceiros [...]” (SARLET, 2018, p. 520).
É válido destacar também o caráter transindividual da liberdade de expressão e sua íntima relação com o princípio universal da dignidade da pessoa humana e com o Estado Democrático de Direito, como bem explicitado por Ingo Wolfgang Sarlet (2018, p. 523):
[...] a liberdade de expressão, para além de um direito individual (na condição de direito subjetivo), representa, como já frisado, um valor central para um Estado Democrático de Direito e para a própria dignidade humana, na qual, como já visto, encontra um dos seus principais fundamentos (senão o seu principal fundamento). Assim, em função de tal circunstância, cuida-se de um valor da comunidade política como um todo, e nesta perspectiva a liberdade de expressão adquire uma dimensão transindividual, como, de resto, já se verificou, ocorre em termos gerais com os direitos fundamentais na sua perspectiva objetiva.
Não menos importante do que a primeira, a segunda liberdade que constitui a ideia de um direito fundamental ao protesto é a liberdade de reunião. Como fora exposto anteriormente, tal liberdade é encontrada no inciso XVI do Art. 5º da Constituição Federal que dispõe:
todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente; (BRASIL, 1988).
Tratada da mesma maneira que o direito de liberdade de expressão ou manifestação do pensamento, a liberdade de reunião é vista pela doutrina constitucional pátria como uma garantia “umbilicalmente ligada à democracia” (NUNES JÚNIOR, 2017, p. 903) e à república.
Ao se debruçar sobre o tema, Paulo Gustavo Gonet Branco afirma que a liberdade de reunião “pode ser vista como instrumento da livre manifestação de pensamento, aí incluído o direito de protestar” (BRANCO, 2019, p. 446).
Sem adentrarmos ao complexo e extenso tema a respeito dos parâmetros de limitação de uma garantia constitucional, percebemos a pacificidade esperada do exercício da liberdade de reunião, bem como se tornam identificáveis os seus elementos, sendo eles: a pluralidade de participantes; o tempo ou duração; sua finalidade e o lugar escolhido para a realização do ato (MORAES, 2018).
No mesmo sentido, o requisito de impossibilidade de frustração de outra reunião convocada anteriormente à que se deseja realizar deve sempre ser observado. Retornando nosso olhar à importância desta garantia, dignas de destaque são as palavras de André de Carvalho Ramos, que elucida que a liberdade de reunião deve ser vista como “direito-meio” uma vez que ela “viabiliza a liberdade de expressão e a liberdade de associação, permitindo a participação da sociedade civil na vida política e social” (RAMOS, 2020, p. 524).
A última liberdade de que trataremos é a de associação. Associações, em sentido amplo, podem ser entendidas como coligações de pessoas “em caráter estável, sob uma direção comum, para fins lícitos” (BRANCO, 2019, p. 455). O Art. 5º da CF/88, em seu inciso XVII determina que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar” (BRASIL, 1988).
Segundo José Afonso da Silva (2016), sobre o dispositivo constitucional analisado, é possível indicar a base contratual, a permanência (que diferencia a liberdade de associação da de reunião) e o fim lícito como elementos constitutivos da associação. Quanto à abrangência da garantia constitucional em exame o mesmo autor aponta que ela contém quatro direitos distintos:
[...] o de criar associação (e cooperativas na forma da lei), que não depende de autorização; o de aderir a qualquer associação, pois ninguém poderá ser obrigado a associar-se; o de desligar-se da associação, porque ninguém poderá ser compelido a permanecer associado; e o de dissolver espontaneamente a associação, já que não se pode compelir a associação a existir. (SILVA, 2016, p. 269-270).
Assim como o que fora apontado nos parágrafos anteriores, é inegável a importância da liberdade de associação para o atual constitucionalismo brasileiro (BRANCO, 2019). O papel desempenhado pelas associações na constituição do direito de protestar está na facilitação da obtenção ou reclamação por algo, visto que “quando não podem obter os bens da vida que desejam, por si mesmo, os homens somam esforços [...]” (BRANCO, 2019, p. 455) e o resultado da aludida junção de interesses é justamente a associação:
Associando-se com outros, promove-se maior compreensão recíproca, amizade e cooperação, além de se expandirem as potencialidades de autoexpressão. A liberdade de associação propicia autoconhecimento, desenvolvimento da personalidade, constituindo-se em meio orientado para a busca da autorrealização. Indivíduos podem-se associar para alcançar metas econômicas, ou para se defenderem, para mútuo apoio, para fins religiosos, para promover interesses gerais ou da coletividade, para fins altruísticos, ou para se fazerem ouvir, conferindo maior ímpeto à democracia participativa. Por isso mesmo, o direito de associação está vinculado ao preceito de proteção da dignidade da pessoa, aos princípios de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da garantia da liberdade de expressão. (BRANCO, 2019, p. 455-456).
Para além das garantias constitucionais já apresentadas e comentadas, a fundamentalidade do direito de manifestação e do protesto social também se ampara nas importantes noções constitutivas do que comumente é chamado pela doutrina jurídica e política de direito de resistência. Como bem explicitado por Fernando Antônio Alves (2014), o exercício do direito de protestar, historicamente, se fundamenta no conceito de resistência. Entende-se por resistência: “todo movimento popular de questionamento do poder, traduzindo-se num direito político, por excelência, que se desdobra no ordenamento jurídico de um povo a partir do reconhecimento ou não de direitos [...]” (ALVES, 2014, p. 137).
O autor também aponta a boa relação mantida por democracias saudáveis com as manifestações populares e que isto é claramente percebido através da maneira em que o Estado e as autoridades que o representam lidam com a expressão da não conformação de algum grupo de pessoas dado que “[...] os contornos da resistência e a reação estatal diante de formas de manifestação popular a questionar a ordem estabelecida é que irão diferenciar modelos democráticos ou autoritários de Estado” (ALVES, 2014, p. 137).
A história autoritária do Estado Brasileiro deve sempre ser considerada quando nos dispomos a compreender a desconfiança atribuída ao protesto tanto pelo Estado quanto pelos cidadãos brasileiros.
Como o Brasil é uma democracia ainda em fase de amadurecimento, levando em conta seu passado autoritário e as sucessivas cartas constitucionais que se seguiram até a consolidação de um novo modelo de Estado democrático, a partir da Constituição de 1988, muito ainda terá que ser visto e concebido, até que no país manifestações e protestos de rua não sejam vistos como objeto de repressão estatal pura e simples, mas sim como mais uma das formas de exercício da cidadania, dentro de um espaço público que permita o debate político, mesmo que não seja da forma legalmente prevista pelo poder político oficial (ALVES, 2014, p. 170).
Podemos, assim, construir uma reflexão acerca do entendimento de resistência como “ferramenta legítima de superação das desigualdades sociais, que, embora repreendida e criminalizada pelo sistema normativo burguês, deve ser realizada tendo em vista a necessária construção de uma sociedade realmente livre e democrática” (CASTILHO, 2011, p. 40).
Dentre os autores que se destacam por dedicarem seus estudos sobre a temática, Roberto Gargarella (2005) se mostra muito importante para a estruturação do conceito de resistência que se pretende alcançar aqui. Na obra intitulada “El Derecho a la Protesta” o jurista argentino defende veementemente a ideia de que do direito de protestar emanam as prerrogativas de exigir a recuperação de outros direitos, o que faz com que a garantia ao protesto seja por ele chamada de “primeiro direito”.
Diante do exposto, é inegável a íntima relação mantida entre a resistência e grupos marginalizados socialmente. Afinal, eles encontram nela o meio necessário para se fazerem ouvidos na sociedade que historicamente os marginaliza, como bem observado por Natalia Martinuzzi Castilho (2011) ao analisar as ideias de Roberto Gargarella.
O autor entende a atitude positiva de certos grupos em pôr um fim à situação de sofrimento e violação de direitos a partir dessa perspectiva, ao analisar o exemplo de famílias sem-teto, ou sem-terra usam uma propriedade em desuso com o objetivo de manter seus direitos básicos de comida e abrigo. Considera do mesmo modo a iniciativa desses grupos em realizar protestos para pressionarem o Estado a atender suas reivindicações. (CASTILHO, 2011, p. 46).
O protesto e a resistência não podem ter seu núcleo de existência dissociado do princípio da igualdade, previsto no caput do Art. 5º da CF/88, a saber: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]” (BRASIL, 1988). Acerca disso, Godoy (2011, p. 119) destaca:
Se o Direito pretende honrar a promessa de tratar a todos como iguais, deve assegurar então àqueles que hoje são excluídos um tratamento mais atencioso. Enquanto isso não acontece, o Direito deve dar especial proteção aos que reclamam por ser tratados como iguais e deve, portanto, proteger e não calar os protestos.
Portanto, a resistência, as manifestações e o protesto se mostram reais instrumentos da pretendida obtenção de uma igualdade concreta, real e democrática, vez que em uma democracia o respeito ao princípio da igualdade detém o papel de “[...] determinar que todas as pessoas possuem a mesma dignidade e valor moral [...] todo sujeito tem o igual direito de interferir nas discussões e decisões públicas sobre os rumos de sua comunidade” (GODOY, 2011, p. 126).
3. AMPLIANDO DA NOÇÃO DE PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: POR UMA DEMOCRACIA MAIS PARTICIPATIVA
Ao analisar de maneira histórica as funções desempenhadas pela ciência do direito é possível chegar à conclusão de que ela assumiu progressivamente o papel de encontrar possíveis soluções aos conflitos oriundos das, a cada dia mais complexas relações humanas. Pode-se constatar, portanto, que a importância do direito de manifestação para as democracias se ampara nas realidades fáticas do Brasil e do mundo como bem apontado por Fernando de Brito Alves e Jairo Neia Lima (2017):
Os últimos anos têm sido marcados pela constante emergência de grandes manifestações populares como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, a Revolta do Guarda-Chuva em Hong Kong, entre tantas outras. No Brasil, junho de 2013 retratou a ocupação das ruas por milhares de pessoas. [...] Nos últimos dois anos, a questão da corrupção e do impeachment levaram às ruas milhares de pessoas, seja para apoio ou discordância com as decisões políticas tomadas cada vez mais em foros afastados da participação popular. (ALVES; LIMA, 2017, p. 47).
Aprofundando-nos na ideia de que o direito possui, necessariamente, um caráter conciliatório, como já dito anteriormente, dentre os numerosos problemas enfrentados por esta ciência social está a garantia da coexistência e convergência de pensamentos antagônicos, onde reside a garantia do direito de protesto e manifestação. Tudo isso corrobora para demonstrar a grande importância deste direito em um Estado Democrático de Direito. Para a pesquisadora Ana Amélia Penido Oliveira (2019):
[...] entende-se que dentro de um Estado Democrático deve caber uma pluralidade de pensamentos e grupos políticos, tendo a sua existência e possibilidade de associação, reunião e de fazer lutas garantidas e asseguradas enquanto Direito. Considerando a heterogeneidade desse tipo de sociedade apontamos ser inerente a existência dos conflitos sociais, pois são através deles que muitas vezes ficam latentes as reivindicações e divergências entre os grupos políticos. [...] Sendo assim, enfatizamos que as lutas sociais são essenciais para manter a vitalidade de um Estado Democrático de Direito. (OLIVEIRA, 2019, p. 16).
A doutrina constitucional brasileira, bem como a ciência política moderna, não reluta em admitir que enxergar a democracia contemporânea como fruto de lutas e reivindicações populares é um bom começo para as mais variadas reflexões que podem ser extraídas das experiências obtidas por meio desse tipo de regime de governo (TRINDADE, 2018). A maneira como uma nação valoriza, garante e exerce o direito de protesto e manifestação em seu território está umbilicalmente ligada com a forma em que é tratada a participação política por este mesmo corpo social.
No primeiro artigo da CF/88 pode ser evidenciado, ao utilizar a expressão “todo poder emana do povo”, que a democracia, em seu sentido amplo, deve ser tida como um dos princípios fundamentais de nossa república, fato denominado pela doutrina constitucional como princípio democrático (MORAES, 2020). A noção de que, em nosso Estado, o povo é o primeiro detentor de soberania é um dos desdobramentos lógicos deste princípio democrático.
Manifestações populares se configuram como pressuposto intrínseco de uma experiência democrática saudável (OLIVEIRA, 2019). Portanto, cabe ao Brasil, que se configurou como um Estado Democrático de Direito através da Carta Constitucional de 1988, a missão de garantir livre exercício do direito de protesto e manifestação e assim integrar, de maneira mais efetiva, seus cidadãos nos processos decisórios do país.
O pensamento contemporâneo sobre democracia tende a revalorizar a participação política como forma de ressignificar a democracia existente, retomando o desafio de como incluir diretamente a população no processo decisório, ainda que isso implique em repensar o funcionamento tradicional das instituições (OLIVEIRA, 2019, p. 29).
Em complemento à ideia de que o Estado deve garantir e viabilizar aos seus cidadãos a livre expressão de descontentamento com a ordem posta, em maior ou menor grau, é imprescindível à saúde de um regime democrático que os habitantes do local que elege a democracia como modelo de regime de governo mantenham uma sólida relação com a política interna de seu país, para além do exercício do direito ao voto, uma vez que “[...] o desestímulo do povo à participação dos assuntos de interesse público é uma forma de desvalorizar o seu poder o que resulta na sua perda” (TORRES; VIANA, 2017, p. 65-66).
Como já apontado anteriormente, o Brasil, que sofre os reflexos de seu período ditatorial até os dias de hoje, não será capaz de ter uma real experiência democrática se a participação ativa de seu povo na política continuar a ser desestimulada da maneira como ela é na atualidade. Assim, “um novo pacto democrático só se efetivará com uma nova relação entre o povo e a política, o que depende de uma nova configuração de ambos” (PINTO, 2017, p. 480). A dificuldade de tornar mais ampla a ideia de participação política, por nós enfrentada há muitos anos, é explicitada por Tiago Aparecido Trindade:
[...] um dos principais desafios que interpela os cientistas políticos no presente contexto em relação a este debate parece ser o de avançarmos em uma concepção de participação política mais ampla, que seja capaz de conceber as ações de protesto (sejam elas promovidas por movimentos organizados ou não) como formas legítimas de participação no contexto de um ordenamento democrático. (TRINDADE, 2018, p. 14).
Ao analisarem a tensão mantida entra a soberania popular e o Estado de Direito (como uma das consequências do constitucionalismo moderno), os pesquisadores Vera Karam de Chueiri e Miguel G. Godoy (2010) destacam, através das ideias de Roberto Gargarella, a necessidade de inclusão dos anseios de quem está à margem dos processos de tomada de decisões na política institucional.
As sociedades plurais requerem mais do que uma simples representação ou deliberação. É preciso uma ampla representação e uma ampla deliberação e isso só é alcançado por meio da inclusão institucional daqueles que estão à margem do processo deliberativo (GARGARELLA,1998, p. 274 apud CHUEIRI; GODOY, 2010, p. 171).
Assim, acredita-se que a ideia de que um dos meios possíveis para tornar o anseio de uma maior inclusão social algo concreto e efetivo é, sem dúvidas, a valorização do direito de protestar, que nem em mera elucubração conceitual deve ter a possibilidade de seu exercício totalmente impedida.
Indignações, quando demonstradas, mesmo que de maneira fundamentada e pacífica, tendem a causar desconforto, em maior ou menor grau, em quem se dispõe a ouvir. Da convicção de que não somos ensinados, e, por consequência, não incentivados, a externar com veemência aquilo que nos assola, incomoda, fere e, porventura, restringe nossas possibilidades de existir no mundo, é que se deu a concepção inicial do conjunto de ideias que viriam a formar este texto.
Embora seja inviável esgotar todas as possibilidades de descrever algo, dado que qualquer conceito se mostra incompleto em algum grau ou sob alguma ótica, este trabalho facilita o encontro das condições necessárias à compreensão do instituto jurídico do direito de protestar e se manifestar, com aqueles que, porventura, nele se aventurarem.
Após termos contato com as noções de liberdade de expressão, associação e reunião, é imperiosa a conclusão de que é justamente de um sentido amplo de liberdade, princípio democrático por excelência, que se retira a fundamentalidade do direito de manifestação popular, contido implicitamente na Constituição Federal Brasileira. Quanto à devida valorização a ser dada pelo povo ao protesto, restou evidenciado que não há de se falar em democracia saudável quando uma boa relação com o direito de resistência não se fizer realidade no imaginário dos cidadãos e nas práticas das instituições componentes do Estado.
Dados os apontamentos postos até aqui, é possível considerar o direito de protestar como um pilar da democracia moderna e que, por isso, o exercício deste direito é algo que deve ser incentivado uma vez que ele contribui de maneira bastante positiva para a formação de uma visão coletiva e crítica acerca da participação direta do povo na discussão dos assuntos que lhe interessa. Conclui-se, por fim, que a redução da participação política ao momento do voto, como pode ser facilmente percebido no imaginário do brasileiro, oferece um imenso risco à democracia.
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[1] Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins; Especialista em Ética e Ensino de Filosofia; Mestre em Filosofia. Professor do colegiado de Direito na Universidade de Gurupi – UnirG.
[2] “A ARTIGO19 é uma organização não-governamental de direitos humanos nascida em 1987, em Londres, com a missão de defender e promover o direito à liberdade de expressão e de acesso à informação em todo o mundo. Seu nome tem origem no 19º artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Com escritórios em nove países, a ARTIGO19 está no Brasil desde 2007 [...]”. Texto retirado da seção “Quem Somos” encontrada no site: https://artigo19.org/sobre/.
Artigo publicado em 02/11/2021 e republicado em 13/05/2024
Bacharelando do Curso de Direito da Universidade de Gurupi – UnirG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BISMAK RODRIGUES DA SILVA JúNIOR, . Notas sobre a fundamentalidade do direito de protestar para a democracia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 maio 2024, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57352/notas-sobre-a-fundamentalidade-do-direito-de-protestar-para-a-democracia. Acesso em: 22 nov 2024.
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