MARIA JOVENIANA DA SILVA[1]
(coautora)
FELIPE SANTANA MARIZ NOGUEIRA[2].
(orientador)
Resumo: O presente artigo objetiva analisar a possibilidade de adquirir a herança da parte legítima e testamentária em casos de multiparentalidade, já que que essa lida com diversos princípios constitucionais inerentes à pessoa humana, em face de sua extrema imprescindibilidade por parte dos possíveis detentores do direito de herança, vislumbrando-se a ótica dos regramentos federais, da doutrina, da jurisprudência bem como da Constituição Federal. Desde o Código Civil de 1916, a doutrina e a jurisprudência têm procurado evitar as injustiças no reconhecimento do filho afetivo em relações multiparentais, e o reconhecimento de sua dependência perante os pais/mães, e os seus direitos patrimoniais advindos dessa relação. A partir disso, levando-se em conta que a Constituição Federal de 1988 mudou o conceito de família, é preciso esclarecer que seja qual for a forma de reconhecimento dos filhos, sejam eles naturais ou afetivos, todos têm os mesmos direitos, inclusive os direitos de herança. Porém, por ser um tema tão sensível, se faz necessário elucidar, finda-se a compreensão da suma importância, sob a ótica da doutrina e jurisprudência, vide sua relevância. Para tal análise utilizou-se o estudo bibliográfico e documental, que numa abordagem qualitativa nos levam a reflexão acerca do tema em voga.
Palavras-chave: Multiparentalidade. Herança. Sucessão Legítima. Sucessão Testamentária.
Abstract: This article aims to analyze the possibility of acquiring the inheritance of the legitimate and testamentary part in cases of multiparenthood, as it deals with various constitutional principles inherent to the human person, given its extreme indispensability by the possible holders of the inheritance right, from the perspective of federal regulations, doctrine, jurisprudence, as well as the Federal Constitution. Since the Civil Code of 1916, doctrine and jurisprudence have sought to avoid injustices in the recognition of the affectionate child in multiparental relationships, and the recognition of their dependence on fathers/mothers, and their property rights arising from this relationship. From this, taking into account that the Federal Constitution of 1988 changed the concept of family, it is necessary to clarify that whatever the form of recognition of children, whether natural or affectionate, everyone has the same rights, including the rights of inheritance. However, as it is such a sensitive topic, it is necessary to elucidate, the understanding of the paramount importance, from the perspective of doctrine and jurisprudence, is finished, see its relevance. For this analysis, bibliographic and documental studies were used, which in a qualitative approach lead us to reflect on the topic in vogue.
Keywords: Multiparenthood. Heritage. Legitimate Succession. Testament Succession.
Sumário: Introdução. 1. Os vários modelos de núcleo familiar. 2. Conceito de socioafetividade e multiparentalidade. 3. Paternidade biológica, registral e a paternidade socioafetiva. 4. Efeitos jurídicos da multiparentalidade. 5. Parte legítima e testamentária e sua participação na herança. 6. A possibilidade de adquirir a herança na multiparentalidade. 7. Exclusão do nome do pai biológico do registro civil na multiparentalidade e seu reflexo na herança. 8. Como os tribunais superiores vêm apreciando a respeito da herança na multiparentalidade. Conclusão. Referências.
Introdução
A necessidade de estudo do escopo desse trabalho se dá pelas mudanças causadas pela evolução do instituto familiar, sendo no presente caso o da multiparentalidade no registro civil e seu reflexo na herança da parte legítima e testamentária. Isto que é discussão no ordenamento jurídico e apresenta clara necessidade de expansão do direito no que tange a aplicação desse instituto aos casos concretos, visando a devida aplicação no que tange aos direitos sucessórios em casos de multiparentalidade.
A evolução legislativa do conceito de família, deu-lhe um novo contexto, necessitando esclarecer a questão da multiparentalidade com embasamentos jurídicos que discutem a prevalência da melhor eficiência e proficuidade em assuntos concernentes ao direito de herança. Assim, frente as modificações no âmbito da família, esta sofreu alterações importantes, deixando de lado o cunho discriminatório, levando-se em conta se os herdeiros passaram a ser tratados de maneira igualitária, principalmente quando envolvidos em relações socioafetivas (DIAS, 2016).
Portanto, este artigo visa compreender este tema tão relevante, proporcionando um maior conhecimento da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial, uma vez que o aprimoramento das relações familiares exige dos acadêmicos, juristas e doutrinadores atualização constante para a preservação dos direitos emanados constitucionalmente.
1. Os vários modelos de núcleo familiar
As constantes mudanças na organização familiar, na sociedade moderna e nos relacionamentos de base emocional exigem um reexame da maneira como o direito da família e as relações parentais são interpretados. Seguindo este ponto, a CRFB de 1988 modernizou a antiga ideia de que a família deveria ser formada apenas pelo casamento e admitiu que a entidade familiar também poderá vir da união estável e da monoparentalidade, abrindo portas para a multiparentalidade dada a sua flexibilidade, além de envolver questões futuras, como, por exemplo, critérios sucessórios e alimentares (DINIZ, 2014).
Isto posto, de acordo com as necessidades da sociedade, as normas de organização estão em constante mudança. Por isso, no âmbito do direito civil, e mais especificamente no âmbito do direito da família, a evolução ocorre de acordo com o progresso cultural das pessoas. Com isto, levando-se em conta que a CRFB de 1988 mudou o conceito de família, supracita Maria Berenice Dias (2016), sobre o assunto:
A Constituição Federal de 1988, como diz Zeno Veloso, num único dispositivo, espancou séculos de hipocrisia e preconceito. Instaurou a igualdade entre homem e mulher e esgarçou o conceito de família, passando a proteger de forma igualitária todos os seus membros.
Sob a premissa dessa igualdade, o conceito de família ganhou maior abrangência, alterando, assim, a relação entre pais e filhos. Dessa forma, considera-se que o aspecto da filiação socioafetiva é reconhecido por grande parte da doutrina, destacando a importância da afetividade.
Assim sendo, com a modernização da definição de filiação e da definição de família, e com as alterações conceituais e legais, foram adicionadas imprescindíveis mudanças diante da necessidade de adaptação ao meio social, como a igualdade conferida aos homens e mulheres, tornando igualitária a proteção de ambos e se estendendo, também, aos filhos, sendo estes provenientes, ou não, do casamento.
2. Conceito de socioafetividade e multiparentalidade
Socioafetividade é uma expressão criada pela legislação brasileira, para representar a relação entre duas ou mais pessoas que se caracterizam por fortes laços afetivos e desempenham funções e cargos definidos como pais, filhos ou irmãos. O conceito de socioafetividade começou com as relações paternais, mas obviamente se estendeu à maternidade e a todos os tipos parentais.
Diante disso, a afiliação socioafetiva é causada integralmente pelo afeto em si, ou seja, a conexão emocional não é necessariamente causada por chaves genéticas, mas principalmente por chaves emocionais. Seguindo este ponto de vista, acredita-se que além da questão biológica, ser pai também é estar presente na vida do filho. Conforme explica Rodrigo da Cunha Pereira (2020, p. 389):
Filiação, paternidade, maternidade, enfim, toda a parentalidade, além de biológica pode ter também sua origem na socioafetividade, como já anunciado pela doutrina e jurisprudência, pelos princípios constitucionais e pela regra do art. 1.593 do Código Civil: O parentesco natural ou civil, conforme resulte de origem consanguínea ou outrem.
Seguindo este paradigma, a multiparentalidade segue como um conceito em evolução no sistema jurídico, sendo caracterizado como uma múltipla paternidade ou maternidade socioafetiva, havendo a admissibilidade de mais de um pai ou mãe constarem na certidão de nascimento (PEREIRA, 2020).
Desta maneira, a multiparentalidade demonstra juridicamente o que acontece de fato nos casos práticos, já que o convívio em família é subjetivo no quesito da paternidade de origem biológica em conjunto com a paternidade socioafetiva. Assim, é comum parentescos constituídos por múltiplos pais que exercem a relação de paternidade/maternidade por mais de um pai ou mãe, já que sempre existiu uma linha tênue entre padrasto/madrasta e pai/mãe socioafetiva (PEREIRA, 2020).
Portanto, com a ampliação da ideia da parentalidade socioafetiva e da multiparentalidade, não há como evitar a existência dessas relações afetivas, estas que se constituem ao longo da vida e que devem se tornar ato-fato jurídico, seja para constituição de famílias conjugais ou parentais. Assim, quebra-se o paradigma jurídico de que só é possível possuir um pai e uma mãe, pois existem pessoas que vivem esta realidade e devem usufruir de direitos e amparo à filiação, o que inclui direitos sucessórios.
3. Paternidade biológica, registral e a paternidade socioafetiva
A realidade da família evoluiu de várias maneiras, minimizando as diferenças entre o homem e a mulher, não reconhecendo a predominância da paternidade em relação a maternidade, desconstruindo a hierarquia da figura paterna da família. Desde a CRFB de 1988, a legislação brasileira não distingue entre filhos legítimos ou ilegítimos, e isso se aplica aos direitos sucessórios, possuindo estes os mesmos direitos que as crianças biológicas, sendo inaceitável qualquer distinção afiliada após o registro civil, isto inclui a paternidade socioafetiva e a possibilidade da multiparentalidade (MENDES, 2017).
A relevância da paternidade no desenvolvimento familiar deve-se ao motivo de que a família é a grande responsável pela formação educacional, pela geração de valores, e pela definição do futuro do dependente, sendo a paternidade determinante perante os efeitos pessoais e patrimoniais. Diante disso, o Conselho da Justiça Federal traz em seu enunciado n° 519 a importância dessa condição:
Enunciado n° 519: O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais.
Observando isto, o STF em 2016, reforçou que o parentesco civil obtido por meio da convivência reconhece a relação paterna no registro civil, possibilitando o efeito jurídico da paternidade que teve como origem a afetividade ou mesmo a origem biológica, levando-se em consideração a subjetividade da construção familiar decorrente da situação prática em que se encontra.
Portanto, deve-se prevalecer o melhor interesse dos sucessores, adotando-se o sistema multiparental, sem hierarquia entre a paternidade biológica ou afetiva, e assim valorizando o conceito da socioafetividade e os direitos inerentes à família, como os direitos de herança sendo de parte legítima ou testamentária.
4. Efeitos jurídicos da multiparentalidade
A questão dos múltiplos pais é alvo de muita discussão no campo do direito da família e suas decorrências jurídicas são diversas, já que é um fenômeno recorrente no núcleo familiar, mas raramente é abordado no direito brasileiro. Está presente situação conduziu a uma série de fatores que geraram inseguranças jurídicas relacionados com os efeitos da multiparentalidade, principalmente relacionados com os direitos de herança, guarda e alimentos.
Desde o Código Civil de 1916, a doutrina e a jurisprudência têm procurado evitar as injustiças no reconhecimento do filho afetivo nessas relações, envolvendo o vínculo com os pais/mães e a apuração de sua dependência perante estes, devendo usufruir de direitos advindos dessa relação (FARIAS E ROSENVALD, 2015).
O reconhecimento da herança múltipla é uma consequência da multiparentalidade, já que é um direito assegurado ao herdeiro a herança de todos os seus pais ou mães, sendo este beneficiário configurado como herdeiro necessário, como garante o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, princípio este que deve amparar todas as relações jurídicas, principalmente as familiares (FARIAS E ROSENVALD, 2015).
Além da herança, isto se aplica a guarda, instituto este que também sofre efeitos jurídicos advindos da multiparentalidade. Quando o assunto é a guarda de crianças e adolescentes deve-se sempre resguardar o seu melhor interesse, ou seja, encontrando aquele com quem este tem maior afinidade e a melhor condição para o criar. Consequentemente, os tribunais estão cada vez mais adeptos em aceitar que a guarda seja transferida para pessoas que demonstram poder oferecer mais segurança e apresentam maior afinidade para com a criança/adolescente. Diante disso, no conceito pluralista de família em que fica excluída a exclusividade biológica, no caso da tutela, fica evidenciado a necessidade dos direitos e deveres das relações afetivas, sendo imprescindível a visão de atendimento ao interesse superior da criança e do adolescente.
Seguindo este diapasão, é aplicado na multiparentalidade a obrigação de fornecer alimentos para os dependentes, pois é reconhecido a paternidade, mesmo está sendo múltipla, onde todos os pais ou mães devem cumprir com a obrigação alimentar, assim como é abordado no artigo 1.696 do Código Civil (BRASIL, 2002).
Segundo Maria Berenice Dias, assim como os padrastos e madrastas possuem a obrigação de cumprir com suas obrigações alimentares na multiparentalidade, os filhos dessas relações também possuem o dever de cuidar de seus múltiplos entes quando lhe forem convenientes, quando, por exemplo, estes ficarem idosos ou ter problemas financeiros que lhe impeçam de possuir recursos para o próprio sustento. Portanto, a multiparentalidade provoca a existência de múltiplos devedores, estes que deverão cumprir com o que lhe forem impostos pela Lei (DIAS, 2016).
Baseando-se no que foi explanado acima, o Recurso Extraordinário RE898.060 de 2016 negou provimento a um recurso, fixando o seguinte argumento para aplicação em casos como o da multiparentalidade: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais” (STF, RE 898.060, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 21/09/2016).
Portanto, os arranjos familiares concernentes aos da multiparentalidade, não devem estar carentes da proteção da Lei, pois merecem tutela jurídica para todos os fins de direito, sendo estas envolvendo, principalmente, os temas de herança, guarda e alimentos. Assim, deve-se oferecer a mais íntegra e apropriada assistência aos sujeitos envolvidos, seguindo os princípios constitucionais, como o da dignidade da pessoa humana.
5. Parte legítima e testamentária e sua participação na herança
Tratando-se de sucessão paga sobre o valor líquido de herança ou legado, esta pode ser legítima ou testamentária. Sendo que da parte legítima, a indicação dos herdeiros e a consequente partilha dos bens se dão segundo critérios fixados pelo artigo 1.786 do Código Civil de 2002, onde diz que a sucessão deve ser cumprida com base na lei ou por disposição de última vontade. Já a sucessão testamentária, o patrimônio é difundido por vontade manifestada pelo finado.
Diante disso, a sucessão é feita a título universal, pois transfere todos os bens do falecido, sejam eles: ativo, passivo, direitos e obrigações. Sendo imperioso compreender o princípio da saisine, pelo qual se trata de princípio fundamental do Direito Sucessório, em que a morte opera a imediata transferência da herança aos seus sucessores (DINIZ, 2014).
Portanto, no momento da morte, a totalidade dos bens passa, imediatamente, a pertencer aos herdeiros do falecido. Em se tratando dos herdeiros legítimos, o art. 1.829 do Código Civil traz um rol taxativo e preferencial daqueles que irão suceder, no qual são citados os descendentes, os ascendentes, o cônjuge sobrevivente e os colaterais (BRASIL, 2002).
Seguindo este diapasão, no artigo 1.845 do Código Civil traz o rol dos herdeiros necessários, onde são mencionados os descendentes, ascendentes e o cônjuge. O objetivo desta classificação é impedir que sejam expulsos apenas por desejo do falecido e criar proteção especial para certas categorias de herdeiros que estão ligadas aos herdeiros por parentesco mais próximo. Esses herdeiros necessários têm direito a metade da herança, pelo qual é chamada de legítima (BRASIL, 2002).
Portanto, a sucessão legítima decorrente do texto legal, ocorre no momento do falecimento transferindo-se imediatamente a herança para quem é legítimo de recebê-la, seguindo a ordem descrita pelo artigo 1.829 do Código Civil de 2002. Além disso, é proibido qualquer tipo de distinção entre os herdeiros que estão participando da partilha, sendo este herdeiro referente a uma relação multiparental ou não. E assim deve-se seguir o que descreve a Lei, devendo cada herdeiro receber igual porção.
6. A possibilidade de adquirir a herança na multiparentalidade
Com as transformações no setor familiar, como já abordado acima, o fenômeno da multiparentalidade surgiu trazendo novas questões extremamente relevantes e que levantam diversos questionamentos, sendo uma das principais delas a herança (GONÇALVES, 2017).
Seguindo a presente problemática, primordialmente deve-se constatar que a multiparentalidade é baseada no princípio da dignidade da pessoa humana e no princípio da afetividade, devendo-se focar em tais princípios na procura de dados para a realização da pesquisa.
Para Gonçalves (2011, p.17) o vocábulo família estende-se à volta de: “todas as pessoas ligadas por vínculo de sangue e que procedem, portanto, de um tronco ancestral em comum, bem como as unidas pela afinidade e pela adoção. Compreendendo também os cônjuges e companheiros, os parentes e os afins”.
No diapasão dessa concepção doutrinária, é possível afirmar que o instituto familiar não possui um conceito absoluto, podendo ser transformada e atualizada socialmente e culturalmente, sendo tal afirmação claramente visível ao olhar moderno e progressista. Dessa forma, é notável que este instituto enfrentou demasiadas alterações para que se adapte à presente realidade, e a assim adveio a multiparentalidade e o direito de herança a partir dela.
Para Cassettari (2017, p.254) quando se possui, de verdade, “uma filiação socioafetiva e biológica concomitante nas quais se tenha convivência e afeto, será totalmente plausível a concessão de mais de duas heranças a alguém em decorrência destes vínculos formados no decorrer da vida”.
É importante ressaltar que nas legislações nacionais, incluindo a Constituição Federal, não se distingue filhos biológicos e filhos afetivos, portanto, uma vez acolhida a multiparentalidade, todos os seus efeitos jurídicos devem ser ampliados, inclusive o direito de herança. Sendo imprescindível citar que o direito sucessório é uma das relutâncias da filiação, qualquer que seja sua origem. Seguindo isto, está expresso no artigo 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente que: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (BRASIL, 1990).
Portanto, é preciso esclarecer que seja qual for a forma de reconhecimento dos filhos, sejam eles naturais ou afetivos, todos têm os mesmos direitos, inclusive os direitos de herança. Em outras palavras, um indivíduo tem direitos de herança garantidos com base no número de pais ou mães que possuir, e o judiciário deve estar vigilante contra reivindicações advindas da multiparentalidade, e resolvê-las de forma isolada de acordo com cada caso concreto (CASSETTARI, 2017).
7. Exclusão do nome do pai biológico do registro civil na multiparentalidade e seu reflexo na herança
Atualmente, é cada vez mais frequente que os pais biológicos, que mesmo que tenham reconhecido a sua paternidade no princípio, acabam abandonando a criança logo após seu começo de vida, não lhes fazendo criar qualquer tipo de vínculo afetivo, seja no quesito sustento, educação ou amor. Entretanto, isto negligência o que é protegido em lei, mais especificadamente o que está expresso no artigo 1.634 do Código Civil, onde é imputado as obrigações dos pais perante seus filhos (BRASIL, 2002).
É basilar que os pais biológicos devem exercer sua função no poder familiar, porém, este poder pode ser extinto através da via judicial, se preencher todos as hipóteses passíveis para tal. Dessa forma, afirma Arnaldo Rizzardo que o “aspecto de maior relevância diz respeito à perda do poder familiar, que ocorre em casos de suma gravidade na infringência dos deveres paternais” (RIZZARDO, 2009).
Como disposto no artigo 1.630 do Código Civil, o poder familiar conferido ao pai ou a mãe poderá ser destituído, caso sejam praticados atos contrários à moral e aos bons costumes. No artigo 1.638 do Código Civil, é expresso as hipóteses que podem ocasionar a destituição do poder familiar:
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
Uma das formas em que se pode configurar abandono é a negligência no pagamento de pensão alimentícia, que além de ser configurado como crime, pode ensejar na destituição do poder familiar do pai biológico. Porém, a questão é mais complicada do que parece, pois a destituição familiar é uma medida muito extrema, e não pode ser deferida em juízo por apenas este motivo, pois atinge vários direitos imprescindíveis, como o direito de personalidade e os direitos sucessórios do herdeiro, ou seja, não é tão simples excluir o nome do genitor negligente dos documentos do infante (RIZZARDO, 2009).
Entretanto, em casos que o pai biológico seja ausente e existir um pai ou pais afetivos, como em casos de multiparentalidade, a genitora do menor poderá ingressar com ação judicial pleiteando a destituição do poder familiar do pai biológico e a adoção no tocante aos pais afetivos. E a partir daí, poderá ser retirado o nome do pai biológico e, consequentemente, o herdeiro estará se abdicando da herança que iria receber em nome deste, usufruindo deste direito apenas para os que estiverem nos documentos após a retificação (RIZZARDO, 2009).
Existindo provas robustas nos autos, e a devida participação do Ministério da Justiça caso envolva menor, o juiz poderá realizar a destituição do poder familiar e conceder ao pai afetivo a adoção do menor, que terá seu sobrenome, e será enquadrado como seu herdeiro legítimo.
Cumpre esclarecer que, atualmente é possível constar os nomes dos pais biológicos e pais afetivos, ao mesmo tempo, nos documentos registrais. Diante disso, em 2017, o Provimento nº 63 do Conselho Nacional da Magistratura, tratou sobre a paternidade afetiva e o novo modelo de certidão de nascimento, provendo a aplicação da paternidade socioafetiva no registro civil, sem que haja necessidade de requerer ao Poder Judiciário (PROVIMENTO Nº 63 de 14/11/2017).
Portanto, o Direito tem acompanhado, mesmo que de maneira lenta, a evolução da sociedade, procurando cada dia mais se modernizar para se adequar a vida dos cidadãos, ainda mais quando o assunto envolve o Direito de Família.
8. Como os tribunais superiores vêm apreciando a respeito da herança na multiparentalidade
É cediço que a possibilidade de adquirir a herança da parte legítima e testamentária é um tema controverso na multiparentalidade, pois envolve a afetividade e esta afetividade necessita ser provada, em um nível que o juiz aprove que aquela relação multiparental é digna do direito hereditário, este que afeta o direito de possíveis herdeiros. Desse modo, há os que sustentam que a herança sempre deverá ser compartilhada com herdeiros da relação socioafetiva, e os que defendem uma maior proteção dos herdeiros com relação sanguínea.
Nesse diapasão, é possível citar algumas decisões jurisprudenciais acerca do tema apresentado até agora. O Agravo de Instrumento a seguir descreve a posição adotada em 2017, no Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJ-SC, segue a decisão:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUCESSÕES E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE POST MORTEM C/C PETIÇÃO DE HERANÇA. - LIMINAR DEFERIDA NA ORIGEM. RECURSO DA MÃE BIOLÓGICA. VÍNCULO SOCIOAFETIVO. POSSIBILIDADE. MULTIPARENTALIDADE. PRECEDENTE DO STF. TUTELA DE URGÊNCIA. REQUISITOS. PREENCHIMENTO. RESERVA DE QUINHÃO. CABIMENTO. - "Havendo fortes indícios da paternidade, impõe-se o deferimento de tutela de urgência para assegurar ao autor a reserva de parte dos bens deixados por seu indigitado genitor, na proporção do quinhão a que eventualmente terá direito". (TJ-SC - AI: 40164911520168240000 Joinville 4016491-15.2016.8.24.0000, Relator: Henry Petry Junior, Data de Julgamento: 30/05/2017, Quinta Câmara de Direito Civil)
Malgrado, segue uma apelação cível em que, com bastante relevância para o estudo do tema, nega provimento a herança advinda de uma relação baseada na multiparentalidade:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DECLARAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM C/C PETIÇÃO DE HERANÇA. AUSÊNCIA DE PERÍCIA GENÉTICA. AUSÊNCIA DE PROVAS ROBUSTAS E FIRMES ACERCA DA VONTADE DE RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO SÓCIOAFETIVA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO MANTIDA. I- Não há que se falar em reconhecimento de paternidade biológica quando a parte autora não se desincumbir do ônus processual que a ela recai, nos termos do art. 373, I, do CPC, já que ausente qualquer documentação que prova, minimamente, a relação entre sua genitora biológica e o investigado. Além disso, ao renunciar ao exame de DNA ante os elevados custos da exumação do cadáver, o autor/apelante não demonstrou ter buscado a alternativa de realizar a perícia genética com algum outro parente de primeiro grau do de cujus, uma vez que não deixou filhos conhecidos. II - A doutrina, com fundamento no CC 1.593, abriu as portas de nosso ordenamento jurídico para o chamado parentesco socioafetivo, fundado na posse do estado de filho, que, nas palavras de Luiz Edson Fachin, "se revela tanto na sua manifestação perante o grupo social, como, especialmente, na esfera psicológica e afetiva dos sujeitos." III- Em relação ao reconhecimento post mortem do ascendente socioafetivo, muito embora a lei permita tal possibilidade, por se tratar de questão que demanda prova substancial da intenção das partes, de cunho subjetivo, tais casos exigem cautela redobrada, pois não se pode olvidar que o acolhimento da pretensão afetará diretamente a esfera dos direitos de personalidade do de cujus e ainda trará repercussões aos demais membros da família, notadamente aos herdeiros. IV- No presente caso, não há um conjunto probatório robusto e firme apto a demonstrar que o reconhecimento espontâneo da relação de filiação só não ocorreu por razões alheias à vontade do suposto pai, ao contrário, sua omissão em não beneficiar o suposto único filho em seu testamento, deixando todos seus bens para os sobrinhos, demonstra com clareza solar, que este não tinha a vontade/intenção de reconhecer a paternidade em relação ao requerente. V- Ausentes os requisitos para a configuração da paternidade socioafetiva, visando salvaguardar os direitos da personalidade, a improcedência do pedido é medida que deve ser mantida. RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDO E DESPROVIDO. (STJ - AREsp: 1832852 GO 2021/0045034-3, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJ 24/06/2021)
Porém, ao contrário do desprovimento ocorrido no recurso acima, é interessante observar como os detalhes da seguinte apelação são favoráveis ao recebimento da herança, por parte do herdeiro socioafetivo:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM CUMULADA COM ANULAÇÃO DE ASSENTAMENTO DE REGISTRO CIVIL E PETIÇÃO DE HERANÇA. MANTIDA A SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. O reconhecimento da parentalidade socioafetiva, salvo situações excepcionais, deve valer, de regra, para o efeito de preservar uma filiação juridicamente já constituída voluntariamente, pelo registro (que define, no plano jurídico, a existência do laço, consoante o disposto no art. 1.603 do Código Civil), não se prestando para o fito de constituí-la de modo forçado; 2. O caso dos autos, porém, diante da eloquência da provas produzidas, configura exceção, possibilitando o reconhecimento da parentalidade socioafetiva post mortem. Isso porque a certidão de batismo e o convite de casamento da recorrida, nos quais os recorrentes constaram como pais, em conjunto com a prova oral colhida, demonstram a configuração da inequívoca posse do estado de filho; 3. Uma vez reconhecido e estabelecido o vínculo jurídico entre pai/mãe e filha, com a declaração do estado de filiação, incidem todos os efeitos que advém de tal relação, de forma retroativa (ex tunc). Portanto, por via de consequência, consoante constou na sentença, deve ser formalizada a averbação no registro civil da filiação, ainda que isso importe em situação de multiparentalidade - conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal no RE 898060/SC - bem como reconhecido o direito da apelada à herança.\nNEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (TJ-RS - AC: 50001092420138210062 RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Data de Julgamento: 08/04/2021, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: 09/04/2021)
Em vista disso, restam nítidas as hipóteses em que a possibilidade de adquirir a herança da parte legítima e testamentária na multiparentalidade é admitida, observando sob a ótica da jurisprudência, vê-se lastro de legalidade no recebimento deste direito tão imprescindível, desde que seja realizada todas as provas de laços afetivos, devendo ser comprovado de diversas maneiras.
Logo, percebe-se que não se deve realizar a petição da herança sem que haja provas suficientes para tal. Já que é um direito extremamente sensível, que afeta não só ao herdeiro socioafetivo, mas também todos os outros que estão em volta da partilha do inventário.
Desse modo, é possível perceber que tanto a doutrina quanto a jurisprudência, discutem o recebimento da herança em casos como o da multiparentalidade, seguindo como base para sua existência a afetividade e a presença de um laço familiar concreto, podendo ser relativo quanto a possibilidade do recebimento do quinhão hereditário.
Destarte, com tais conclusões e fundamentos, se fazem necessários elucidar, finda-se a compreensão da suma importância quando o tema é herança, pois esta é regida por diversos princípios e garantias constitucionais inerentes à pessoa humana.
Conclusão
Em suma, a necessidade indagada por este trabalho se dá pelas mudanças no instituto familiar, que se modernizou e, por isso, passou por diversas mudanças. Vale ressaltar que hoje, a composição da família é composta principalmente pelo lado afetivo, que é gerada por uma convivência harmoniosa, baseada no respeito e na união.
Em consideração a isso, existem vários posicionamentos referentes à concessão de direitos de herança, advindos de vínculos biológicos ou socioemocionais a indivíduos com mais de dois pais ou duas mães. Diante desta pesquisa, resta concluso que o herdeiro em uma relação multiparental tem direito as duas heranças. Tendo em vista a análise doutrinária e jurisprudencial, verifica-se que a possibilidade de aplicação de todas as regras do direito das sucessões na relação multiparental é reconhecida no ordenamento jurídico nacional.
Nessa seara, se a paternidade múltipla for reconhecida, todos os seus efeitos jurídicos devem ser ampliados, incluindo os direitos de herança aos herdeiros. Portanto, o direito de um indivíduo à herança é garantido com base no número de pais ou mães que ele ou ela tem, e o judiciário só deve estar vigilante contra reivindicações feitas exclusivamente para fins de herança e determiná-las examinando cada caso concreto.
Destarte, resta cabível que é necessário que a lei acompanhe as mudanças nos comportamentos sociais e seus reflexos nas relações familiares, e o judiciário não pode ignorar os obstáculos no reconhecimento das relações familiares. Estas que são relações baseadas no sentimento e no compromisso mútuo, apresentando todas as características estabelecidas pela Constituição Federal de 1988.
Referências
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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 5: direito de família. 29. ed.- São Paulo: Saraiva, 2014.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARDEIRO, Jakeline de Sousa. A multiparentalidade e a possibilidade de adquirir a herança da parte legítima e testamentária Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 nov 2021, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57450/a-multiparentalidade-e-a-possibilidade-de-adquirir-a-herana-da-parte-legtima-e-testamentria. Acesso em: 25 nov 2024.
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