AGNELO ROCHA NOGUEIRA SOARES[1]
(orientador)
RESUMO: No segundo semestre do ano de 2020, foi apresentado pelo Governo Federal a proposta de emenda à constituição número 32, com o objetivo de promover uma reforma no serviço público brasileiro, sob o fundamento de que este tem se tornado caro, ineficiente e obsoleto. Apesar de existirem muitas alterações no bojo da reforma, algumas delas ganharam destaque, quais sejam restrições à estabilidade dos servidores, inovações no modelo de terceirização e possibilidade de contratação irrestrita de servidores temporários. O destaque a essas mudanças se deve aos riscos que elas podem representar para a garantia de princípios consagrados no ordenamento jurídico, que visam a proteção à imparcialidade, impessoalidade, e eficiência da prestação do serviço público, facilitando a criação de brechas e uma consequente usurpação da coisa pública. Ademais, o projeto não inclui em seu público alvo os membros de poder do serviço público, como magistrados e parlamentares que possuem salários e garantias proporcionalmente maiores aos demais, tornando seu objetivo questionável. O presente artigo pretende avaliar através da revisão bibliográfica de doutrinas, artigos científicos, e entendimentos jurisprudenciais, possíveis consequências da instituição dessas alterações para a dinâmica do serviço público brasileiro, bem como implicações jurídicas da restrição de garantias constitucionais.
Palavras-chave: Projeto de emenda constitucional. Direito Administrativo. Serviço Público.
ABSTRACT: In the second half of 2020, the Federal Government presented a proposal to amend constitution number 32, with the aim of promoting a reform in the Brazilian public service, on the grounds that it has become expensive, inefficient and obsolete. Although there are many changes within the scope of the reform, some of them have gained prominence, such as any restrictions to the stability of servers, innovations in the outsourcing model and the possibility of unrestricted hiring of specific servers. The emphasis on these changes is due to the risks that they can represent in guaranteeing principles enshrined in the legal system, which aim to protect impartiality, impersonality, and efficiency in the provision of public service, facilitating the creation of loopholes and a consequent usurpation of the thing public. Furthermore, the bill does not include in its target audience members of power in the public service, such as magistrates and parliamentarians who have remuneration and guarantees proportionally higher than the others, making its objective questionable. This article intends to evaluate, through a bibliographic review of doctrines, scientific articles and jurisprudential understandings, the possible consequences of the institution of these changes for the dynamics of the Brazilian public service, as well as a specific legal restriction on constitutional guarantees.
Keywords: Constitutional amendment project. Administrative law. Public service.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. MODELOS ADMINISTRATIVOS DO SERVIÇO PÚBLICO NO BRASIL; 3. PRINCIPAIS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA PEC N. 32/2020; 3.1 Relativização da garantia à estabilidade dos servidores; 3.2 Possibilidade de contratação ilimitada de temporários; 3.3 Instrumentos de Cooperação (terceirização do Serviço Público); 4. A REFORMA COMO POSSÍVEL RETROCESSO PARA O SERVIÇO PÚBLICO; CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
A proposta de Emenda à Constituição n. 32, enviada ao Congresso Nacional no segundo semestre de 2020, pelo Ministro da Economia, altera disposições constitucionais sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa, e propõe atribuir maior eficiência, eficácia e efetividade à atuação Estatal, tornando o cidadão um “cliente” e adotando medidas comuns a modelos de gestão do setor privado.
Para atingir tais objetivos são realizadas propostas de alterações que podem representar reflexos significativos para a dinâmica do modelo de gestão administrativa, seja em torno da finalidade de proposição, como também em riscos para a proteção de princípios constitucionais basilares.
Apesar de ainda pendente de aprovação pelo Congresso Nacional, as alterações propostas, já foram suficientes para incutir em parte dos cidadãos brasileiros, dúvidas acerca da eficácia da reforma, tendo em vista que ao considerar a redução de gastos, e e busca de maior efetividade atendo-se à aspectos econômicos, deixou de ponderar nas implicações institucionais, bem como de apresentar dados efetivos justificadores do seu liâme de alterações, ou mesmo projeções futuras de sua vigência.
Uma das importantes alterações propostas é a extinção da estabilidade para uma classe de servidores, no entanto essa garantia foi instituída como mecanismo de proteção aos servidores públicos, evitando práticas patrimonialistas que se baseiam na usurpação da coisa pública para atender a interesses privados, além disso, tendo como objetivo supremo que o serviço público atinja suas finalidades através da continuidade da prestação de serviço, que não deve ser prejudicada pela alteração de seus gestores.
Há ainda muitas outras propostas de alterações que podem trazer significativas consequências para o serviço público, como por exemplo, a possibilidade de realização de processo seletivo para contratação de servidores temporários de modo irrestrito, bem como a terceirização do serviço público através de instrumentos de cooperação.
Por conseguinte, vislumbra-se que apesar da referida reforma ter como objetivo principal a redução e otimização de gastos, deixou de incluir em seu público-alvo parte dos servidores públicos efetivos, quais sejam àqueles intitulados membros do poder, como por exemplo, magistrados, parlamentares, e promotores de justiça, tornando controversos seus propósitos, visto que proporcionalmente, são estes os detentores dos maiores proventos, auxílios e garantias.
No entanto, importante frisar que todo esse texto ainda será submetido à votação pelo Congresso Nacional, podendo sofrer diversas alterações tendo em vista estar em análise mudanças de grande importância para o Estado Democrático de Direito. Portanto é imperioso avaliar consequências para o modelo estrutural brasileiro, bem como para a garantia de princípios fundamentais da República, e por tratar-se de legislação que ainda está em discussão tem-se o momento ideal para debates e ponderações, sendo este o objetivo do presente trabalho.
Neste contexto o presente estudo se propõe a avaliar possíveis consequências da instituição dessas alterações para a dinâmica do serviço público brasileiro, bem como implicações jurídicas da restrição de garantias constitucionais. Para tanto, será desenvolvida uma pesquisa bibliográfica através da revisão de doutrinas, artigos científicos, e entendimentos jurisprudenciais.
O debate constante acerca do serviço público brasileiro, tem imputado a ele uma presteza de má qualidade, bem como ineficiência aos seus servidores. A reforma, apesar de não apresentar justificativas que elucidem essa pouca eficiência, apresenta algumas alterações que parecem representar a quais causas se atribui esse desempenho obsoleto da administração.
Conforme a Constituição Federal constitui-se objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a garantia do desenvolvimento nacional (art. 3, III, CF/88), faz-se necessário portanto, avaliar com cautela reformas que alterem a ordem político-econômica, ponderando em suas origens e consequências, pois se tornam capazes de prejudicar a evolução do sistema de administração e de importantes conquistas obtidas ao longo dos anos.
Para melhor análise da dinâmica administrativa do Estado brasileiro é necessário contextualizar as diversas transformações ocorridas, em termos de conceituação dos modelos administrativos. Ainda que seja clarividente tratar-se de discussão que ultrapassa fronteiras nacionais, limitar-se-á de forma sucinta, e tão somente ao ordenamento pátrio.
Em acordo com a preleção de Souza e Mello (2013), considerando o aspecto histórico tem-se na república brasileira a adoção de três modelos administrativos, o patrimonialista, o burocrático, e o gerencial.
O sistema patrimonialista é mais frequentemente reconhecido em Estados absolutistas, onde não há uma clara separação entre o monarca e o próprio Estado, tornando-se aquele detentor de uma vontade soberana, e até mesmo “divina”, sendo associado por diversos autores a República velha brasileira, e ao Brasil arcaico.
No entanto, há dentro desse modelo diversos outros aspectos, conforme mencionado por Selma Chorro e Mônica Seixas:
A administração patrimonialista é típica dos Estados que antecedem o avanço do capitalismo industrial, em suas diferentes variantes e fenômenos complementares, entre os quais o clientelismo político tem sido objeto de análise também de outros autores com o intuito de explicar o insucesso nas reformas administrativas no Brasil, pois o Estado patrimonialista é a cultura de apropriação daquilo que é público pelo privado. (SOUZA; MELLO; 2013; p.5)
Taís Ferreira da Silva explana de forma concisa sobre como se dá a atividade pública neste modelo, nas seguintes linhas:
A Administração Patrimonialista propiciava uma confusão entre os cargos públicos e o próprio grau de parentesco e afinidades entre os nobres e outros participantes do governo, toda a disputa política girava em torno da possibilidade de posse de uma grande riqueza, essa que era representada pelo Estado patrimonial, uma continuidade do modelo de administração utilizado pela ditadura ate o surgimento da burocracia. (SILVA, 2015, p. 10)
Em termos históricos as práticas patrimonialistas acontecem no Brasil desde sua transformação em colônia e com a instituição da figura do imperador, sendo observado em configurações diferentes como o coronelismo, e o clientelismo. Mesmo com múltiplas transformações decorrentes das evoluções da República, e até mesmo a promulgação da Constituição democrática de 1988 tais práticas permanecem nos dias de hoje e se adequam aos interesses daqueles que estão no poder.
É portanto, em suma, um modelo em que a administração da coisa pública atua em prol de interesses privados, sujeitando-se ao mando e desmando de seus gestores, possuindo desdobramentos ao longo da história, como por exemplo sua forma institucionalizada mencionada por Graham S. B. Campelo:
Outra espécie que também se identifica e, dessa forma, mais cristalinamente, o que chamaremos de patrimonialismo institucional, ou institucionalizado, ou seja, as práticas patrimonialistas saem do campo do imaginário, ou de uma subcultura, para integrar as instituições, existente de forma pública, nas normas vigentes no País, misturando-se nas instituições, que no modelo constitucional atual, dizem-se democráticas, sendo, portanto, possível ver, de forma explícita e pública, resquícios de patrimonialismo nas instituições estatais atuais. (CAMPELO, 2010, p.4.)
Ao citar diversos exemplos do patrimonialismo institucional, Campelo (2010, p.9) aponta o procedimento do chamado “quinto constitucional”, presente na Constituição democrática de 1988, em que os órgãos de representação do Ministério Público e da OAB podem indicar nomes para comporem um quinto dos Tribunais federais e estaduais. Essa é a redação do art. 94, da Constituição Federal:
Art. 94. Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros, do Ministério Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes.
Parágrafo único. Recebidas as indicações, o tribunal formará lista tríplice, enviando-a ao Poder Executivo, que, nos vinte dias subsequentes, escolherá um de seus integrantes para nomeação. (BRASIL,1988)
Neste caso temos a presença do acima referido patrimonialismo institucionalizado que não foi extirpado da república, mas se encontra presente de forma sutil, possibilitando que hajam indicações que embora exijam critérios objetivos como a necessidade de desenvolvimento da profissão há pelo menos dez anos, são sumariamente dominados por critérios demasiadamente subjetivos.
Em resposta à corrupção e ao nepotismo característicos do sistema patrimonialista nasce o modelo burocrático no contexto de acontecimentos históricos como a Revolução Francesa e a Revolução Industrial (CAMPELO, 2010, p. 10). Neste modelo buscava-se a superação dos problemas encontrados no anterior, tendo como fundamento a impessoalidade e a formalidade.
Para um melhor entendimento dessa dinâmica na história, colacionamos o pensamento de BRESSER-PEREIRA (2009):
O que se pregava, a partir da Revolução de 1930 e com a implantação do modelo burocrático weberiano, era a racionalização da administração pública, em busca da eficiência. Na época, a reforma do serviço público e o processo de burocratização ou racionalização, como fenômeno histórico derivado da natureza superior da administração pública burocrática em relação à administração patrimonial, eram a melhor maneira de aumentar a eficiência, eliminar o nepotismo e reduzir a corrupção (apud Campobiango, 2012, p.6)
De acordo com Graham Campelo, o início do gerencialismo no Brasil pode ser considerado desde o Dec. Lei n. 200/67, com a descentralização da Administração Pública, através da criação de entes estatais, como as autarquias, fundações e empresas estatais, com a preconização da Administração indireta. (CAMPELO, 2010, p. 121)
Para Leonardo Secchi (2009, p.8) “a administração pública gerencial ou nova gestão pública (new public management) é um modelo normativo pós-burocrático para a estruturação e a gestão da administração pública baseado em valores de eficiência, eficácia e competitividade.”
Tal modelo responde à morosidade do anterior burocrático, buscando privilegiar a eficácia através da autonomia funcional, reduzindo níveis hierárquicos e prezando por uma administração descentralizada.
A conceituação desses modelos é importante para que seja perceptível os ideários reais que guiam a proposta de emenda à Constituição n. 32, que embora se intitule como gerencial, carrega também traços claros da herança patrimonialista, como por exemplo a redução da autonomia funcional de servidores públicos, seja pela mitigação da garantia de estabilidade, seja pela utilização de contratos temporários de forma irrestrita.
A reforma é firmada na premissa básica de redução de gastos estatais e aumento da efetividade do serviço público, conforme se lê na exposição de motivos que “apesar de contar com uma força de trabalho profissional e altamente qualificada, a percepção do cidadão, corroborada por indicadores diversos, é a de que o Estado custa muito, mas entrega pouco.” (BRASIL, 2020)
O fundamento estabelecido na exposição de motivos, de acordo com Bortolini (2020, p.3), gravita em torno do ideário neoliberal de que os servidores públicos seriam os responsáveis pela maior parte dos gastos, não entregando o suficiente como contraprestação, além de serem titulares de garantias que limitariam o Estado e dificultariam a gestão.
3.1 Relativização da garantia da estabilidade
Uma das principais alterações, que tem causado muitos questionamentos, é a proposta de nova redação do art. 41, da Constituição Federal, restringindo a garantia de estabilidade apenas para os servidores que ocupem cargos típicos de estado, conforme se lê do texto da emenda:
Adquire a estabilidade o servidor que, após o término do vínculo de experiência, permanecer por um ano em efetivo exercício em cargo típico de Estado, com desempenho satisfatório, na forma da lei.
§1º O servidor público estável ocupante de cargo típico de Estado só perderá o cargo: em razão de decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado; III - mediante avaliação periódica de desempenho, na forma da lei, assegurada a ampla defesa.
§ 2º Na hipótese de invalidação por sentença judicial da demissão do servidor estável, ele será reintegrado, independentemente da existência de vaga. (BRASIL,1988, Art.41)
Historicamente, de acordo com Cynara Monteiro Mariano e Francisco Arlem Queiroz (2020, p.7) embora houvesse vestígios de garantia semelhante a estabilidade já na primeira constituição brasileira, o instituto só teria sido citado na Constituição de 1934, em seu art. 169, que asseverava condições para que o funcionário público fosse destituído do cargo, e somente através de sentença judiciária, ou processo administrativo, assegurado a plena defesa.
A nova redação instituiria classes diferentes de servidores, ao todo seriam possíveis cinco novos vínculos, dentre estes haveria as carreiras típicas de estado, e as que não seriam típicas, estas últimas não estão elencadas no art. 41, e, portanto não usufruiriam da garantia da estabilidade.
Essa nova possibilidade causa estranheza, pois para servidores de carreiras não típicas não haveria proteção tal como atualmente, tendo em vista que a estabilidade, conforme Mariano e Queiroz (2020, p.25) “é a garantia de que o servidor protegerá a res publica e velará pelo Estado de Direito, não direcionando sua atuação para atender a interesses dos dirigentes de plantão”.
Importante entender o conceito de estabilidade no direito brasileiro, para a doutrina nacional, conforme magistério de Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2018, p.813):
Tradicionalmente, a estabilidade, no direito brasileiro, tem sido entendida como a garantia de permanência no serviço público assegurada, após dois anos de exercício, ao servidor nomeado por concurso, que somente pode perder o cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado ou mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa. (PIETRO, 2018, p. 813)
E ainda conforme os ensinamentos de Meirelles (2000, p. 447) a estabilidade é garantia constitucional de permanecer no serviço público, quando este após nomeado para cargo de provimento efetivo, em razão de concurso público, cumpra o estágio probatório de três anos, depois de ser avaliado conforme seu desempenho, por comissão constituída com tal finalidade.
Por fim, segundo lições de Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p.302), estabilidade:
É o direito de não ser demitido do serviço público, salvo se incidir em falta funcional grave, apurada em processo judicial ou processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa ou em consequência de avaliação periódica de desempenho, igualmente assegurada ampla defesa. (MELLO, 2010, p. 302)
Conforme Peci (2020, p. 2), essa hipótese engloba o prazo e o modo de aquisição da garantia, além de instituir a ideia de que os cargos públicos não precisam possuir o mesmo vínculo, ou mesmo níveis de estabilidade, abrindo possibilidade de retrocessos históricos.
No entanto, em 23 de setembro de 2021, a reforma chega a Comissão Especial do Congresso sofrendo algumas alterações, e dando lugar a um texto substitutivo elaborado pelo relator, que retira as alterações propostas ao art. 41, e mantém a redação do caput do modo como está na Constituição Federal, aniquilando assim a possibilidade de relativização de estabilidade por classe de servidores.
Tal alteração embora otimista para a proteção da estabilidade funcional, além de pendente de aprovação pelo crivo do colegiado do Congresso Nacional, bem como sanção e veto da presidência da República, ainda não é suficiente para impedir a precarização do serviço público, que tende a acontecer em razão das outras duas alterações explanadas a seguir.
3.2 Possibilidade de contratação ilimitada de temporários
Inicialmente cumpre esclarecer a conceituação relativa ao contrato temporário, conforme a melhor doutrina são aqueles contratos por tempo determinado e para atender necessidade excepcional de interesse público, sendo que estes exercem função, mas não possuem vínculos a cargo ou emprego público. (DI PIETRO, 2017,p. 734)
Essa conceituação provém do texto expresso da Constituição Federal, disposto no art. 37, inciso IX, segundo o qual “ a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”. (BRASIL, 1988)
Tal redação seria alterada pela Pec n. 32/2020, inclusive tal modificação foi mantida pelo relatório, aprovado pela comissão especial do Congresso dando uma nova redação ao artigo 37, inciso IX, que disporia:
IX - a lei disciplinará a contratação por tempo determinado em regime de direito administrativo para atender necessidades temporárias, as quais, se relacionadas a atividades permanentes, deverão revestir-se de natureza estritamente transitória, observadas as normas gerais de que trata o inciso XXXI do art. 22.(BRASIL, 2021, p.2)
Portanto, a alteração proposta pela reforma aniquilaria a necessidade do requisito de excepcionalidade da contratação temporária, criando a possibilidade de que mesmo para atividades permanentes haja uma contratação provisória.
Atualmente os contratos temporários excepcionais são regidos pela Lei 8.745/1993, que dispõe em seu artigo 3° que “o recrutamento do pessoal a ser contratado, nos termos desta Lei, será feito mediante processo seletivo simplificado sujeito a ampla divulgação, inclusive através do Diário Oficial da União, prescindindo de concurso público.” (BRASIL, 1993)
A contratação temporária nestes termos abre a possibilidade de contratação massiva de servidores temporários, invertendo a dinâmica do serviço público atual, sendo que a regra para o ingresso nos quadros públicos seria através de processo seletivo simplificado. A bem da verdade tais contratações em alguns casos prescindem do próprio processo seletivo.
Ainda levando em conta que tal lei destina-se a contratação para fins excepcionais não se aplicaria às novas contratações temporárias, que conforme a redação do novo artigo, acima mencionado, serão competência privativa da União. No entanto, frisa-se que enquanto está quedar-se inerte, havendo lei complementar, os Estados poderão legislar.
A contratação temporária, no modo atual, deve atender a uma necessidade de fato temporária e excepcional, de modo que quando a Administração Pública se utiliza desses contratos para suprir necessidades por tempo indeterminado, e gerar contratos permanentes incorre em ilícito.
A lógica da inserção dessa modificação é consequência de uma mesma tentativa: reduzir a autonomia dos servidores, pois contratados temporários não possuem estabilidade, muito pelo contrário, a regra é que os contratos acabem, prejudicando um princípio basilar que é a prestação contínua do serviço público, gerando uma rotatividade totalmente prejudicial para a essencialidade do serviço.
Além disso, abrem-se as portas para vínculos precários que concedem maior autonomia a gestores públicos, criando a possibilidade de contratações escusas, baseadas na subjetividade, que não possuem requisitos objetivos e análise impessoal de requisitos de admissão, que embora possa existir, não será exigível.
A consequência automática seria a redução da promoção de seleções admissionais através de concurso público, e até mesmo a extinção dessa possibilidade para diversas carreiras, principalmente às chamadas “carreiras de entrada”.
No âmbito municipal tais contratações já acontecem e são exemplos claros do patrimonialismo institucionalizado já mencionado, afetando em sua maior proporção as áreas da saúde e educação, responsáveis por 70% dos desvios federais nas cidades brasileiras, configura-se, portanto, uma verdadeira institucionalização da corrupção. (AFONSO; BURGARELLI, 2016)
Os ideários da reforma ainda em trâmite já puderam ser vislumbrados no âmbito do estado do Tocantins, em que o Tribunal de justiça abriu processo seletivo para o provimento dos cargos de analista e técnicos judiciários. Mesmo mencionando que as vagas são de caráter excepcional, o lapso decorrido desde o último certame (2008) é suficiente para revelar seu real fundamento, qual seja, a precarização do serviço público. De acordo com o site oficial o prazo de validade é de 24 meses prorrogável por igual período. (LEÃO, 2021)
3.3 Instrumentos de Cooperação (terceirização do Serviço Público)
O texto da emenda traz um novo dispositivo, qual seja, o art. 37-A, que propõe uma verdadeira terceirização irrestrita do serviço público, inclusive de servidores, excetuando apenas aqueles de carreira típica de estado, conforme se lê:
Art. 37-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão, na forma da lei, firmar instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira. (BRASIL, 2021)
Tal dispositivo não existe no texto constitucional atual e permite a celebração de instrumentos de cooperação entre a administração pública e órgãos ou entidades públicos e privados, para que estes executem serviços públicos utilizando-se da estrutura física e também humana, inclusive sem contrapartida financeira, ou seja, abre-se a possibilidade de verdadeira privatização do serviço público, em que particulares podem prestar serviço público.
A terceirização do serviço público, conforme Graça Druck et al:
É um fenômeno velho e novo ao mesmo tempo, e a novidade está no lugar central que ocupa no capitalismo flexível e no seu crescimento e generalização, constituindo uma verdadeira epidemia sem controle, mesmo que, no caso brasileiro, exista, no plano da regulação, o Enunciado 331,6 que proíbe a terceirização na atividade-fim das empresas ou instituições públicas. Entretanto, com a aprovação da Lei no 13.429, em março de 2017, ficou estabelecida a terceirização sem limites, isto é, a liberalização para todas as atividades e segmentos, derrubando por terra o argumento do empresariado e de defensores da terceirização de que ela é necessária, por conta da imprescindível especialização ou da focalização das atividades da empresa. (DRUCK, et al; 2018; p. 3)
Historicamente a terceirização do serviço público já foi alvo de diversos debates, quanto a possibilidade de se dá em atividades meio ou atividades fins, sendo que o problema maior apresentado pela proposta não é de uma terceirização comum, mas da possibilidade de que serviços públicos de quaisquer áreas sejam prestados por particulares.
Conforme artigo 37- A § 1 do texto da aludida proposta “lei federal disporá sobre as normas gerais para a regulamentação dos instrumentos de cooperação a que se refere o caput”. O § 2 do mesmo dispositivo prevê que na ausência desta “os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão a competência legislativa plena sobre a matéria”. (BRASIL, 2021, p. 5)
Neste caso, se rememorarmos a contratação temporária, esta seria executada por uma empresa privada que celebrou um instrumento de cooperação com a Administração Pública, e a única exceção são as carreiras típicas de Estado, conforme o § 4º do aludido dispositivo legal.
Tais carreiras são definidas pelo texto da proposta no artigo 247, como:
Art. 247. A lei prevista no § 7º do art. 169 tratará de forma diferenciada servidores públicos investidos em cargo exclusivo de Estado, assim compreendidos os que exerçam diretamente atividades finalísticas afetas à segurança pública, à manutenção da ordem tributária e financeira, à regulação, à fiscalização, à gestão governamental, à elaboração orçamentária, ao controle, à inteligência de Estado, ao serviço exterior brasileiro, à advocacia pública, à defensoria pública e à atuação institucional do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, incluídas as exercidas pelos oficiais de justiça, e do Ministério Público. (BRASIL, 2021, p. 10)
A terceirização, como tem ocorrido no Estado brasileiro tem-se mostrado como um instrumento utilizado entre governo e iniciativa privada para possibilitar de um lado a redução brusca do funcionalismo, e de outro a venda de mão de obra de modo precário, com sucessivos casos de inadimplência de direitos trabalhistas.
Conforme Druck et al,
Trata-se da constituição e consolidação de um Estado neoliberal, que se utiliza da terceirização em suas diversas modalidades, como instrumento para pôr fim a um segmento dos trabalhadores – o funcionalismo público – que tem papel crucial para garantir o direito e o acesso aos serviços públicos necessários à sociedade, sobretudo à classe trabalhadora, impossibilitada de recorrer a esses serviços no mercado. (DRUCK, et al; 2018; p. 23)
As consequências da adoção de medidas como esta já tem sido reveladas, sendo que ao invés de gerarem essa efetividade e eficiência prometidas, acarretam ao contrário, ausência de eficiência, e ainda a criação de possibilidades para tratativas escusas e frágeis, nas quais não há fiscalização, sendo alvos constantes de investigações de corrupção. (DRUCK et al, 2018, p. 25)
4. A REFORMA COMO POSSÍVEL RETROCESSO PARA O SERVIÇO PÚBLICO
O texto apresenta uma ideia de flexibilização da estabilidade como se esta fosse garantia dispensável ao serviço público, até mesmo uma regalia, tendo em vista que alguns servidores seriam titulares, e outros não. No entanto, essa hipótese precisa ser avaliada em acordo com os processos históricos de instituição dessa garantia de forma a proteger a ideia primaz do estado de Direito, qual seja, a supremacia do interesse público.
Para corroborar esse entendimento, Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p.262), preceitua que:
A estabilidade para os concursados, após três anos de exercício, a reintegração (quando a demissão haja sido ilegal), a disponibilidade remunerada (no caso de extinção do cargo) e a peculiar aposentadoria que se lhes defere consistem em benefícios outorgados aos titulares de cargos, mas não para regalo destes e sim para propiciar, em favor do interesse público e dos administrados, uma atuação impessoal do Poder Público. (MELLO, 2010, p.262)
É nesta esfera que se vislumbra a possibilidade de retrocessos históricos, tendo em vista que ao conceder menor proteção ao servidor, abrem-se brechas para práticas do passado, como o clientelismo, em que conforme aduz Campelo (2013, p. 103) há “a troca de favores, o prevalecimento de interesses privados em detrimento do interesse público”, práticas estas que desvinculam o interesse público como basilar da atuação estatal.
Além disso, o texto apresenta controvérsias que podem ser colocadas em evidência até mesmo através de uma análise sistemática, concluindo tratar-se de uma reforma do funcionalismo público, e não da Administração, tendo em vista que mais de 74% do conteúdo dos dispositivos destina-se a regulamentação da relação de trabalho com o servidor público, no entanto tal relação engloba apenas uma parcela limitada de uma reforma administrativa. (SECCHI; FARRANHA; RODRIGUES; BERGUE; MEDEIROS, 2021, p.14)
Outra discussão que comporta análise é apontada por Judite Irineu (2020, p.12), preceituando que a reforma não abrange os “membros de poder”, como magistrados, parlamentares, promotores, tendo como justificativa apresentada pelo governo que as mudanças não podem ser propostas para estes, pois configuraria vício de iniciativa, por serem membros de outros poderes.
No entanto, há que se analisar uma desigualdade neste aspecto, tendo em vista que o fundamento da reforma é a minimização de gastos, e grande parcela destes se destina aos membros de poder. Além disso, quanto ao vício de iniciativa Fernando Álvares Correia Dias (2013, p. 9), ao pontuar os limites institucionais com gastos de pessoal, preceitua que a Constituição Federal:
Estabelece diversos dispositivos para limitar a criação ou aumento das despesas com pessoal. O art. 61, II, a, prevê a iniciativa privativa do Presidente da República para leis que disponham sobre criação de cargos ou empregos públicos ou sobre aumento de sua remuneração. Ao vedar aos parlamentares a iniciativa de leis relativas a pessoal, evita-se que representantes de categorias ou corporações atuem no sentido de atender interesses localizados. (DIAS, 2013, p. 9)
É importante ressaltar que tais alterações representam um texto provisório que ainda está em trâmite de aprovação, tendo a admissibilidade aprovada em 25 de maio de 2021 pela Comissão de Constituição e Justiça, e sofrendo três supressões, que não englobaram alteração do art. 41, concernente a flexibilização da estabilidade dos servidores.
Com seu trâmite regular esta passou pela comissão especial do Congresso Nacional onde houve a elaboração de um relatório favorável a permanência da estabilidade para todos os servidores, no entanto prejudicial à realização de concursos públicos, e ao ingresso dos servidores por este meio, como regra.
A estabilidade estaria protegida em termos de servidores públicos estatutários, mas nem sequer existiria no âmbito de contratos temporários, e terceirizados, os quais assumiriam a forma de ocorrência massiva trazendo à tona novamente a possibilidade de retrocessos, com o vislumbre do famigerado clientelismo, como já dito institucionalização da corrupção.
Para corroborar colaciona-se observações da obra de Zenildo Júnior, ao falar do clientelismo político de forma empírica afirma:
(...)Era possível se notar que o que mais frequentemente se solicitava de parte dos eleitores, nas campanhas, ou dos cidadãos nas repartições seriam “favores” que, a rigor, constituiriam direitos que lhes caberiam em razão da própria cidadania (...) representava sempre algo que sabidamente violaria explicitamente normas e regulamentos: nomeações de servidores sem concursos; cessão de bens; contratos sem licitação;(...) Não obstante é de se notar que um simples favor pleiteado e obtido, por exemplo, por um grande empresário corresponde a centenas de pequenos obséquios dirigidos aos mais pobres. Nem por isso a natureza da relação é diferente.( JUNIOR, 2018, p.14)
Essa possibilidade de extinção do concurso público em diversas carreiras configura verdadeiro retrocesso, consonante o ideário de Graça Druck:
Os concursos públicos e a estabilidade são conquistas da Constituinte de 1988, que representam um avanço para a construção de um Estado democrático e social. Os concursos são a forma mais democrática (e moderna) de ingresso na carreira pública, pois comprovam qualificação/conhecimento/capacidade de forma impessoal para o cargo, rompendo com as práticas do “coronelismo”, onde o quadro de pessoal era composto por indicação de políticos e autoridades do poder público, apadrinhamento, nepotismo, favores eleitorais, dentre outros, são valores que não respeitam as necessidades da população de contar com um profissional competente para prestar os serviços públicos. (DRUCK, 2021,p.13)
Por conseguinte, constata-se que tais propostas são resultados de um intervencionismo neoliberal, que preconiza a substituição de uma administração de direito público por uma subordinada ao direito de concorrência, alterando o modelo de gestão. (DRUCK et al, 2018, p.24)
No entanto, importante rememorar que todas as alterações propostas e aqui discutidas, para integrarem o texto constitucional, precisam de aprovação das casas do Congresso Nacional, em dois turnos, além de ser necessário que obtenha em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. (BRASIL, 1988, art. 60 §2)
As reformas estruturais fazem parte de uma configuração natural dos estados, e acontecem em decorrência de uma consequente evolução intrínseca à quaisquer formações humanas, e quanto a isso há abundantes estudos e conhecimento pacífico. A ocorrência de reformas estruturais se deu desde sempre, e é sabido que assim continuará.
Este estudo propôs-se a discutir a reforma administrativa em razão, essencialmente, do vislumbre de consequências por demais penosas para, não somente a Administração pública, mas a todos os cidadãos brasileiros, pois o objeto analisado foi o serviço público, do qual àquele é detentor, e usufrui diretamente.
A reforma foi proposta no ano de 2020, sendo que durante todo o trâmite legal, devidamente instituído pelo texto constitucional, sofreu diversas alterações, que em suma, configuraram vitórias e derrotas para o servidor público e a Administração em geral.
Todas essas modificações, como a não mitigação da estabilidade, e a extinção do vínculo trainee são decorrentes da resposta inconformista da população, que nesse momento precisa estar vigilante quanto aos direitos que possui, e a garantia da presteza de um serviço público probo, honesto e que busca a consecução de seus fins de forma contínua e impessoal.
Portanto, quanto as alterações aqui discutidas que ferem diametralmente a autonomia funcional, a prestação continuada do serviço público, o caráter impessoal das admissões, a busca por pessoal qualificado não podem prosperar, sob pena de que vivamos no contexto nacional um retrocesso histórico, que fortalecerá mazelas da política brasileira que há tantos anos lutamos contra.
Além disso são insuficientes para garantir os benefícios propostos, pois uma redução brusca de gastos funcionais só seria obtida, se realmente fosse almejada, com o atingimento dos reais responsáveis, detentores de proventos e auxílios que não se justificam, e que apesar de não fazerem parte da reforma, representam o maior percentual com gastos no funcionalismo.
É certo que o serviço público deve ser eficiente, e que seus servidores devem honrar com uma prestação de qualidade, mas tal conquista definitivamente não pode ser alcançada através desta reforma, e sim por meio de instrumentos de fato eficazes que potencializem análises objetivas e impessoais, e que não transformem o estado brasileiro em um fomentador de corrupção, do desmonte funcional, e da precarização do vínculo de seus maiores e mais importantes colaboradores.
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Bacharelanda em Direito pela Universidade de Gurupi-Unirg.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, KASSIA JORDANIA BEZERRA DOS. A PEC N. 32/2020 e a perspectiva do serviço público no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2021, 04:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57599/a-pec-n-32-2020-e-a-perspectiva-do-servio-pblico-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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