LUIZ CAETANO DE SALLES[1]
(orientador)
Resumo: O presente artigo discorre sobre a incompetência absoluta da justiça desportiva para processar e julgar ação que verse sobre relação de emprego, mesmo que se trate de atleta profissional, haja vista a competência material da justiça do trabalho para esse desiderato. Este artigo é fruto de uma pesquisa bibliográfica e documental centrada na análise da doutrina e da jurisprudência com esteio nos métodos indutivo e dedutivo.
Palavras-chave: Direito Desportivo; Justiça Desportiva; Justiça do Trabalho; Direito do Trabalho; Competência absoluta
Sumário: 1. Introdução. 2. Competências da justiça desportiva e da justiça do trabalho. 3. Conclusão. 4. Referências.
A existência da justiça desportiva pode levar à suposição de que ela tenha competência para dirimir toda e qualquer controvérsia relacionada ao desporto em geral, inclusive conflitos de interesses entre empregados da área desportiva e os seus respectivos empregadores.
Não seria absurda essa indução, mas ela não teria fundamento legal, pois a justiça desportiva é uma instituição de direito privado com competência restrita para processar e julgar conflitos de interesses relativos à disciplina e às competições desportivas. Qualquer outro conflito de interesses, ainda que envolva o desporto ou dele decorra e, dependendo do direito material objeto da lide, terá de ser deduzido na justiça estadual, na justiça federal ou na justiça do trabalho, por força das previsões expressas contidas na Constituição Federal, como se demonstrará nas linhas abaixo.
A base conceitual deste artigo – competência – é de natureza eminentemente processual e sobre ela será desenvolvida a abordagem sobre as competências da justiça desportiva e da justiça do trabalho, uma vez que o seu intento é demonstrar que elas detêm competências totalmente distintas entre si, o que é salutar para a segurança jurídica, pois afasta a possibilidade de existência de conflito de competência entre elas, reservando-se para a justiça do trabalho a competência absoluta para processar e julgar lides que que tenham origem na relação entre empregado e empregador, mesmo que o empregado seja um atleta profissional nos termos da lei.
Para atingir esse objetivo é recomendável revisar alguns detalhes do estudo sobre competência no sentido jurisdicional, o que será feito no item seguinte, ao mesmo tempo em que se demonstrará a incompetência absoluta da justiça desportiva para processar e julgar lides trabalhistas.
A definição de competência é fornecida pela doutrina, e.g., Daniel Neves (2021, p. 222) como sendo “a limitação do exercício legítimo da jurisdição” o que é dito com outras palavras por Humberto Theodoro Júnior (2015, p. 274), segundo o qual, competência é o "critério de distribuir entre os vários órgãos judiciários as atribuições relativas ao desempenho da jurisdição.”
A competência no sentido jurídico-processual pode ser absoluta ou relativa, sendo a primeira referente à matéria, pessoa ou função sobre a qual versa a lide, enquanto a competência relativa (também chamada de territorial) refere-se ao lugar (foro) onde o processo deve tramitar.
O exercício da função jurisdicional em harmonia com o due process of law tem validade se ela ocorrer dentro dos limites traçados pelo ordenamento jurídico, pois ultrapassado esse limite, caracterizada estará a incompetência, o que implicará em remessa dos autos do processo para o juízo competente, o qual poderá reformar os atos decisórios praticado pelo juízo incompetente, com fundamento na disposição contida no art. 64, §§ 3º e 4º do Código de Processo Civil.
Cabe afirmar, em consequência, que a competência é um pressuposto para o desenvolvimento válido e regular do processo. Assim, ao despachar a petição inicial de uma ação, o juiz sempre verifica, em um primeiro momento, se o órgão em que ele atua (o juízo) é competente para processar e julgar a lide deduzida nos autos do processo do caso concreto, pois “nenhum juiz detém, indiscriminadamente, o poder de conhecer e julgar todo e qualquer caso, à sua escolha ou a instâncias da parte.” (LIMA, 2013, p. 313).
A competência da justiça desportiva está gizada na Constituição Federal (CF) de 1988, em seu art. 217, §1º, que a restringiu à disciplina desportiva e às competições desportivas, sendo oportuno destacar que a própria Constituição não incluiu a justiça desportiva no rol dos órgãos integrantes do poder judiciário, como expresso no art. 92/CF[2], onde estão, entre outros, os tribunais do trabalho e os seus juízes (art. 92, IV/CF).
É interessante observar que não é a presença da palavra “justiça” na denominação de uma instituição que a torna, por si só, um órgão jurisdicional, como é o exemplo presente da “justiça desportiva”. Em sentido contrário, a ausência da palavra “justiça” no nome de uma instituição não tem o condão, por si só, de destituí-la do poder jurisdicional:
Para que um órgão exerça a função estatal jurisdicional não é necessário que em seu nome exista a palavra “justiça”, ilustrando-se o afirmado com os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais Regionais do Trabalho, entre outros órgãos jurisdicionais. Há de nos lembrarmos que o órgão da cúpula do poder judiciário – Supremo Tribunal Federal – também não traz em seu nome a palavra justiça. (SALLES; BORGES, 2017).
Embora a Constituição Federal não tenha atribuído função jurisdicional strictu sensu à justiça desportiva, está o interessado obrigado a provocá-la antes de propor ação perante o judiciário, como expresso no art. 217, § 1º da Constituição, sendo oportuno transcrevê-lo:
Art. 217, § 1º/CF. O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.
Para não deixar em aberto o limite de tempo para tramitação do processo no âmbito da justiça desportiva, entendeu o constituinte originário de estabelecer o prazo de 60 dias para essa organização judicante proferir decisão final sobre o conflito de interesses submetido à sua apreciação, como estampado no art. 217, § 2º/CF[3].
Não se poderia dizer que essa exigência de provocar a justiça desportiva antes de buscar a prestação do serviço de tutela jurisdicional pelo Poder Judiciário violaria o direito à inafastabilidade da jurisdição previsto no art. 5º, inciso XXXV da CF/88[4] e seria, por conseguinte, inconstitucional [sic]. Todo dispositivo da Constituição é constitucional; cabe ao intérprete da norma ter habilidade hermenêutica suficiente para compatibilizar os dispositivos aparentemente conflitantes.
Neste sentido, é razoável dizer que ocorre in casu, uma inafastabilidade diferida do direito de ação, uma vez que depois de provocar a justiça desportiva e não se conformando com a sua decisão final, será possível ajuizar a ação que entender cabível junto ao órgão competente do judiciário sobre o conflito de interesses que fora obrigado a deduzir perante a justiça desportiva.
Esse entendimento da validade da obrigação de provocar a justiça desportiva está assentado na doutrina, como se ilustra com o exemplo abaixo:
A regra é expressamente excepcionada pela constituição federal em seu art. 217, § 1º, que prevê a necessidade de esgotamento das vias de solução da justiça desportiva como condição de buscar a tutela jurisdicional. Como o próprio texto da norma constitucional disciplina, o poder judiciário tem competência para resolver ações relativas à disciplina e às competições desportivas, exigindo-se tão somente o exaurimento prévio do processo administrativo na justiça desportiva. (NEVES, 2021, p. 92)
A jurisprudência, por sua vez, é pacífica nessa mesma direção, tomando como exemplo decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (com negritos acrescentados pelos autores do artigo):
EMENTA: REEXAME NECESSÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA - CAMPEONATO MUNICIPAL DE FUTEBOL DE CAMPO AMADOR - SUSPENSÃO DE PARTICIPAÇÃO EM CAMPEONATOS - PODER JUDICIÁRIO - INCOMPETÊNCIA - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DESPORTIVA. As ações envolvendo competições desportivas, somente podem ser ajuizadas no Poder Judiciário, depois de esgotadas as instâncias da justiça desportiva, conforme disposto no art. 217 da Constituição Federal. (TJMG - Remessa Necessária-Cv 1.0232.18.000308-8/001, Relator(a): Des.(a) Darcio Lopardi Mendes, 4ª Câmara Cível, julgamento em 31/10/2019, publicação da súmula em 05/11/2019).
Resumindo, a justiça desportiva é competente apenas para processar e julgar causas relativas à disciplina e às competições desportivas; a sua provocação é um pressuposto processual para ingressar com ação no órgão competente do poder judiciário, qualquer que seja o seu ramo, dependendo da matéria sobre a qual controvertem-se entre si os litigantes – justiça estadual, justiça federal ou justiça do trabalho –.
Antes de seguir adiante é conveniente destacar a diferença conceitual entre “trabalho” e “emprego”, sendo que trabalho é gênero e emprego é uma espécie de trabalho, com a característica predominante da subordinação jurídica do empregado ao tomador da sua atividade laboral (o empregador).
No dizer de Maurício Godinho Delgado (2006, p. 285) “a Ciência do Direito enxerga clara distinção entre relação de trabalho e relação de emprego.” Em seguida, acrescenta:
A primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. (...) A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de labor (como trabalho de estágio, etc.). (DELGADO, 2006, p. 286).
Embora a relação de emprego (trabalho subordinado) tenha se tornado a mais expressiva das relações de produção – em termos quantitativos – no modo de produção capitalista, sedimentou-se no Brasil a tradição de se utilizar a expressão “direito do trabalho” para se referir a uma típica relação de emprego, onde figuram os dois atores que a representam: o empregado e o empregador, vinculados entre si por um contrato de emprego (contrato de trabalho subordinado).
A expressão “Direito do Trabalho”, por sua vez, envolve o estudo de normas e princípios do trabalho subordinado, com a ressalva de que “o Direito do Trabalho deveria dizer respeito a qualquer tipo de trabalhador, mas, na verdade, tutela o trabalho subordinado e condições análogas.” (MARTINS, 2010, p. 15).
Assim, o atleta profissional é uma espécie de empregado, com algumas diferenciações quando se considera o empregado comum, como por exemplo, a duração máxima do contrato por prazo determinado, que para o empregado comum é de 2 anos (art. 445 da Consolidação das Leis do Trabalho) e para o atleta profissional é de 5 anos (art. 30 da Lei nº 9.615/1998).
Sendo o atleta profissional um empregado, pode-se afirmar que os conflitos decorrentes da relação jurídica que vincula empregado e empregador devem ser dirimidos pela justiça do trabalho, a qual se debruça, predominantemente, sobre conflitos de relação de emprego (no sentido estrito) e em menor escala a conflitos decorrentes de relação de trabalho (também no sentido estrito), como por exemplo, a pequena empreitada.
Limitando o foco desse artigo a causas decorrentes de conflitos de interesses entre atletas profissionais (empregados) e entidades de práticas desportivas (empregadores), pode-se afirmar que esses conflitos não poderão ser julgados pela justiça desportiva e, consequentemente, não se poderá exigir a sua prévia provocação como pressuposto processual, devendo o interessado ingressar com a ação diretamente junto à justiça do trabalho, em razão da matéria, como disposto no art. 114/CF, que lhe atribui competência para processar e jugar as ações oriundas da relação de trabalho (no sentido estrito ou, mais especificamente, relação de emprego), assim como, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho (no sentido lato), na forma da lei.
É oportuno, neste sentido, trazer à colação a ementa abaixo transcrita (com negritos acrescentados pelos autores do artigo):
RECURSO DE REVISTA 1. PRELIMINAR. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. ATLETA PROFISSIONAL. EXAME PRÉVIO PELA JUSTIÇA DESPORTIVA. NÃO CONHECIMENTO. O entendimento desta colenda Corte Superior quanto ao tema é que a Justiça do Trabalho é competente para analisar a ação, sem a necessidade do prévio exame da causa pela Justiça Desportiva quando versar sobre matéria trabalhista, nos termos dispostos no § 1º do artigo 217 da Constituição Federal. No caso, a demanda versa sobre questões relativas ao contrato de trabalho do autor (atleta profissional), razão pela qual esta Justiça Especializada é competente para processar e julgar o feito. Precedentes da Corte. Recurso de revista não conhecido (...) RR-118800-93.2008.5.09.0013, 5ª Turma, Relator: Ministro Emmanoel Pereira, DEJT 11/03/2016).
Como demonstrado, versando a demanda sobre relação de trabalho subordinado (rectius: relação de emprego), não haverá que se falar em justiça desportiva, mesmo que se trate de atleta profissional porque os conflitos decorrentes da relação entre entidade de prática desportiva na condição de empregador e atleta na condição de empregado, serão processados e julgados, unicamente, pela justiça do trabalho, por força de sua competência absoluta, estabelecida pelo disposto no art. 114 da Constituição Federal.
Ante todo o exposto, em que pesem as especificidades que permeiam a prática desportiva, a justiça desportiva é incompetente em razão da matéria para processar e julgar controvérsias decorrentes da relação de trabalho em geral e, mais especificamente, entre o atleta profissional (empregado) e a entidade de prática desportiva (empregador), pois essas causas devem ser processadas e julgadas, unicamente, pela justiça do trabalho, haja vista a competência absoluta que lhe é atribuída pelo disposto no art. 114 da Constituição Federal.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2006.
LIMA, Fernando Antônio Negreiros. Teoria geral do processo judicial. São Paulo: Saraiva, 2013.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil: volume único. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: volume I. 56. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.
________________. Código de Processo Civil anotado. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
SALLES, Luiz Caetano de; BORGES, Isabela Cristina Ferreira. Justiça desportiva: organização, funcionamento e suas atribuições. Disponível em: https://luizcaetanosalles.jusbrasil.com.br/artigos/555280106/justica-desportiva-organizacao-funcionamento-e-suas-atribuicoes. Acesso em: 20 out. 2021.
[1] Professor de Direito Desportivo da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia
[2] Art. 92 da Constituição Federal. São órgãos do Poder Judiciário:
I -O Supremo Tribunal Federal;
I-A – O Conselho Nacional de Justiça;
II – os Superior Tribunal de Justiça;
III – os tribunais regionais federais e juízes federais;
IV – os tribunais e juízes do trabalho;
V – os tribunais e juízes eleitorais;
VI – os tribunais e juízes militares;
VII – os tribunais e juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.
[3] Art. 217, § 2ºda Constituição Federal. A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
[4] Art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal. “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Julia Rodrigues. Justiça Desportiva: incompetência absoluta para processar e julgar lides trabalhistas, ainda que seja de atleta profissional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 dez 2021, 04:26. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/57875/justia-desportiva-incompetncia-absoluta-para-processar-e-julgar-lides-trabalhistas-ainda-que-seja-de-atleta-profissional. Acesso em: 22 nov 2024.
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