Aqueles que se propõem a estudar o direito penal, a todo momento, são chamados a solucionar os mais diversos casos, tendo em vista o farto material a que tem acesso através do noticiário, facebook, instagram, conversa com os vizinhos, etc.
Os entusiastas da matéria sabem as dificuldades encontradas na busca de tipificações adequadas, com um olhar técnico e imparcial. Contudo, o incauto poderá tentar responder às questões com brevidade, sem que seja feita uma análise aprofundada e ainda assim definir com “propriedade” o que é o certo ou errado, ainda que o tema seja revolto e digno de infindáveis discussões.
De mais a mais, toda forma de estímulo à análise mental de celeumas jurídicas é sempre importante para o amadurecimento de ideias e pontos de vista, já que, na maioria das vezes, não existem fórmulas fechadas para a correta interpretação. Conforme Samuel Sales Fonteles (2021, p.22), “(...) hoje se prevalece amplamente que o intérprete empresta sentido à norma interpretada”. Ou seja, para uma mesma norma jurídica poderiam se ter as mais diversas compreensões ou significados.
Dito isso, passa-se à análise do acidente envolvendo o ator norte-americano Alec Baldwin, que disparou uma arma cenográfica, matando uma mulher e deixando um ferido no set do filme "Rust", em 21/10/2021, no estado do Novo México. As investigações ainda não foram concluídas, mas a análise que se segue consistirá nas notícias iniciais repassadas pela imprensa.
De acordo com o divulgado até o momento, o ator Alec Baldwin, utilizando uma arma cenográfica que fazia parte das filmagens, efetuou disparos que acertaram dois colegas; a diretora de fotografia, Halyna Hutchins, que veio a óbito, e o diretor Joel Souza, que ficou lesionado, mas já recebeu alta do hospital.
Desta forma, a presente análise parte da premissa que o instrumento utilizado por Baldwin não tinha a nocividade que teria uma arma de fogo real, pois, como dito, era uma arma cenográfica, que, por vezes, dispara “balas de festim”. A chamada “bala de festim”, diversamente de uma munição convencional, não tem um projétil (ou seja, uma ponta); todavia, a convencional é dotada de espoleta, estojo, a carga de propelente (pólvora) e o projétil. A utilização da munição cenográfica é justamente para dar ao telespectador aquela sensação de realidade, pois ao ser disparada se terá um efeito visual da explosão e o barulho, semelhantes aos da arma de fogo com munição real. Sob essa perspectiva, Baldwin não teria a noção de que manuseava uma arma apta a ferir, acreditando que se tratava de um instrumento inócuo.
Caso a tipificação desse fato fosse feita à luz do direito brasileiro, estar-se-ia diante de um caso de erro provocado por terceiro e não de erro de tipo ou mesmo dolo direto, como veremos.
O erro de tipo é aquele previsto no art. 20, caput, do Código Penal (CP), que prevê que o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Nesta modalidade de erro, o agente não tem a exata compreensão da realidade ou tem um falso conhecimento de determinado objeto, de modo que sua conduta, apesar de dolosa, poderá ou não ser escusável, a depender se o ato provém de sua culpa ou não, partindo-se do pressuposto do homem médio. Ou seja, a análise dependerá do caso concreto para se descobrir em qual espécie o agente irá incidir.
Importante se fazer uma ressalva, pois, de acordo com Rogério Sanches (2020), enquanto a corrente tradicional invoca a figura do “homem médio”, uma corrente mais moderna irá trabalhar com as circunstâncias do caso concreto, já que o grau de instrução, idade do agente, momento e local do crime podem interferir na previsibilidade ou não do agente.
A título de exemplo do instituto erro de tipo, Cleber Masson (2017) faz referência ao salva-vidas que avista um banhista se debatendo em águas rasas de uma praia e, imaginando que não estava se afogando, nada faz. Ocorre que, posteriormente, tal banhista é retirado morto do mar.
De outro lado, há o erro provocado por terceiro, previsto no art. 20, §2º, do CP, que preceitua que responde pelo crime o terceiro que determina o erro. Aqui, o erro é determinado por outrem, por uma terceira pessoa, de forma que este é quem responderá pelo crime praticado, pois quem pratica o crime (provocado) tem uma falsa percepção da realidade no tocante aos elementos constitutivos do tipo penal (MASSON, 2017).
O agente causador do erro (provocador) será o autor mediato do crime, já o agente provocado (aquele que diretamente praticou o crime) é o autor imediato, que não responderá por crime algum, salvo tenha agido com dolo ou culpa, hipótese que também ensejará sua responsabilização.
Assim, moldando-se o caso concreto apresentado ao ordenamento jurídico brasileiro, temos que a conduta do ator americano será enquadrada como a de agente provocado, ou seja, foi levado a erro pelo agente provocador, que é aquela pessoa que será objeto da investigação, que incorreu em culpa ou em dolo.
Então, percebe-se que Alec não se equivocou espontaneamente em relação ao disparo, pois a conduta do terceiro (aquele que preparou a arma cenográfica) foi preponderante para o resultado naturalístico. Por outro lado, não há, nas matérias jornalísticas, relatos de que o ator tivesse agido com dolo direto, ou seja, aquele voltado para matar seus colegas, o animus necandi, descartando-se essa hipótese.
Portanto, sob a perspectiva do direito penal brasileiro, provado o dolo do agente provocador ele seria punido pelo homicídio doloso em concurso com a tentativa. Já Baldwin não responderia por qualquer crime, salvo se ficasse provada sua voluntariedade naquele evento (poderia ter percebido que a arma estava carregada?), hipótese em que poderia responder a título de culpa ou dolo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral (arts. 1º ao 120) – 8. Ed. ver. Ampl. e atual. - Salvador: Editora JusPODIVM, 2020. 276 p.
FONTELES, Samuel Sales. Hermenêutica Constitucional. 4. ed. rev. ampl. e atual. – Salvador: Editora JusPODIVM, 2021. 22 p.
MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: parte geral – vol. 1. – 11ª rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.
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