LUÍZA FELIPPETTO NANI
(coautora)
Resumo: A prática do Stealthing é conhecida como a remoção não consensual do preservativo durante a relação sexual, expondo o parceiro a doenças ou infecções sexualmente transmissíveis, bem como, a possibilidade de gravidez. No Brasil, tal conduta pode ser caracterizada como violência sexual mediante fraude, tipificada no artigo 215 do Código Penal. Neste artigo, será analisado a mais recente decisão da 7ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, que julgou procedente um pedido de aborto seguro, em razão de gravidez resultante de violência sexual, e a possibilidade de inclusão do aborto no caso de gravidez resultante de Stealthing no rol do artigo 128 do Código Penal Brasileiro.
Palavras-chave: Aborto Legal. Stealthing. Violência sexual.
Abstract: The practice of Stealthing is known as non-consensual removal of condoms during the intercourse, exposing the partner to sexually transmitted diseases or infections, as well as the possibility of pregnancy. In Brazil, such conduct can be characterized as sexual violence through fraud, as seen in Article 215 of the Penal Code. In this article, will be analyzed the most recent decision of the 7th Civil Panel of the Court of Justice of the Federal District and Territories, which upheld a safe abortion application, due to pregnancy resulting from sexual violence, and the possibility of including the abortion in the case of pregnancy resulting from Stealthing in the list of Article 128 of the Brazilian Penal Code.
Key-words: Legal Abortion. Stealthing. Sexual violence.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO 2. O CÓDIGO PENAL DE 1940 2.1. O conceito analítico de crime 2.2. Inexigibilidade de conduta diversa 2.3. Os Crimes Sexuais 2.3.1. Violação sexual mediante fraude 3. O STEALTHING 3.1. A origem do Stealthing 3.2. Aspectos legais, judiciais e principiológicos sobre o Stealthing 3.3. Decisões judiciais sobre o Stealthing 3.4. O perigo do Contágio Venéreo 4. O ABORTO LEGAL 4.1. O Direito ao aborto 4.2. Stealthing: estupro de vulnerável x constrangimento ilegal x estupro 5. O STEALTHING E A POSSIBILIDADE DO ABORTO LEGAL 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O Código Penal Brasileiro dispõe em seu artigo 215, o crime de violação sexual mediante fraude, tipificando a prática de conjunção carnal ou de atos libidinosos diversos que prejudicam a manifestação de vontade da vítima por meio de fraude. Nesse contexto, a prática de retirar o preservativo durante a relação sexual sem o consentimento do outro indivíduo, intitulado com Stealthing, atualmente é enquadrado nesse artigo.
O Stealthing tem origem inglesa, e em tradução livre, significa furtivo. Nesse sentido, o consentimento é presente no início da realização do ato sexual, sendo comprometido com a retirada da proteção, no decorrer da prática, de forma dissimulada sem a ciência da vítima. Nesse sentido, é valido ressaltar que os indivíduos possuem a liberdade de realizar atos sexuais, desde que, não violem ou descaracterizem o consentimento alheio, de modo que transmita riscos físicos como gravidez ou doenças sexualmente transmissíveis.
Mas e quando, além dos danos psicológicos e morais à vítima, o dano físico tem por consequência uma gravidez indesejada? Em recente decisão proferida pelo colegiado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (2020), fora julgado procedente o pedido para a realização do aborto seguro à uma vítima de violência sexual, que engravidou como consequência da remoção do preservativo.
Por conseguinte, o objetivo desse trabalho de pesquisa é relacionar o Stealthing com o direito penal associado à possibilidade de aborto seguro decorrente dessa violação. O estudo será feito por meio de busca bibliográfica e de pesquisas descritivas e quantitativas responsáveis por evidenciar os dados do trabalho.
2.1. O conceito analítico de crime
De modo genérico, crime é a conduta indevida e ilícita, realizada de forma proibida e tipificada pela lei. Juridicamente, o conceito analítico de crime é composto por dois ou três elementos, que configuram a Teoria Dualista ou Tripartite do Delito, respectivamente.
No âmbito penal, é comum a discussão sobre os elementos configuradores da concepção de crime. As correntes vigentes possuem o entendimento comum de que Fato Típico e Ilicitude, são constituintes primordiais e indiscutíveis para a caracterização. A divergência, no entanto, se manifesta no que diz respeito à culpabilidade do delito, sendo que a Teoria Dualista aponta que esta não é necessária para a definição do mesmo.
Dessa forma, a culpabilidade é em sentido amplo uma extensão e explicação do livre-arbítrio evolutivo. Sendo caracterizada, pela censura ao autor pelo fato injusto, que é reprovado socialmente, visto que, o mesmo deveria ter agido conforme o Direito demanda.
Implicitamente, está prevista na Constituição da República de 1988, devido ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana, ao vedar a incriminação do autor sem a caracterização do dolo ou culpa e ao estabelecer a necessidade de atender a proporcionalidade da pena ao crime cometido. Em suma, a Culpabilidade diz respeito a reprovabilidade do autor, pois o mesmo poderia ter agido de modo diverso, conforme demonstrado, pelo professor Rogério Sanches Cunha (2016, p. 281):
O juízo de reprovação recai sobre a conduta típica e ilícita que o agente se propõe a realizar. Trata-se de um juízo relativo à necessidade de aplicação da sanção penal. São duas, basicamente, as teorias desenvolvidas para fundamentar a culpabilidade do autor do fato típico e ilícito: o livre-arbítrio e o determinismo.
Além do exposto, outro componente fundamental para o conceito analítico de crime é o fato típico. Ele é a descrição delitiva do ato expressa no tipo penal. Dessa forma, não há que se falar em crime sem lei anterior que o preveja, assim, quando um delito que não possui previsão legal é realizado, é classificado como atípico e não configura crime.
O fato típico possui suas peculiaridades. Ele é formado por conduta, resultado, nexo de causalidade e tipicidade. A conduta pode ser através de uma ação ou omissão do agente, que pode agir com dolo ou culpa. O nexo causal é o encadeamento que junta a conduta e o resultado, é a comprovação que o ato causou danos. Por último, a tipicidade é a previsão legal da conduta, é a sua adequação à norma penal, só há crime se a conduta foi prevista pela lei.
Por fim, a ilicitude da ação é primordial e indiscutível para a caracterização do crime. É a contradição entre o fato e a norma, que caracteriza o ato como antijurídico.
2.2. Inexigibilidade de conduta diversa
A inexigibilidade de conduta diversa é uma excludente de culpabilidade. É a impossibilidade de punir o agente de uma conduta, devido a sua inviabilidade de agir de modo diferente ao que ocorreu. Assim, quando isso acontece, o fato é considerado isento de crime, visto que não há reprovabilidade no acontecido, pois não tinha outra forma de agir.
Para a comprovação dessa benesse, faz-se necessário analisar as circunstâncias que perfizeram o ato, para saber se não seria possível que o agente não tivesse praticado o ato. Dessa forma, é possível uma diminuição de pena ou excluir a criminalização do crime caso comprovado a inexigibilidade de conduta diversa.
Anteriormente chamado de os Crimes contra os costumes, o Título VI do Código Penal teve sua redação alterada pela Lei nº 12.015 de 7 de agosto de 2009, atualmente o título é nomeado como os Crimes contra a dignidade sexual, visando a proteção legal da dignidade sexual do indivíduo. Além disso, o Título VI se situa na parte especial do Código Penal, com início no artigo 213 a 234-B, sendo estes divididos em sete capítulos.
2.3.1. Violação sexual mediante fraude
Localizado no Capítulo I, chamado de Dos Crimes contra a liberdade sexual do Título VI, a violação sexual mediante fraude tem previsão no artigo 215 do Código Penal que dispõe em seu caput: “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”.
Nesse artigo legal, o crime ocorre quando um indivíduo utiliza do emprego da fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima, para ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com outrem. Cabe ressaltar que esse crime também é conhecido como estelionato sexual, haja vista que a fraude vicia o consentimento da vítima ou distorce a realidade, mantendo ou induzindo a vítima em erro.
Nesse sentido, o crime de violação sexual é classificado como doloso e plurissubsistente, tendo como objeto jurídico tutelado a liberdade sexual da pessoa humana. Destaca-se que, tanto o homem quanto a mulher podem ser os sujeitos, ativo ou passivo, do delito. A conduta pode ser comissiva, contudo, o douto professor Rogério Greco (2012) prevê hipótese via omissão imprópria, nos termos do parágrafo segundo do art. 13 do Código Penal, quando o garantidor sabia da fraude, e devia ou podia agir para evitá-la, todavia, permite que a vítima seja enganada e ocorra a consumação do crime. Por fim, a consumação ocorre com a efetiva penetração do ato sexual ou a prática de outro ato libidinoso.
O Stealthing consiste na prática de retirar ou perfurar o preservativo antes ou durante a relação sexual sem o consentimento do parceiro. Segundo Brodsky (2017), essa conduta pode ser compreendida em transformar sexo consensual em sexo não consensual em duas teorias, uma das quais representa um risco de criminalização excessiva ao exigir transparência completa sobre a capacidade reprodutiva e infecções sexualmente transmissíveis.
Com origem da língua inglesa, o termo Stealthing significa furtivo e oculto, e ficou conhecido após um homem de 47 anos ser condenado na Inglaterra por furar o preservativo antes da relação sexual. O homem, Andrew Lewis, usava um alfinete para perfurar o preservativo antes de usá-lo, e sua parceira percebeu o fato após encontrá-lo furado na lixeira. Por consequência, Andrew Lewis fora condenado a quatro anos de prisão por estupro pelo Tribunal Superior de Worcester.
Outro caso que gerou repercussão, ocorreu em 2017 na Suíça, quando um homem foi condenado por ter relações sexuais sem preservativo e sem o conhecimento da parceira. De acordo com o jornal ABC News, o casal se conheceu no aplicativo de relacionamentos Tinder, e a mulher só concordou em se relacionar sexualmente com o parceiro sob a condição do uso do preservativo, que fora retirado. O caso foi julgado por um tribunal de Lausanne, na Suíça, o homem foi condenado pelo crime de estupro.
Por fim, a pesquisadora Alexandra Brodsky publicou um artigo no Columbia Journal of Gender and Law abordando a ocorrência do Stealthing nos Estados Unidos, através de pesquisas com vítimas dessa violência sexual. Importante ressaltar que, tal artigo é de suma importância para o estudo dessa conduta, pois revelou a reincidência dos casos, e maior incidência da prática em casais heterossexuais.
3.2. Aspectos legais, judiciais e principiológicos sobre o Stealthing
Na legislação brasileira, a conduta do Stealthing está inserida no artigo 215, do Código Penal, sendo tipificado como violação sexual mediante fraude:
Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.
Apesar do Stealthing ser inserido no tipo penal de violação sexual mediante fraude, ao analisar a realidade das vítimas dessa violação e a ocorrência gradual dos casos, é notório a carência de um artigo específico no Código Penal Brasileiro para verdadeiramente tipificar a conduta, e assim, garantir segurança jurídica às vítimas dessa violência sexual, e assegurar o caráter preventivo e repressivo desse crime.
3.3. Decisões judiciais sobre o Stealthing
No que diz respeito às decisões judiciais brasileiras, o Stealthing é um tema recente. O seu conceito e implicação ao direito ainda está ascensão, assim, a sua discussão é complexa e pouco divulgada.
Nesse contexto, atualmente, encontra-se apenas uma decisão proferida em primeira instância, julgada pela 7° Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. O processo que tramita em segredo de justiça, aborda um pedido de aborto seguro, devido a uma relação sexual que inicialmente era consentida e que posteriormente, sem a ciência da vítima houve a retirada do preservativo que gerou a gravidez indesejada¹.
A 7ª Turma Cível optou por julgar procedente o pedido de aborto legal. Alegaram que cabe ao Estado prover assistência à mulher em situação de gravidez decorrente de relação sexual involuntária ou coercitiva. Afirmaram a necessidade de consentimento para a realização de atos e a importância de garantir a segurança dos envolvidos.
Assim, é notório a importância de mais julgamentos nesse sentido, e uma ampla divulgação dos casos, para gerar maior segurança jurídica para as vítimas do Stealthing, haja vista que, em conformidade com a decisão prolatada, cabe ao Estado assegurar os direitos do indivíduo.
3.4. O perigo do Contágio Venéreo
Doenças venéreas são transmitidas através de uma relação sexual desprotegida. Assim, considerando que o Stealthing é a prática sexual sem proteção, uma de suas possíveis consequências, é a possibilidade de contrair uma doença dessa espécie. Nesse sentido, no que diz respeito ao âmbito jurídico, os arts. 130 e 131, do Código Penal Brasileiro, versam sobre esse contágio:
Art. 130 - Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado:
Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.
§ 1º - Se é intenção do agente transmitir a moléstia:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 2º - Somente se procede mediante representação.
Art. 131 - Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Diante o exposto, é de suma importância considerar a imputações dos artigos citados para a análise do Stealthing, pois eles possuem ligação direta e complementar.
O aborto legal, também chamado de aborto necessário, tem previsão legal no caput do artigo 128 e seus incisos I e II, do Código Penal Brasileiro. É certo que a legislação brasileira não define o significado de aborto em seu texto, sendo o verbo nuclear dos artigos apenas “provocar aborto”.
Na visão do doutrinador José Frederico Marques (2017, p. 183), a definição seria “para o Direito Penal e o ponto de vista médico-legal, o aborto é a interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto da concepção. ”¹
A lei penal traz duas hipóteses expressas de possibilidade de realização do aborto, sendo elas quando não há outra forma de salvar a vida da gestante e se a gravidez for resultante de estupro. Além disso, em 2012, o Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de número 54 (ADPF 54), descriminalizou o aborto de anencefálos, por uma votação de seis votos a dois.
No julgamento, os ministros Marco Aurélio, Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Carmen Lucia votaram a favor, enquanto os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello votaram contra a declaração de inconstitucionalidade de uma interpretação judicial que enquadrava a interrupção da gravidez de feto anencéfalo (2012) nos artigos 124, 126 e 128, do Código Penal.
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: (Vide ADPF 54)
Pena - detenção, de um a três anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF 54)
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência
Forma qualificada
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: (Vide ADPF 54)
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Historicamente polêmico, o aborto é um tema que possui repercussão, visto que seu conteúdo traz um confronto entre direitos fundamentais, como a vida e a religião.
Desde 2012, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece o aborto como um serviço de saúde essencial. No Brasil, a mulher que se enquadrar em um dos casos de previsão legal para o aborto, tem o direito de realizar o procedimento de forma gratuita pelo Sistema Único de Saúde (SUS), conforme a Lei 12.845/2013.
Desse modo, a realização do aborto legal é permitida em caso de estupro, em que o tempo máximo de gestação seja de 20 semanas, ou 22 semanas caso o feto pese menos de 500 gramas, conforme expresso na cartilha distribuída pelo Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Contudo, permite-se a qualquer tempo, a sua execução nos casos em que à risco de vida para a gestante, em gravidez oriunda de violência sexual e por anencefalia fetal, conforme decisão de 2012, do Supremo Tribunal Federal, no ADPF n° 54.
Nas hipóteses estritamente citadas, não há a necessidade de decisão judicial nem a realização de um Boletim de Ocorrência Policial. O procedimento será realizado por uma equipe multidisciplinar, composta por médicos, psicólogos e assistentes sociais.
Por fim, é garantido ao profissional da saúde o direito de não realização do procedimento, devido ao direito à liberdade de pensamento, crença e de consciência. Assim, nesses casos o aborto é feito por outro profissional, desde que exista urgência para a resolução do processo.
Em suma, é válido ressaltar que é necessário o consentimento da gestante por escrito, e nos casos de menor de idade, é fundamental a autorização de um dos pais ou responsável legal.
4.2. Stealthing: estupro de vulnerável x constrangimento ilegal x estupro
O Stealthing é encontrado no rol dos crimes contra a liberdade sexual no título VI do Código Penal Brasileiro. É inegável que para a sua qualificação depende da prática da conjunção carnal ou outro ato libidinoso, porém uma das suas características principais é a utilização de um meio fraudulento ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação da vítima.
Todavia, o tema carece de tipicidade na legislação brasileira, pois os crimes já caracterizados como puníveis, por exemplo, o estupro de vulnerável, o constrangimento ilegal e o estupro, não atendem as singularidades dessa nova conduta condenável.
O estupro de vulnerável, elencado no artigo 217- A do Código Penal, é caracterizado pela conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, ou com pessoas que não consigam oferecer resistência ao ato. A conduta descrita na lei, é desde o início caracterizada pela falta de manifestação ou ciência da vítima, sendo isso, o que difere da prática do Stealthing, visto que a prática sexual nele é inicialmente consensual.
Em segunda análise, tipificado no artigo 146 do Código Penal, o constrangimento ilegal é o ato de constranger alguém, mediante a violência ou grave ameaça após a redução da capacidade de resistência a fazer o que a lei permite ou o que ela não manda. Nesse contexto, cabe ressaltar que na execução do crime do Stealthing não estão presentes esses requisitos.
Por fim, descrito no artigo 213, do Código Penal, o estupro é classificado como crime hediondo, sendo então, insuscetível de anistia, graça, indulto e fiança. É marcado pelo constrangimento da vítima, através de violência ou grave ameaça, para a prática de ato libidinoso.
Por analogia, na Inglaterra, um homem foi condenado a quatro anos de prisão por estupro após perfurar uma camisinha antes de usá-la para ter relações sexuais com uma mulher¹. À proporção que na legislação brasileira, semelhante ao julgado na Nova Zelândia, em abril de 2021, o crime seria tipificado como violência sexual mediante fraude, haja vista que o sujeito utilizou de um alfinete para perfurar o preservativo sem o consentimento da parceira.
Em suma, o que difere a prática do Stealthing dos outros crimes elencados é o consentimento inicial das partes durante a relação sexual, e a ausência da violência ou grave ameaça. Portanto, a simples inclusão do Stealthing na violência sexual mediante fraude não abrange as suas características inerentes do tipo, bem como, as severas consequências que esse crime pode ter.
5. O STEALTHING E A POSSIBILIDADE DO ABORTO LEGAL
A Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, também conhecida como Lei do Minuto Seguinte, considera violência sexual qualquer forma de atividade sexual não consentida. Embora o Stealthing seja uma violência sexual, a prática desse crime tem como característica o prévio consentimento.
A prática do Stealthing, proporciona no polo passivo danos de difícil reparação, visto que a ação pode ter efeito irremediável segundo a atual legislação vigente. A vítima, caso engravide, se torna obrigada a gerar o feto, pois, as possibilidades de aborto legal no Brasil, são taxativas e explícitas, conforme o artigo 128, do Código Penal:
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
É certo que o texto legal acima é específico quando dispõe “resulta de estupro”, não abrangendo outros tipos penais. Dessa forma, é válido ressaltar que o Direito Penal é encarregado de tratar de aspectos residuais e impactantes ao sistema jurídico. Assim, o aborto legal é descrito de modo restrito ao citar que a sua realização somente pode ser feita em caso de gravidez resultante de estupro.
Nesse sentido, abre-se a interpretação para o que seria o Stealthing na prática. Caso, possua caráter de violência sexual, o aborto legal seria uma possível solução para os casos de gravidez indesejada. No entanto, se o consentimento inicial para o ato sexual descaracterizar o fato da violência, o aborto não seria cabível.
Como é o caso do recente julgado do TJDFT, no qual o colegiado entendeu que a partir da falta de consentimento, o abuso sexual passa a ser considerado crime de estupro: “No particular, o ato sexual, embora inicialmente consentido mediante o uso de método contraceptivo, deixou de sê-lo no momento em que o agressor retirou o preservativo, ao que a vítima gritou para que este cessasse o ato sexual e teve seu rosto forçado contra a parede, com a ordem de que ficasse quieta.” (BEA, 2020)
Todavia, esse entendimento que o Stealthing passa a ser crime de estupro abre uma lacuna, haja vista que há situações que a(o) parceira(o) sexual não percebe a retirada do preservativo, ou ainda, quando o preservativo é furado preliminarmente, a vítima não tem ciência e consente a relação sexual. Tais situações são hipóteses de Stealthing sem a característica inerente do estupro de “violência ou grave ameaça”, e ainda presentes de um consentimento viciado.
Dessa forma, as consequências dessa prática criminosa podem resultar em uma gravidez indesejada que a vítima só terá ciência do ato furtivo meses depois. Mas sem a presença dos elementos do tipo penal “estupro”, não será possível um aborto legal e seguro, visto que não há previsão legal expressa para o crime de Stealthing.
Portanto, isso gera grave estresse e dano emocional às vítimas que necessitam ajuizar ação penal para terem o direito ao abortamento, e em muitos casos, a violência sexual entra para as estatísticas da “cifra negra” (crimes que não são levados ao conhecimento das autoridades), de modo que termina não só impune, mas também com uma gravidez indesejada.
Considerando que o Stealthing é uma forma de abuso sexual, que sua prática viola a dignidade sexual da vítima, e traz graves consequências, bem como, gravidez não planejada, doenças infecciosas, estresse pós-traumático, entre outras. Conclui-se que o bem jurídico protegido pelo Direito Penal nesse crime carece de maior amparo legal.
O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise de como um crime classificado no capítulo de violência sexual mediante fraude pode ser acrescentado no rol do artigo 128 do Código Penal Brasileiro. Foi evidenciado que essa inclusão poderia trazer uma maior segurança jurídica às vítimas de Stealthing, haja vista que elas teriam um direito de abortamento garantido pela legislação brasileira.
Em 1994, a Organização dos Estados Americanos (OEA) adotou o primeiro tratado internacional que trata sobre formas de erradicar a violência contra a mulher, em especial a violência sexual, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, também chamada de Convenção do Belém do Pará, ratificada pelo Brasil em 1995. Assim, as vítimas de violência sexual buscam amparo legal do Estado, em pararelo, a adoção do Stealthing no rol de possibilidades de abortamento seria mais uma forma de reafirmar o compromisso firmado com a Convenção.
Diante o exposto, pode-se perceber a necessidade de proteção legal das vítimas de Stealthing, uma vez que o dano físico e psicológico de uma gravidez indesejada impacta por toda a vida de uma mulher. Portanto, é indispensável que os operadores do direito, bem como os Poderes, considerem a importância da inserção dos crimes de violência sexual nas possibilidades de aborto legal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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HOMEM é condenado na Inglaterra por furar camisinha antes de relação sexual: Criminoso, um condutor de trens que tem 47 anos, usou um alfinete para furar o preservativo em 2018, mas só confessou o crime recentemente. Ele ficará quatro anos preso por estupro; promotor descreveu crime como 'pura maldade'.. [S. l.], 5 out. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/10/05/homem-e-condenado-na-inglaterra-por-furar-camisinha-antes-de-relacao-sexual.ghtml. Acesso em: 23 out. 2021.
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ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 54 DISTRITO FEDERAL: FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.. Inteiro Teor do Acórdão - Supremo Tribunal Federal, [S. l.], p. 1-433, 12 abr. 2012. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334. Acesso em: 23 out. 2021.
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acadêmica de Direito no Centro Universitário UNA. Atua como estagiária no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
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