GABRIELA CASAGRANDE GAZZONE[1]
(coautora)
RESUMO: O artigo trata sobre a gestão penal da imigração efetivada pelos países desenvolvidos, analisando o histórico da política criminal adotada, a qual sugere uma atuação seletiva e discriminatória, sendo inclusive extremamente rigorosa. Descreve nessa política criminal eleita alguns aspectos do Direito Penal do Inimigo, haja vista que o imigrante é comumente sancionado por sua condição de “outro” e não por seu comportamento. Indica o imigrante como uma vítima da criminalidade organizada transnacional, na medida em que é cooptado por grandes empresas e conglomerados econômicos em razão de sua mão de obra flexível e de baixo custo. Lança, ao fim, alguns questionamentos sobre as legislações migratórias, a correlação imprecisa entre migração e criminalidade e a necessidade de observância de direitos fundamentais mínimos aos imigrantes irregulares em razão de sua vulnerabilidade.
PALAVRAS-CHAVE: IMIGRANTES IRREGULARES. SISTEMA PENAL. FLUXO MIGRATÓRIO. XENOFOBIA.
ABSTRACT: The article deals about the penal management of immigration carried out by developed countries, analyzing the history of the criminal policy adopted, which suggests a selective and discriminatory action, even being extremely strict. It describes in this elected criminal policy some aspects of the Criminal Law of the Enemy, given that the immigrant is commonly sanctioned for his condition of “other” and not for his behavior. It indicates the immigrant as a victim of transnational organized crime, as they are co-opted by large companies and economic conglomerates because of their flexible and low-cost workforce. Finally, it raises some questions about migratory legislation, the imprecise correlation between migration and crime, and the need to observe minimum fundamental rights for irregular immigrants due to their vulnerability.
KEY WORDS: IRREGULAR IMMIGRANTS. CRIMINAL SYSTEM. MIGRATORY FLOW. XENOPHOBIA.
Sumário: 1. Introdução – 2. Imigrante como ‘sujeito de risco’ para o sistema penal: utilização do direito do inimigo no controle migratório, 1.2. Binômio imigração - criminalidade , 3. Imigrante como vítima da globalização. Responsabilidade da pessoa jurídica nacional e transnacional por violação dos direitos humanos, 4. Conclusão. 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O fenômeno da imigração não nos é desconhecido, é um movimento antigo que estimula as pessoas a saírem de seu país de origem, impulsionadas por desastres naturais, políticas genocidas e busca de melhores condições de vida, em regra, com destino a países que se desenvolveram estruturalmente. Os imigrantes são compostos, em grande parte, pelas classes mais vulneráveis dos países em desenvolvimento, sempre com o objetivo de escapar da linha da miséria e alcançar uma boa qualidade de vida por meio de novas oportunidades de trabalho.
Muito embora a movimentação de pessoas entre países com objetivos de melhoria de condições de vida não seja um fato recente, tampouco decorrente exclusivamente da globalização, esta incentivou, de forma determinante, a migração de pessoas a outros países, em razão do aumento da desigualdade e da abertura das fronteiras.
A grande questão que se nos apresenta é averiguar em quais hipóteses e sob quais fundamentos o controle dessa imigração é realizado por meio do sistema penal, isto é, quando para conter a entrada e/ou permanência de imigrantes irregulares no território o Estado institui, dentre sua estratégia gerencial, uma política de controle criminal migratória.
Marta Manclùs Masó[2] defende, para início de análise do tema, que a criminologia está tão intimamente ligada à ideologia racista que, em determinados momentos históricos, se pôs a serviço das empresas exploradoras, coloniais e genocidas. Nesse sentido, desde as décadas de 70 e 80, a ciência jurídica se preocupou em estudar as razões da presença constante das minorias étnicas no sistema penal, questionando se isso seria consequência de uma maior criminalidade desses sujeitos ou se seriam resultantes de uma atuação seletiva e discriminatória do sistema penal. Nessa linha, um estudo britânico concluiu que não há uma resposta determinante acerca desse questionamento, sendo a excessiva criminalização de imigrantes resultante da interface dos dois fatores.
Atualmente, com a crise econômica, o que se percebe é o crescimento de uma política mundial de limitação à entrada de novos imigrantes e ainda a aplicação de medidas rigorosas aos imigrantes irregulares. Essa desproporcionalidade entre o comportamento dos infratores e a sanção a eles imposta é que recebe críticas contundentes quanto à similaridade a um Direito Penal do Autor ou Direito Penal do Inimigo.
Todavia, percebe-se uma certa seletividade na gestão penal da imigração em favor do interesse econômico de grandes empresas que vêem no imigrante irregular uma oportunidade de contratar mão de obra de baixo custo e com baixa conflituosidade, aliada a jornadas excessivas de trabalho e supressão de direitos trabalhistas. Adicione-se a esse quadro, a impunidade dessas pessoas jurídicas quanto à violação dos direitos humanos desses imigrantes irregulares, tanto pela subserviência histórica da política ao poder econômico quanto pela recalcitrância da própria doutrina em absorver a nova teoria de criminalização dessas condutas.
Seguindo essa linha, Kazmierczak[3] concluiu que ‘o tratamento penal dos imigrantes dependerá da política criminal que será utilizada pelo Estado no seu enfrentamento’, sendo uma decisão política; ao que adicionamos que a política criminal também dependerá dos interesses econômicos existentes e dominantes no país.
2. IMIGRANTE COMO ‘SUJEITO DE RISCO’ PARA O SISTEMA PENAL: UTILIZAÇÃO DO DIREITO DO INIMIGO NO CONTROLE MIGRATÓRIO.
A caracterização do imigrante como um ‘sujeito de risco’ para o sistema penal decorre dos primeiros fluxos migratórios ocorridos no século XIX e na primeira metade do século XX em que os países que receberam esses imigrantes trataram o fenômeno a partir de uma perspectiva político-criminal.
Muitos estudos foram realizados, inclusive pela Escola de Chicago[4], acerca da problemática criminal dos imigrantes, ao que se concluiu, conforme apontado por José Angel Brandariz García[5] que a propensão delitiva resulta de uma hibridação entre o conflito cultural e a exclusão estrutural (desigualdade de oportunidades), que se revelam como circunstâncias determinantes para a criminalidade desses sujeitos.
Alguns países têm se valido da criminalização do imigrante irregular como forma de coibir sua entrada ou expulsar aqueles que já ingressaram as suas fronteiras. Exclui-se do corpo social aqueles que são indesejados, não aceitos pela sociedade.
“Legislación de guerra es lo que se viene ya denominando Derecho Administrativo, procesal y penal <del enemigo>, cuya finalidad consiste em la exclusión del sistema de los indeseables em tanto adquieren la condición de <no-personas>: como no pueden coadyuvar al mantenimiento del status quo, no merecen la consideración de ciudadanos. De esta forma se contrapone, por ejemplo, un Derecho penal <del ciudadano> frente a un Derecho penal <del enemigo>.”[6]
Manclùs[7] diz que a Lei da Imigração da Espanha leva por nome lei orgânica sobre direitos e liberdades dos estrangeiros naquele país, mas sua aplicação prática, na realidade, não contribui para a integração dos estrangeiros. Pelo contrário, constitui uma norma de polícia que impõe aos estrangeiros imigrantes desvantagens adicionais que dificultam seu processo de inserção social na Espanha.
Mesa[8], relata que no Direito Espanhol, a finalidade primordial da expulsão alternativa à pena privativa de liberdade não é outra senão evitar que a pena e o seu cumprimento se convertam em formas de permanência na Espanha, quebrando de maneira radical o sentido do ordenamento no conjunto que é de eliminar o estrangeiro.
Kazmierczak[9], no mesmo sentido, diz que se o Estado decidir pelo acolhimento do imigrante, não haverá qualquer repressão a respeito, mas, de outro vértice, se optar por um caminho diferente, teremos a utilização de seu braço forte, que é o Direito Penal.
Assim, os fenômenos migratórios foram cada vez mais interpretados como uma causa de conflito social, inseguridade e criminalidade a partir dos anos 70, quando houve um decréscimo na demanda de trabalho imigrante no setor industrial, relegando-lhes apenas serviços de baixo valor agregado fora do setor industrial. Essa mudança de cenário, com a queda no status social do imigrante, - que perdeu a posição econômica e produtiva de sua força de trabalho - coloca-o em uma situação vulnerável ao conflito, à insegurança e à criminalidade.
Isso porque os imigrantes conferem uma espécie de flexibilidade à força de trabalho que reflete no aumento da produtividade. Essa constatação, todavia, não é positiva, pois essa flexibilidade se concretiza numa alta taxa de temporalidade, níveis salariais inferiores aos de outros trabalhadores formais, jornadas de trabalho mais extensas e, por fim, baixa conflituosidade laboral que permite sua condição de vulnerabilidade.
Com efeito, o aumento massivo nos fluxos migratórios promovem um certo retrocesso nas questões trabalhistas, realçando questões de precariedade e vulnerabilidade, resultando numa verdadeira ausência de direitos a esses trabalhadores.
Nesse sentido, o que se verifica como política migratória em grande parte dos países é a utilização de uma lógica de filtro seletivo, isto é, além de impedir os fluxos migratórios, havia uma intenção de geri-los, facilitando o emprego massivo de imigrantes em situação de vulnerabilidade e exploração, suprindo as necessidades do sistema produtivo comercial.
Essa absorção do imigrante pelo sistema produtivo por meio de um emprego precário e explorador não pode ser considerada uma inclusão social, mas uma reafirmação da exclusão social. Segundo Young[10], a verdadeira inclusão só se perfectibiliza quando a educação e as oportunidades permitem a ascensão social meritocrática.
Assim, nesse estado de marginalidade social, sendo-lhes negada a igualdade com os nacionais, aos imigrantes foi instituída uma política criminal diferenciada. Monclús Masó e Brandariz García[11] entendem que a política criminal diferenciada para os estrangeiros conjuga duas racionalidades: uma neoliberal e outra neoconservadora. A racionalidade neoliberal se expressa na suposta redução de custos da substituição da prisão por expulsão, no perfil incapacitador das sanções, bem como na técnica atuarial de identificação dos grupos de risco. Por sua vez, a racionalidade neoconservadora se manifesta na atitude xenófoba e moralista em relação aos estrangeiros, quando se exige uma obediência e um respeito estrito à legalidade em grau superior que aos nacionais.
Garland[12] denominou essa política criminal contemporânea de Criminologia de si e Criminologia do outro. Na Criminologia do outro parte-se da premissa de que o criminoso é um ser diferente com características psicológicas, educativas, hereditárias deficitárias, inclusive em relação a cor de pele e deve ser afastado, contido ou eliminado. É sempre uma definição associada a uma imagem de criminalidade e periculosidade que se assemelha a teoria de Lombroso.
Seguindo essa linha, alguns autores, como Cancio Meliá e Palazzo[13] entenderam que as normativas administrativas e penais de controle de imigrantes constituem uma expressão do Direito do Inimigo. Alguns autores fizeram a correlação dos centros de internação para imigrantes com a filosofia presente nos campos de concentração do nazismo e em Guantánamo.
As argumentações formuladas para fundamentar essa assertiva de que o controle administrativo e penal de imigrantes constitui uma expressão do Direito do Inimigo são diversas e possuem certa dose de coerência. Em primeiro lugar, a responsabilidade penal do imigrante parece trata-se de uma espécie de Direito Penal do Autor, na medida em que o imigrante não responde por seu comportamento, por sua conduta, mas por sua própria condição. A crítica que se faz a essa argumentação é que essa condição pela qual o imigrante é considerado um inimigo, não é uma condição própria, mas sim imposta pela exclusão social provocada pelo Estado.
Ainda, argumenta-se que no controle dos fluxos migratórios, as sanções estabelecidas, como a expulsão e a internação ou prisão seguida de prisão constituem expressão da prevenção especial negativa, a qual preconiza a eliminação do delinquente como um bem promovido à sociedade. Tais sanções aproximariam o controle migratório do Direito do Inimigo, na medida em que este último preconiza a segregação definitiva do inimigo do seio social, caracterizando a incomunicabilidade entre o Estado o inimigo.
Ressalte-se que, ainda que a expulsão seja a sanção comumente utilizada pelos países no manejo do controle de imigrantes, seja penal ou administrativa, a medida não se afigura ser a solução adequada para a situação, na medida em que constitui uma alternativa tirana de relacionamento com a comunidade. Adicione-se que tal sanção também é executada de forma seletiva pelo Estado, tendo em vista que nem todos os sujeitos que se encaixam em seus pressupostos são expulsos, tampouco se executam a todos os sujeitos a que se lhes impõe.
Vale destacar que a gestão penal da imigração encontra grandes barreiras para sua efetivação, nos moldes acima delineados, pela política diplomática entre os países. Decerto, as expulsões por vezes não têm sucesso em sua execução em razão da recalcitrância dos países de origem dos imigrantes em reconhecer-lhes a nacionalidade ou até mesmo de recepcionar seus naturais. Isso ocorre porque ao Estado de origem se revela vantajosa esse êxodo de seus nacionais porque resultam em maior pacificação social em decorrência de menos conflitos e a diminuição dos índices de desemprego.
Recentemente, instalou-se uma crise diplomática entre a Espanha e o Marrocos que a chegada de milhares de marroquinos à costa espanhola e à ilha de Ceuta, em razão de uma decisão do Governo do Marrocos de afrouxar as regras de fiscalização migratórias na fronteira com a Espanha.
Decerto que a problemática dos fluxos migratórios decorre, em grande parte, da falta de vontade política dos Estados de controlar de forma efetiva e rigorosa a imigração irregular, na medida em que essa decisão política poderia acarretar a diminuição dos fluxos migratórios e, com isso, diversas vantagens e funcionalidades econômicas e sociais advindas dessa movimentação.
Segundo Lilian García[14], a lei argentina de política migratória Nro. 25.871, vigente desde 2004, veio junto com o Programa Nacional de Normalização Documentária Migratória (para cidadãos pertencentes ou não ao MERCOSUL), estabelecer o primeiro pilar de um novo projeto migratório na Argentina. Um dado relevante é que a legislação reconhece a todas as pessoas o direito humano de migrar, consagrando ainda uma série de direitos que melhoram, inclusive, os requisitos mínimos previstos em vários instrumentos internacionais de direitos humanos. A Argentina, assim, tem uma das primeiras experiências de incorporar direitos humanos a um âmbito de política migratória reservado naturalmente à esfera doméstica dos Estados.
Porém, da análise de decisões judiciais que aplicavam as sanções aos imigrantes irregulares, concluiu pela desproporcionalidade entre as penas e o delito, revelando a contradição entre a legislação argentina e sua efetiva aplicação.
Por sua vez, Natalia Debundi[15], analisando o sistema francês de gestão da imigração chegou a mesma conclusão:
Las prácticas y políticas de expulsión de migrantes pueden ser concebidas como un dispositivo, en los términos propuestos por Foucault, formando parte de un sistema de control social más amplio, tradicionalmente instaurado a partir del sistema penal. La cárcel ha sido históricamente el instrumento predilecto para la gestión de la población desviada y de forma extendida para “el desecho social”
2.1. BINÔMIO IMIGRAÇÃO - CRIMINALIDADE
Preston e Perez[16] realizaram um amplo estudo por meio de metodologia quantitativa a fim de interpretar as políticas de controle penal de imigrantes a partir de variáveis econômicas. Analisaram os números de dezenas de países a fim de entender a relação entre as taxas de criminalização de imigrantes e algumas variáveis econômicas e sociais. Os autores buscavam confirmar a hipótese de que a excessiva criminalização de imigrantes seria um resultado da competência econômica condicionada pelo colonialismo e a segmentação da força de trabalho que conduziriam a condições econômicas que requerem o controle dos grupos competitivos.
As conclusões do estudo, todavia, não confirmaram a hipótese inicial. Do quanto analisado, apurou-se as seguintes premissas: 1) as maiores taxas de inflação e desemprego corresponderam a menores taxas de população penitenciária imigrante; 2) menores taxas de liberdade econômica (maiores restrições impostas pelo Estado na atividade econômica) correspondem a um maior encarceramento dos imigrantes, 3) países com menor índice de desigualdade têm maiores taxas de criminalização dos imigrantes, o que leva à conclusão de que os países com desigualdade extrema não se caracterizam pelo temor dos grupos dominantes aos estrangeiros.
Nesse sentido, os pesquisadores partiram da afirmação de que o encarceramento era um instrumento utilizado pelas sociedades de livre mercado para contribuir e manter o poder e a posição dos grupos dominantes, mas, ao contrário, chegaram à conclusão de que o encarceramento é um instrumento de gestão que limita o rigor sancionador, equilibrando as pressões sobre o controle de fronteiras, a legitimação institucional e a recuperação da coesão social.
Navarro[17], por sua vez, analisou a fundo a discussão acerca da segurança pública, tendo em vista que na Espanha, por volta de 2001-2003, cresceram as especulações sobre as razões sobre o aumento da criminalidade no país, resultando no endurecimento da legislação direcionada aos imigrantes, na medida em que permitiu-se a substituição das penas privativas de liberdade inferiores a 6 anos imposta a um estrangeiro por sua expulsão do território nacional.
Segundo o autor, ‘si el discurso político-criminal de dicho Governo estaba basado em la idea de <tolerância cero> frente las situaciones y los sujetos generadores de inseguridad, nada más acorde com dicho proyecto que directamente excluirlos, expulsarlos del sistema’.[18]
Apesar de algumas normativas expedidas pela ONU, tal como a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias e diante das graves violações aos direitos humanos diariamente noticiadas, conclui-se que as agressões, embora ocorram em empresas privadas, contam com a tolerância dos órgãos públicos, devendo haver uma cooperação da comunidade jurídica internacional a prevenir que as pessoas jurídicas de direito público, de maneira equivocada, fomentem políticas discriminatórias e racistas.
3. IMIGRANTE COMO VÍTIMA DA GLOBALIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE DA PESSOA JURÍDICA NACIONAL E TRANSNACIONAL POR VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Com efeito, a desigualdade é um dos principais fatores que catalisa o fenômeno dos processos migratórios. A conjuntura econômica e social mundial estabelece uma relação de interdependência entre os países, bem como os coloca em níveis diferenciados de desenvolvimento, o que incentiva a movimentação da população mais vulnerável dos países menos favorecidos a buscar novas oportunidades nos Estados mais desenvolvidos.
Muito embora não seja a único fator fomentador da imigração – guerras, catástrofes ambientais e políticas genocidas também são causas conhecidas dessa movimentação – a globalização promoveu a abertura de fronteiras e, por conseguinte, oportunidades de trabalho que atraem a população vulnerável que se submete, por vezes, a condições precárias de trabalho para fins de subsistência.
Nesse sentido, verifica-se que um pressuposto defendido pela globalização é que haja uma crescente desregulação pelo Estado da atividade privada e assim, conceda maior liberdade ao mercado de se expandir. Todavia, um efeito nocivo dessa desregulação é a supressão dos direitos e garantias dos trabalhadores pelas grandes companhias transnacionais e conglomerados financeiros, que se beneficiam da minimização dos custos através da não criminalização dos delitos de exploração laboral[19]
“Como, además, el Estado assume la tarea de garantizar la competividad de las empresas, ha de mantener, siquiera sea indirectamente, sus actividades, relajando el control sobre las mismas y garantizando la libre disponibilidad de la mano de obra. Un Derecho penal económico que refleje essa realidad no puede ser agresivo frente a conductas como la explotación de mano de obra extranjera.”
Há que se destacar que a intervenção estatal, embora míope e condescendente quanto às práticas não republicanas das grandes empresas quanto aos direitos de seus trabalhadores, promove, com um rigor desproporcional, o controle criminal dos imigrantes, desprezando o princípio da intervenção mínima e a utilização de medidas menos invasivas de solução de conflitos. Alessandro Baratta[20] define, com precisão, o comportamento seletivo estatal:
“(…) cuando dirigen a comportamientos próprios de los indivíduos integrados em colectivos marginales, tejen una tupida red; que, sin embargo, se abre cuando los tipos tienen por objeto la criminalidad característica de quienes controlan los mecanismos del poder.”
No Brasil, o artigo 149 do Código Penal promove a criminalização da conduta de quem reduz alguém à condição análoga a de escravo, todavia ainda não há possibilidade da responsabilização da pessoa jurídica por tal delito. São exatamente essas falhas jurídicas internas e a ineficiência estratégica dos Estados no enfrentamento aos crimes cometidos pelas empresas transnacionais que viabilizam as frequentes e atuais transgressões aos diretos fundamentais mínimos de imigrantes trabalhadores que são inseridos no mercado de trabalho aceitando condições laborais insalubres.
Claudio Souza e Eduardo Lebre[21], na defesa de uma reformulação constitucional e legislativa que viabilize a responsabilidade da pessoa jurídica pelo crime do artigo 149 do Código Penal, dissertam:
A crescente globalização, econômica e social, impulsionada pelas novas tecnologias, contribui com o surgimento da criminalidade nos meios empresariais. A empresa é o eixo de onde a criminalidade econômica pode advir [...]
A responsabilização penal da pessoa jurídica pelo abuso e pela exploração ilegal do trabalho humano surge, assim, como forma não apenas de punição das condutas lesivas à liberdade individual, mas como prevenção da prática desse crime, função essencial da sanção penal.
O paradigma do Direito Penal, não apenas no que toca à gestão penal da imigração, é, tutelar, de forma efetiva, os direitos fundamentais de todos, à luz da dignidade da pessoa humana, isso dentro de um modelo de Estado Democrático de Direito. Daí a importância que essa tutela de direitos fundamentais por parte do Estado seja estendida também aos estatutos e funcionamento das empresas nacionais e transnacionais, como forma de proteger a classe vulnerável da força econômica decorrente da globalização.
Recentemente, duas grandes marcas de cerveja foram autuadas pela Justiça do Trabalho no Brasil por trabalho escravo de imigrantes irregulares em empresa terceirizada prestadora de serviços, quando foram condenadas a pagar verbas e trabalhistas e indenização aos trabalhadores submetidos a condições extremas[22]. Não houve, porém, condenação criminal das pessoas jurídicas envolvidas, muito embora se perceba um padrão nessas grandes corporações no sentido de se utilizar do mecanismo da ‘cegueira deliberada’ para ignorar o devido cumprimento das leis trabalhistas por sua própria empresa e terceirada, visando somente o lucro.
A responsabilização criminal é necessária porque é provável que a conduta empresarial de violação aos direitos fundamentais mínimos dos trabalhadores seja reiterada, podendo constituir até mesmo uma diretriz da pessoa jurídica. Além de pôr fim a reiteração da violação dos direitos do imigrante, a responsabilização criminal protegerá o trabalhador que, inadvertidamente, consentir nessa situação de abuso como forma de ultrapassar a linha da miserabilidade.
Com vistas a conferir um desvalor a esse consentimento, Jeschek[23] disse que a valoração subjetiva dos direitos legais pelo indivíduo é reconhecida dentro de certos limites pela ordem jurídica, porque o uso desimpedido da liberdade pessoal é apresentado como um valor social no Estado de Direito Liberal, que deve ser ponderado juntamente ao o interesse da comunidade na conservação dos bens jurídicos.
4. CONCLUSÃO
Os movimentos migratórios, notadamente os decorrentes de busca por novas oportunidades laborais, são frutos do desenvolvimento desigual das economias[24], consequência da globalização, fenômeno permanente. Nesse sentido, a entrada e saída de pessoas, seja de forma regular ou irregular, continuará a acontecer num futuro próximo e distante, tendo em vista a distribuição desigual de atividades econômicas, infraestrutura, população e renda nas regiões mundiais, o que muito contribui para a catálise desse fluxo.
Cabe-nos questionar se esse fenômeno de entrada e permanência, regular e irregular de imigrantes nos países está sendo considerado e gerido da melhor forma e de maneira efetiva, respeitando os direitos fundamentais mínimos desses estrangeiros. Há que se perguntar também se esses não nacionais estão sendo identificados adequadamente diante da sociedade e da legislação interna; são equiparados aos cidadãos naturais ou considerados como ‘inimigos do Estado para os quais se deve montar políticas criminais defensivas e legislações restritivas?
Ainda, merece reflexão a correlação comumente feita, em especial nos países mais desenvolvidos, acerca da imigração e da criminalidade. Muito embora existam alguns bons estudos, conforme acima citados, a imprecisão dos dados não permite extrair conclusões exatas acerca dessa proporcionalidade direta, ainda mais quando se estabelece, em grande parte dos países, políticas sociais de exclusão e cerceamento de direitos em relação ao imigrante.
Em termos de integração e exclusão e/ou expulsão em relação aos estrangeiros, é interessante analisar a eficácia das legislações internas dos países confrontadas com os relacionamentos diplomáticos com outros Estados. Seria mais eficiente uma legislação global coordenada para regulamentar o trânsito de imigrantes? Tal ordenamento jurídico global derrubaria obstáculos atualmente existentes de não recepção de seus nacionais por alguns países em decorrência de questões políticas e sociais e asseguraria ostensivamente os direitos mínimos dos estrangeiros imigrantes.
Para construção e implementação de uma política criminal vinculada a uma pauta de Direitos Humanos, é necessário tanto a vontade e envolvimento das autoridades dirigentes quanto uma mudança na apreciação do “outro”, isto é, do imigrante. Indivíduo frequentemente de origem pobre, captado clandestinamente para servir de mão de obra flexível e de baixo custo a grandes empresas e conglomerados econômicos; cerceado, por vezes por um consentimento viciado, de seus direitos mais básicos, revela-se mais como uma vítima da globalização do que o ‘inimigo de Estado’.
O enfrentamento dessa seletividade política e econômica na gestão das fronteiras e na eleição de políticas sociais e criminais em relação aos imigrantes é um dos grandes desafios da expansão do nosso atual modelo econômico e político voltado à satisfação das grandes corporações em detrimento tanto dos direitos de primeira (direitos individuais) quanto de quarta geração (direitos decorrentes da globalização dos direitos políticos, fundados, principalmente, na defesa da dignidade da pessoa humana contra práticas abusivas, seja do Estado ou de particulares).
5. REFERÊNCIAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
DEBANDÍ, Natalia. EL MODELO DE CONT.ROL DE GESTIÓN MIGRATORIA FRANCÉS: UNA EXTENSIÓN DEL SISTEMA PENAL. REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 113-128, jul./dez. 2015.
GARCÍA, José Ángel Brandariz. Sistema Penal y control de los migrantes – Gramática del migrante como infractor penal. Granada: Editorial Comares, 2011.
GARCÍA, Lilian. POLÍTICA MIGRATORIA Y DELITOS: EXPULSIÓN POR CAUSAS PENALES Y DERECHOS BAJO LA ACTUAL LEY ARGENTINA DE MIGRACIONES. REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 197-214, jul./dez. 2015.
MASÓ, Marta Moclús. La gestión penal de la inmigración. El recurso al sistema penal para el control de los flujos migratorios.1a ed. Buenos Aires: Del Puerto, 2008.
MESA, María José Rodríguez e Luis Ramón Reuiz Rodríguez (Coords.). Inmigración y Sistema Penal: Retos y desafios para el siglo XXI. Valencia: Tirant lo blanch: 2006.
MORAES, Ana Luisa Zago de. Crimigração: a relação entre política migratória e política criminal no Brasil. São Paulo : IBCCRIM, 2016.
PONTE, Antonio Carlos da (Coord.); CASTRO, Wellington Clair de (Org.). Mandados de criminalização e novas formas de criminalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
[1] Mestranda em Direito Penal na PUC/SP. Analista Jurídica do Ministério Público do Estado de São Paulo. [email protected]
[2] MASÓ, Marta Moclús. La gestión penal de la inmigración. El recurso al sistema penal para el control de los flujos migratorios.1a ed. Buenos Aires: Del Puerto, 2008.
[3] KAZMIERCZAK, Luiz Fernando. Imigração e Criminalidade. In. Mandados de Criminalização e Novas Formas de Criminalidade.
[4] Grupo de professores e pesquisadores da Universidade de Chicago, que surgiu nos Estados Unidos nos anos 20 e durante algumas décadas do início de século XX, trazendo uma série de contribuições à sociologia, psicologia social e ciências da comunicação.
[5] GARCÍA, José Ángel Brandariz. Sistema Penal y control de los migrantes – Gramática del migrante como infractor penal. Granada: Editorial Comares, 2011.
[6] CARDOSO, Fernando Navarro. In. Inmigración y Sistema Penal: Retos y desafios para el siglo XXI. Valencia: Tirant lo blanch: 2006. Págs. 223-254.
[7] MASÓ, Marta Moclús. La gestión penal de la inmigración. El recurso al sistema penal para el control de los flujos migratorios.1a ed. Buenos Aires: Del Puerto, 2008.
[8] MESA, María José Rodríguez e Luis Ramón Reuiz Rodríguez (Coords.). Inmigración y Sistema Penal: Retos y desafios para el siglo XXI. Valencia: Tirant lo blanch: 2006.
[9] KAZMIERCZAK, Luiz Fernando. Imigração e Criminalidade. In. Mandados de Criminalização e Novas Formas de Criminalidade. Pág. 205
[10] GARCÍA, José Ángel Brandariz. Sistema Penal y control de los migrantes – Gramática del migrante como infractor penal. Granada: Editorial Comares, 2011. P 102.
[11] op. cit. Pág.82.
[12] op. cit. Pág. 33
[13] op. cit. 82.
[14] GARCÍA, Lilian. POLÍTICA MIGRATORIA Y DELITOS: EXPULSIÓN POR CAUSAS PENALES Y DERECHOS BAJO LA ACTUAL LEY ARGENTINA DE MIGRACIONES. REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 197-214, jul./dez. 2015.
[15] DEBANDÍ, Natalia. EL MODELO DE CONT.ROL DE GESTIÓN MIGRATORIA FRANCÉS: UNA EXTENSIÓN DEL SISTEMA PENAL. REMHU - Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, Ano XXIII, n. 45, p. 113-128, jul./dez. 2015.
[16] GARCÍA, José Ángel Brandariz. Sistema Penal y control de los migrantes – Gramática del migrante como infractor penal. Granada: Editorial Comares, 2011. P 94.
[17] CARDOSO, Fernando Navarro. In. Inmigración y Sistema Penal: Retos y desafios para el siglo XXI. Valencia: Tirant lo blanch: 2006. Págs. 223-254.
[18] op. cit. pág.
[19] BASOCO, Juan M. Terradillos. EXTRANGERÍA, IMIGRACIÓN Y SSISTEMA PENAL.
[20] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. Tradução: Juarez Cirino dos Santos. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
[21] LEBRE, Eduardo. SOUZA, Claudio. RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA E A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO NA HIPÓTESE DE CRIME EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVOS. Revista CEJ, Brasília, Ano XXI, n. 73, p. 67-74, set./dez. 2017.
[22] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/05/17/ambev-e-heineken-sao-autuadas-por-trabalho-escravo-de-23-imigrantes.htm#:~:text=Ambev%20e%20Heineken%20s%C3%A3o%20autuadas%20por%20trabalho%20escravo%20em%20empresa%20terceirizada&text=A%20Ambev%20e%20o%20Grupo,servi%C3%A7o%20para%20as%20duas%20empresas. Consultado em 04.06.21.
[23] FALOPPA, Fabiola Moran. TRÁFICO DE PESSOAS E TUTELA PENAL. REVISTA JURÍDICA ESMP-SP, V.15, 2019: 18 - 40
[24] NAVARRO, Fernando. EXTRANGERÍA, INMIGRACIÓN Y SISTEMA PENAL. In.Inmigración y Sistema Penal: Retos y desafios para el siglo XXI. Valencia: Tirant lo blanch: 2006.
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