JORGE ASSAF MALULY[1]
PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN[2]
(orientador)
RESUMO: A Constituição Federal atribuiu ao Ministério Público a privatividade do exercício da ação penal pública, que repercute diretamente em diversos institutos do processo penal e, dentre eles, os acordos de não persecução penal, assegurando a legitimidade exclusiva desse órgão para a propositura de acordos. A Lei Processual penal, por sua vez, alinhada à realidade mundial do processo penal resultados, prevê, a partir do chamado projeto anticrime, os acordos de não persecução penal, atribuindo a exclusividade para sua propositura ao dominus litis, fixando, ainda, o momento limite que esse poder pode ser exercido, ou seja, o início da segunda fase da persecução penal. Tratando-se de acordo com concessões recíprocas, o acordo de não persecução penal não pode ser proposto em atenção ao interesse unilateral do acusado e em qualquer momento processual, sob pena de tornar-se um refúgio para a impunidade, desvirtuando o próprio significado do processo penal consensual. A lei deve ser aplicada, portanto, como ela é e não como o exegeta gostaria que fosse.
ABSTRACT: The Federal Constitution gave the Public Prosecutor's Office the privilege of exercising public criminal action, which has direct repercussions on several institutes of criminal procedure and, among them, the non-prosecution agreements, ensuring the exclusive legitimacy of this body for the proposition of agreements. The Criminal Procedural Law, in turn, aligned with the global reality of criminal procedure results, provides, from the so-called anticrime project, the agreements of non-prosecution criminal, attributing the exclusivity for its proposition to the dominus litis, also fixing the moment limit that this power can be exercised, that is, the beginning of the second phase of criminal prosecution. In the case of reciprocal concessions, the non-prosecution agreement cannot be proposed in consideration of the unilateral interest of the accused and at any procedural moment, under penalty of becoming a refuge for impunity, distorting the very meaning of the process. consensual criminal The law must therefore be applied as it is and not as the exegete would like it to be.
SUMÁRIO: 1. CONCEITO E ASPECTOS INTRODUTÓRIOS. 2. MOMENTO PARA A PROPOSTA DE ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. 3. CONCLUSÕES ARTICULADAS. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA.
1. CONCEITO E ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
Em decorrência do monopólio da ação penal pública, o Ministério Público, a partir da Constituição Federal de 1988, perdeu o papel de advogado do Estado e se transformou, exclusivamente, em advogado da sociedade: a sociedade-governante. Esse aspecto fundamental na conformação Ministerial impõe à Instituição a formatação de políticas criminais que norteiem sua atuação como órgão indivisível. Com efeito, a Carta Constitucional atribuiu-lhe o dever de zelar pelo respeito aos direitos nela assegurados (art. 129, II), ressaltou-lhe, como se viu, o caráter de órgão de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais indisponíveis (CF, art. 127, caput).
Para o exercício dessas relevantes funções, o constituinte garantiu aos membros do parquet a inamovibilidade e vitaliciedade, preservando-lhes, ainda, a independência funcional. Na verdade, as duas primeiras garantias, aliadas à irredutibilidade de vencimentos, asseguram a formação da livre convicção do órgão da acusação, que, dessa forma, age com independência e livre de ingerências externas.
Da conjugação dessas regras e do propósito de se conferir efetiva e especial proteção a todos os interesses envolvidos na persecução penal, com destaque para a tutela da liberdade pessoal e, de resto, para os diversos aspectos ligados ao devido processo penal (acusatoriedade, contraditoriedade, ampla defesa, paridade de armas etc), é que se tem extraído o chamado princípio do Promotor Natural, que foi concebido com a preocupação de limitar o arbítrio estatal no desenvolvimento do processo.
Na doutrina brasileira há um conceito que se pode dizer unívoco sobre o princípio da unidade e o seu consectário lógico que é a indivisibilidade. Parece não haver controvérsia no sentido de que unidade significa que os membros do Ministério Público fazem parte de um único órgão sob a direção de um só chefe.
A indivisibilidade, por sua vez, como decorrência do princípio antecedente, significa que os membros do Ministério Público atuam no processo como Instituição e esgotam a atividade desta no momento em que se manifestam, podendo, por isso mesmo, na forma da lei, ser substituídos uns pelos outros. Esse conceito corrente de unidade – visto sob o seu aspecto meramente formal – é, por si, inútil e não tem significado algum. Daí a razão de não tem despertado grande interesse da doutrina que se propõe a estudar o Ministério Público. Na verdade, ele pode ser aplicado rigorosamente a qualquer instituição pública (Poder Executivo, Poder Legislativo e Poder Judiciário).
Ninguém duvida, por exemplo, que o Poder Judiciário é uno, deles fazem parte os juízes de direito (que gozam de independência) e que estão, pelo menos no aspecto administrativo, sujeitos a uma chefia (v.g. Presidente do Tribunal).
Há, contudo, diferenças sensíveis quando, comparativamente, se busca perquirir o significado do princípio da unidade no Poder Judiciário e no Ministério Público. A unidade das decisões judiciais está revestida, sem dúvida alguma, de maior fragilidade. Com efeito, antes de tudo, está sujeita a um impulso externo e, bem por isso, não se aplica a todos os processos. Em outras palavras, a manifestação unitária do Poder Judiciário conta com diversos filtros e sempre resulta da necessária colaboração da parte, isto é, os órgãos de jurisdição superior só se manifestam se para o caso específico houver previsão de recurso e ele efetivamente for interposto no prazo e na forma que a lei prevê. Mesmo o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário, só age por provocação e está necessariamente preso ao critério da imparcialidade.
A esta altura já é possível entrever a razão pela qual o constituinte destacou, dentre os princípios fundamentais do Ministério Público, exatamente a unidade e não o fez, por exemplo, em relação ao Poder Judiciário.
É que o campo de incidência da unidade do Parquet, ao reverso do que se verifica em outros entes estatais, é essencialmente funcional. Esse princípio do Ministério Público é pleno de significação e aplicabilidade. A unidade, mais do que sugere a definição, tem a relevante e indeclinável finalidade de preservar a isonomia de tratamento dos réus e investigados e busca viabilizar uma resposta célere, eficaz e coordenada à sociedade quanto aos métodos e medidas empreendidas no combate às mais variadas formas e expressões da criminalidade.
Como já se disse, o Ministério Público se faz presente, nas suas funções institucionais, por seus órgãos de execução, dotados de poderes jurídicos para praticar os atos da pessoa coletiva, que através deles “conhece, pensa e quer”[3]. Tais órgãos, nos limites de suas atribuições, são o Ministério Público, cuja vontade expressam e ao qual seus atos devem ser imputados.
Independência e autonomia funcionais não constituem privilégios pessoais, mas prerrogativas indissociáveis do dever funcional, para cuja realização se preordenam. Em síntese, o Ministério Público – seja no âmbito cível seja no âmbito criminal – sempre foi e será o representante da sociedade: a sociedade-governante, opondo-se, de forma recorrente, ao estado-aparato e enfrentando no seu dia a dia verdadeiros projetos criminosos de poder.
Para tanto, deve buscar caminhos e instrumentos eficazes de atuação, que deverão pautar a eficiência de sua política criminal.
Não há novidade na constatação de que, sob a ótica meramente funcionalista, há uma influência decisiva do binômio tempo-eficiência, isto é, o processo deve terminar no menor tempo possível e com a máxima eficiência.
A rápida solução para controvérsias, de maneira mais eficiente do ponto de vista da economia processual, avulta na sociedade contemporânea, notadamente nas duas últimas décadas, que são marcadas pelo extraordinário desenvolvimento e sofisticação dos meios de comunicação. Trata-se da ideia de “Aldeia Global” , criada pela velocidade instantânea das informações em circulação pelo mundo e que repercute no direito penal e no processo penal, criando expectativas de eficiência, funcionalidade e celeridade.
Impõe-se, nessa medida, a análise específica do aspecto mais restrito da instrumentalidade do processo e direito penal , isto é, sua face empírica, pautada no consenso e na diversão.
Há que se buscar instrumentos que permitam concretamente a resolução de conflitos num tempo razoável, respeitadas e observadas rigorosamente as garantias individuais ligadas ao devido processo, e, em última análise, aos axiomas do garantismo que emanam da Constituição Federal.
Nossa análise, no presente artigo, está centrada, num primeiro momento, ao modelo de Justiça consensual, racional e orientada para resultados, em suas diversas manifestações, como instrumentos eficientes para a distribuição da Justiça e o encerramento dos conflitos criminais no menor tempo possível, com menor custo social e dentro do modelo garantista que norteou a Constituição da República.
Além disso, como salienta Vasco Rodriguez [4], a nenhum jurista atualizado terá passado despercebida a progressiva invasão da dogmática tradicional pelos novos conceitos da análise econômica do direito (AED), teoria que teve sua gênese nos Estados Unidos, no início da década de 60, inicialmente nos domínios do direito privado com três vertentes: a Escola de Chicago, a Escola de Yale e a terceira via defendida por Mercado Pacheco.
A teoria do Law and Economics já encontrou campo fértil no âmbito do direito processual penal – evidenciado pelo processo penal de resultados - bem como no direito penal, pautando-se pela análise da escolha racional, pelo equilíbrio e por critérios de eficiência, efetividade e eficácia, paradigmas naturais na prestação do serviço público (art. 37, CF).
No Brasil, no entanto, um agir assim, seja na produção legislativa, seja nos órgãos que integram o sistema de justiça e de segurança, ainda estão muito distantes ou, quando muito, apresentam-se de forma incipiente e não institucionalizada. As tentativas de reformas legislativa não têm surtido os efeitos desejados, seja porque extremamente fragmentadas, tímidas e revestidas – como se disse anteriormente – de mero caráter simbólico, seja porque violadas por antigas práticas burocratizantes, que lhes desvirtuam a própria essência.
Dois exemplos clássicos dessa afirmação podem ser encontrados justamente na Justiça Consensual (a timidez com que as regras do processo negociado foram concebidas, restringindo-se, em boa medida, aos juizados especiais criminais, em que o conceito de menor potencial ofensivo foi decidido por uma ficção pautada na pena e não pelos bens protegidos) e a adoção dos princípios de um processo oral (adotados e aplicados de forma incompleta, com os vícios burocratizantes hauridos dos processos escritos).
Em outras palavras, há necessidade de empenho e vontade política para se romper com sistemas e métodos que, embora arraigados ao usus fori, já se mostraram ineficientes.
Nesse esteio, busca-se demonstrar que as técnicas e instrumentos que decorrem de justiça negociada, orientada por critérios de transparência e eficiência na tomada de decisões (para legislar, prevenir, investigar e processar) podem ser ampliados, sem perplexidades e sem o risco de ofensa às garantias individuais, e os métodos de análise das ciências econômicas – a análise econômica do direito (AED) – não violam, se tomadas antes de tudo como um método de agir, as regras garantistas que devem permear a nossa política criminal.
Há uma tendência mundial para o chamado processo penal de resultados, que tem por escopo, em apertada síntese: (a) solução rápida e eficiente dos litígios; (b) a desburocratização da Justiça e sua maior aproximação ao ser consumidor; (c) permitir que o Magistrado e Ministério Público, mais do que solucionadores de mazelas e doenças, atentem para uma postura preventiva e, quando não possível, de mediadores de conflitos.
É nesse contexto que se insere a Justiça Consensual, em cuja espécie é possível identificar os modelos de justiça negociada (transação penal, suspensão condicional do processo, colaboração premiada etc.) e os acordos de não-persecução penal, recentemente inseridos em nosso ordenamento processual por força da Lei 13.964/2019, como previsão no seu artigo 28-A. Evidencia-se, portanto, uma clara antinomia e contraposição entre o consenso e a justiça imposta ou conflitual.
Não se propôs a adoção do modelo estadunidense em sentido estrito, não só pela pluralidade de ordenamentos e heterogeneidade de fontes, mas principalmente pelas estruturas próprias e peculiares do Ministério Público e Poder Judiciário naquele País. Do mesmo modo, não se almejou a aplicação inflexível do chamado adversarial system que, ao mesmo tempo em que torna o magistrado um autêntico árbitro, dá ao órgão da acusação um amplo poder de negociação pautado em critérios absolutamente incompatíveis com o ordenamento brasileiro.
O artigo 28-A do Código de Processo Penal, pautado na celeridade e eficiência, estabelece que, não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstanciadamente a prática da infração sem violência ou grave ameaça à pessoa, com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor o acordo de não persecução penal, presentes determinados requisitos e, dentre eles, a necessária e fundamental reparação do dano, demonstrando inequívoca preocupação do legislador com o papel da vítima no processo criminal.
Trata-se, à semelhança do que ocorre com a transação penal, de um acordo com concessões recíprocas, pautado, portanto, no consenso, na convergência de vontades, sem o qual não pode ser efetivado.
Quando se fala em eficiência do processo alguns equívocos recorrentes ou, pelo menos, exageros maniqueístas merecem análise. De um lado, os defensores do chamado processo de resultados, buscando, a qualquer custo, a máxima eficiência e economia processuais; de outro lado, os detratores da expressão eficiência, que veem nesse sistema uma forma de limitação de direitos e garantias individuais e afronta aos axiomas garantistas.
Em direito, os conceitos de eficiência e eficácia são facilmente identificáveis, de acordo com a finalidade do processo almejada (instrumental; garantia contra o arbítrio Estatal ou conjunto de instrumentos e procedimentos assecuratórios dos direitos e garantias das partes dentro de um processo justo). A efetividade, no entanto, que é o próprio atingimento do resultado verdadeiro, apresenta-se na área do direito, especialmente o processual penal, como algo bastante fluido: paz social, vigência do estado de direito ou segurança pública e preservação da dignidade humana.
Em outras palavras, em matéria de direito processual penal, os conceitos de eficiência, eficácia e efetividade – de acordo com os diversos cortes ideológicos que possam merecer – devem ser conjugados para se buscar um conceito e resultados adequados.
Não parece possível, no contexto de um Estado Democrático de Direito, conceber-se um processo que busque, a todo custo e com a máxima economia processual, a punição, como também não é razoável que em nome da suposta preservação de premissas garantistas, o abuso no emprego de um falso sistema de direitos, de modo a sacrificar a segurança pública, paz social e notadamente os direitos das vítimas, tão esquecidas pela nossa legislação.
Em suma, não é por meio de uma fórmula matemática e economicista que se atingirá a paz social e tampouco por meio de digressões ucrônicas, filosóficas e divorciadas da realidade que se poderá assegurar, no processo, um resultado justo, indene aos arbítrios estatais e que, ao mesmo tempo, evite a perda de referências cognitivas na ideia de Estado de Direito e fomente o justiçamento privado.
Portanto, um processo penal eficiente tem um claro caráter instrumental, concreto, empírico, dentro de um sistema de direitos e garantias das partes, assegurados num procedimento que se desenvolva num prazo razoável, para se atingir um resultado justo. Dentro dessa ótica, é perfeitamente possível a compatibilização do processo penal consensual, dos procedimentos abreviados e de regras típicas do processo oral, com um processo de inspiração garantista e não retoricamente paternalista.
Há quem negue, como disse, peremptoriamente o caráter instrumental do processo, com argumento que beira o silogismo erístico, ou seja, de que o consenso em matéria penal representará a ocisão dos direitos e garantias individuais, que não são compatíveis com o poder dispositivo das partes.
O equívoco nesse entendimento parece estar centrado, em primeiro lugar, na ideia maniqueísta que contrapõe (e não admite a conjugação) entre o poder punitivo Estatal e as garantias individuais que emanam do devido processo legal; em segundo lugar, na falsa premissa de que um processo penal consensual (Justiça Negociada) é inconciliável com a preservação dos direitos e garantias individuais e o devido processo legal, isto porque, no primeiro caso, o direito em jogo tem índole patrimonial, privada e disponível; e, a segunda hipótese, cuida de interesse público e indisponível.
Para os defensores radicais desse ponto de vista, o réu não é objeto do processo (como se via na origem do processo) e nem sujeito de direitos (como é encarado no direito contemporâneo), mas um autêntico objeto de estudo acadêmico, enquanto o processo nada mais é do que um fenômeno a ser dissecado e estudado academicamente.
Em outras palavras, o acusado nesse processo penal é alijado da sua autodeterminação. Trata-se de um ente desprovido de vontade e que não tem a capacidade de avaliar, para ele próprio, qual seria a melhor e mais conveniente maneira de enfrentar a opção Estatal em face da via reativa adotada, isto é, o consenso ou o conflito.
Além disso, não seria desarrazoado afirmar-se que uma rigorosa punição poderia ocorrer num momento em que não mais se mostrasse, do ponto de vista individual ou social, necessária e suficiente, posto que não alcançada pela prescrição .
Em outras palavras, seria razoável exigir-se do réu a submissão a uma pena mais gravosa, em nome de uma suposta medida garantista, que lhe retira o poder dispositivo e a possibilidade de chegar a um consenso que, concretamente, lhe seja mais favorável? Por certo, a resposta é negativa.
O falso conceito de que consenso e garantismo são institutos que necessariamente se contrapõem e excluem, talvez esteja fundado, como se disse, num modelo de Justiça Negociada oriunda do direito norte-americano, cujos vícios encontrarão consistente proteção na sistemática brasileira, na qual se adota, dentre outras técnicas, o chamado inquisitorial system, que não retira do juiz o poder instrutório e não o coloca como um mero espectador inerte, permitindo-lhe inclusive, quando for o caso, declarar o réu indefeso.
Um processo penal eficiente e eficaz é aquele que permita, no menor tempo possível, dentro do critério da razoabilidade, da estrita legalidade e da observância aos direitos e garantias individuais ligados ao devido processo legal, o atingimento de um resultado que seja justo e se aproxime do fim colimado, qual seja, a segurança pública e a paz social, mas não à custa de subtrair do indivíduo – da forma que melhor lhe convier – todos os instrumentos de defesa contra o eventual abuso do poder punitivo Estatal.
Já a política criminal racional deveria ser aquela que, longe de adivinhações, é planejada e traçada para uma atuação preventiva menos custosa socialmente e para uma investigação e repressão mais eficientes.
Nesse sentido, repita-se, no contexto da pós-modernidade (novos bens alçados à proteção jurídico-penal, globalização e revolução dos meios de comunicação), frente às novas formas de criminalidade que muito se distanciam do modelo clássico de inspiração iluminista (criminalidade organizada transnacional, terrorismo, criminalidade econômico-financeira) e, sobretudo, no contexto de um Estado Democrático de Direito, a política criminal (política legislativa, do sistema de segurança e agentes do sistema de justiça), tem o dever de ser construída orientada para as consequências, com critérios mínimos de racionalidade e eficiência.
Com especial atenção à advertência de José Carlos Barbosa Moreira, no sentido de que "...nenhuma 'revolução' puramente processual é suscetível, por si só, de produzir, na estrutura jurídico-social, modificações definitivas..." , e considerando que a sensação de impunidade que se difundiu na opinião pública deve-se, em grande parte, ao sistema processual penal antigo (remontando a 1941) e dissociado da realidade, nossa proposta está assentada na premissa de que a legislação brasileira deve se alinhar, em definitivo, a estruturas que privilegiem a adoção de instrumentos consensuais para a solução de conflitos, de acordo com as peculiaridades do direito brasileiro, a partir da implementação, no Ministério Público, de laboratórios de jurimetria, sob a forma de agências que, além de corpo técnico – analistas de dados, peritos etc – seja criada e pensada de acordo com as disfunções sociais e não simplesmente por território. Em suma, a adoção do processo penal consensual no Brasil impõe a conformação do Ministério Público ao perfil traçado pela Constituição Federal de 1988, com a adoção de estratégias criminais de atuação claras e consistentes.
2. MOMENTO PARA A PROPOSTA DE ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
A recente reforma processual penal, que introduziu em nosso ordenamento os acordos de não persecução penal, apresenta deficiências que precisam ser pontualmente corrigidas, mas já é o primeiro passo para se adotar no processo penal brasileiro sistemas que privilegiam a solução rápida de conflitos, com ações resolutivas e não demandistas, que, no fundo, são criticáveis pois transferem ao Poder Judiciário a solução de questões sociais.
A despeito disso, recentemente surgiu relevante polêmica sobre o momento para a aplicação dos acordos de não persecução penal. Na verdade, restabelece-se um debate que já havia sido pacificado no Colendo Supremo Tribunal Federal em relação à transação penal.
O acordo de não persecução penal (tal como a transação) tem um momento próprio para ser ofertado, ou seja, a audiência preliminar que antecede o oferecimento da denúncia ou, excepcionalmente, depois de iniciada a ação, mas sempre antes de recebida a inicial.
É esse aliás o posicionamento adotado pelo Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça, em acórdão da lavra do Eminente Des. Dante Busana (Embargos de Declaração nº 39.355-0/1-01, São Paulo, de 02 de Setembro de 1998), que, na oportunidade, fez alusão a decisão da Colenda Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (Habeas Corpus nº 77.216-8, de 21 de Agosto de 1998, p. 04, Rel. Min. Sepúlveda Pertence), anotando que a possibilidade de transação fica preclusa com o oferecimento da denúncia ou, pelo menos, com o seu recebimento.
O Acordo de não persecução penal (ANPP) traduz num acordo com concessões recíprocas. É intuitivo que não deve ser concedido, exclusivamente, em atenção ao interesse unilateral do acusado. Quando o instituto incida após o limiar da ação – o que, em princípio, é inadmissível e inconveniente – o seu grau de exigência não pode ser o mesmo peculiar às situações ordinárias. É que o esforço consumido com a realização dos atos a utilidade da medida para a sociedade.
Pelo sistema adotado no ANPP (também presente na transação penal), antes de iniciada a ação penal, o órgão titular da ação penal, valendo-se de critérios de discricionariedade controlada (obrigatoriedade mitigada), presentes os requisitos do art.28-A, poderá propor o acordo de não persecução penal ou a transação penal.
Nesse acordo ganha a sociedade pela economia processual, pois o dominus litis poderá se dedicar com mais tempo a outros casos de maior complexidade; também ganha o investigado, que não será considerado reincidente; não será considerado portador de maus antecedentes e, mais do que isso, estará livre dos ônus representados pela simples instauração e trâmite de um processo criminal.
Não se trata do probation system do direito anglo-saxão, pois neste a suspensão ocorre depois de reconhecida a culpabilidade do acusado, e tampouco apresenta qualquer similitude mais significativa com o instituto da suspensão condicional da pena, que decorre de sentença penal condenatória, ao cabo do devido processo, com todos os seus consectários (contraditoriedade, ampla defesa, paridade de armas etc.).
Resta claro, notadamente pela cogente necessidade de aceitação da proposta pelo acusado e seu defensor, a natureza consensual da medida. Somente será aplicável se houver acordo entre as partes (acusação e defesa) que, em seguida, o submeterão à apreciação do julgador para fins de homologação.
A medida que ora se pretende aplicar representa, atualmente, importante instrumento de prevenção geral, com uma resposta rápida do Estado à sociedade, e prestígio da Justiça, que apresentará soluções ágeis para delitos de média potencialidade ofensiva, prelevando-se as ‘grandes causas criminais’, que hão de merecer maior cuidado e atenção.
Entretanto, a sua concessão depois de iniciada a ação penal representa – no esteio do elucidativo entendimento do Colendo Supremo Tribunal Federal – um desvirtuamento da natureza jurídica do instituto, desviando-o da finalidade para a qual ele foi concebido. A aplicação do ANPP àqueles feitos em andamento - mesmo depois de superado o momento limite do oferecimento da denúncia - suscitou muitos debates, extremando-se os posicionamentos.
O instituto do ANPP, é irretorquível, traz em si um conteúdo de direito eminentemente material, pois devidamente cumprido, resultará na extinção da punibilidade.
De outra parte, como prelecionam Nélson Hungria e Heleno Cláudio Fragoso :
Mais favorável, sem dúvida alguma, é a lei nova quando admite uma causa extintiva da punibilidade, de que não cogitava a lei antiga. Assim, no tocante à reabilitação (desconhecida do Código de 1890), o Código atual tem efeito retroativo, isto é, abrange as penas acessórias decorrentes de condenações anteriores à sua vigência.
Também retroativa é a lei nova, por mais benigna, quando facilita a superveniência de causas de extinção de punibilidade já anteriormente previstas, como quando, por exemplo, abrevia o prazo da prescrição.
Em suma, conquanto o acordo de não persecução penal obste o desenrolar de atos do procedimentais, dele isentando, pelo menos temporariamente, o suposto autor do fato, é indiscutível que atinge a relação material e a própria punibilidade, devendo, portanto, retroagir em benefício do acusado.
No entanto, como já foi frisado anteriormente, o acordo deve ser proposto antes da propositura da ação ou, no máximo, até o recebimento da denúncia.
Os limites da aplicação retroativa da "lex mitior" vão além da mera impossibilidade material de sua aplicação ao passado, pois ocorrem, também, ou quando a lei posterior, malgrado retroativa, não tem mais como incidir, à falta de correspondência entre a anterior situação do fato e a hipótese normativa a que subordinada a sua aplicação, ou quando a situação de fato no momento em que essa lei entra em vigor não mais condiz com a natureza jurídica do instituto mais benéfico e, portanto, com a finalidade para a qual foi instituído." (Diário da Justiça de 20 de dezembro de 1996, suplemento Informativo do STF, Brasília, 18 de dezembro de 1996 - nº 57).
E é precisamente esta a hipótese em estudo.
Reitera-se: o ANPP traduz um acordo com concessões recíprocas. É intuitivo que não deve ser concedido, exclusivamente, em atenção ao interesse unilateral do acusado.
O instituto não pode incidir após o limiar da ação – o que é inadmissível e inconveniente. É que o esforço consumido com a realização dos atos instrutórios reduz a utilidade da medida para a sociedade. Se esta já tem a perspectiva concreta de um título condenatório, nem mesmo excepcionalmente convirá sua aplicação, evitando-se, assim, que se converta em último refúgio do imputado, em busca da impunidade.
Pelo sistema adotado, no limiar da ação penal, o órgão titular da ação penal, valendo-se de critérios de discricionariedade controlada (ou obrigatoriedade mitigada), propõe o acordo com vistas à exclusão do processo.
Não há novidade na constatação de que a Lei deve ser aplicada como ela é e não como o intérprete gostaria que fosse.
É preciso resistir à tentação de se substituir ao legislador, máxime naqueles casos em que a lei não previu uma forma menos rigorosa de expiação. Não é possível que, a pretexto de se interpretar o texto legislativo, o exegeta se afaste da sua ratio, criando uma nova situação jurídica não desejada e nem concebida implicitamente pela mens legislatoris.
Consoante a lúcida advertência de Carlos Maximiliano, o Direito interpreta-se “inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providência legal ...à que torne aquela sem efeito, inócua...” [5].
De fato, constitui até mesmo um truísmo que, na Hermenêutica Jurídica digna desse qualificativo, “prefere-se o sentido conducente ao resultado mais razoável”, pois “é antes de crer que o legislador haja querido exprimir o consequente e adequado à espécie do que o evidentemente...descabido”.[6]
Fere, data venia, a lógica do razoável falar-se “acordo de não-persecução penal” com a instrução encerrada e a condenação virtualmente efetivada.
A impropriedade da medida no curso de ação penal fica evidente pelos próprios termos do artigo 28, § 8º, do CPP, do qual se infere que, recusada a proposta, o juiz encaminhará os autos ao MP para a complementação de investigações ou o oferecimento da denúncia, o que pressupõe, como é evidente, que a ação penal não esteja em curso, até porque o MP, nos termos do artigo 42 (não revogado pela novel legislação), não pode desistir da ação da ação que haja proposto.
Mas não é só.
Apreciando semelhante questão, Frederico Marques:
Outro equívoco que nos parece deva ser apontado, é o de considerar a exigência da “queixa” ou da “representação” na lex posterior, como circunstância benéfica para o réu que obrigue a nova lei a retroagir.
No caso apontado, é preciso estabelecer uma distinção. Se a lei nova, ao tornar-se obrigatória, encontra o fato pretérito ainda não submetido à persecutio criminis, esta só poderá iniciar-se por provocação do ofendido, não porém por ser lex mitior, e sim pela regra intertemporal de que as normas processuais têm incidência imediata. Mas, se iniciada a persecução, correrá o caso com o Ministério Público ou será necessária a querela? Em nosso entendimento, se a lei nova exigir a queixa, o ofendido deverá assumir as funções acusatórias, - porquanto a perempção e o perdão, institutos que se ligam ao direito de queixa – têm o caráter de condição negativa da punibilidade.
Quando estiver em foco a representação, tudo depende da fase em que se encontrar a persecutio criminis: se o caso ainda se encontra afeto à polícia, o ofendido precisa representar à autoridade competente porque a decadência da representação e a renúncia desta antes da propositura da ação penal, se apresentam também como condições negativas de punibilidade; mas se a acusação pública já foi intentada e a instância já se instaurou, não incide a lei nova porque então não se há falar em renúncia da representação, vigorando plenamente os preceitos de direito processual intertemporal[7].
Na mesma linha, Heleno Cláudio Fragoso:
Se a lei nova torna privada a anterior ação penal pública, aplica-se também de imediato. Se não tiver sido iniciada a ação penal, será indispensável a queixa, observando-se o prazo de decadência, contado a partir da vigência da nova lei. Se já tiver sido iniciada a ação penal, deve o ofendido assumir as funções de acusador.
No que tange à representação: será indispensável se a ação penal ainda não se iniciou. Após o início da ação penal, será irrelevante a lei nova que subordina à representação [...] Se o processo já tiver sido iniciado por denúncia, irrelevante será a exigência da nova lei, devendo prosseguir a ação penal em curso[8].
A questão, aliás, já foi objeto de análise pelo Colendo Supremo Tribunal Federal quando discutia se o instituto da suspensão condicional do processo poderia ser aplicado aos casos com decisão condenatória já proferida.
Nessa oportunidade, entendeu o E. Supremo Tribunal Federal que o art. 89 da Lei 9.099/1995, também norma de conteúdo misto com efeitos benéficos, não poderia ser aplicado depois da condenação penal:
HABEAS CORPUS – SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO PENAL (“SURSIS PROCESSUAL”) – LEI Nº 9.099/95 (ART. 89) – CONDENAÇÃO PENAL JÁ DECRETADA – IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO RETROATIVA DA LEX MITIOR – LIMITES DA RETROATIVIDADE – PEDIDO INDEFERIDO.
A suspensão condicional do processo – que constitui medida despenalizadora – acha-se consubstanciada em norma de caráter híbrido. A regra inscrita no art. 89 da Lei nº 9.099/95 qualifica-se, em seus aspectos essenciais, como preceito de caráter processual, revestindo-se, no entanto, quanto às suas consequências jurídicas no plano material, da natureza de uma típica norma de direito penal, subsumível à noção da lex mitior.
A possibilidade de válida aplicação da norma inscrita no art. 89 da Lei nº 9.099/95 – que dispõe sobre a suspensão condicional do processo penal (“sursis” processual) – supõe, mesmo tratando-se de fatos delituosos cometidos em momento anterior ao da vigência desse diploma legislativo, a inexistência de condenação penal, ainda que recorrível. Condenado o réu, ainda que em momento anterior ao da vigência da Lei dos Juizados Especiais Criminais, torna-se inviável a incidência do art. 89 da Lei nº 9.099/95, eis que, com o ato de condenação penal, ficou comprometido o fim precípuo para o qual o instituto do “sursis” processual foi concebido, vale dizer, o de evitar a imposição da pena privativa de liberdade. Precedente. (HC 74463/SP, Primeira Turma, Rel. Min. Celso de Mello, j. 10/12/1996, DJ 07/03/1997 – v.u.)
Tratando do tema, a Primeira Turma do STF, julgando o HC-AgR nº 191.464, firmou a seguinte tese: “o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia” (Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Sessão Virtual de 30.10.2020 a 10.11.2020, dje de 13/11/2020).
No mesmo sentido no STF:
EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. WRIT SUCEDÂNEO DE RECURSO OU REVISÃO CRIMINAL. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. RETROATIVIDADE, NO PONTO, DA LEI 13.964/2019. INVIABILIDADE. JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE NO SENTIDO DE QUE A RETROATIVIDADE SOMENTE ATINGE CASOS ANTERIORES À ENTRADA EM VIGOR DE REFERIDA LEI QUANDO AINDA NÃO RECEBIDA A DENÚNCIA.
1. Inadmissível o emprego do habeas corpus como sucedâneo de recurso ou revisão criminal. Precedentes.
2. A jurisprudência da Primeira Turma deste STF fixou a tese de que ’o acordo de não persecução penal (ANPP) aplica-se a fatos ocorridos antes da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a denúncia’. (HC 191.464-AgR/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 25.11.2020).
3. No caso, a denúncia foi recebida em 25.9.2012 (evento 2, fl 108), momento muito anterior à entrada em vigor da Lei 13.964/2019. Inclusive, quando da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, já havia sentença condenatória (evento 6, fls. 19/48) confirmada pelo Tribunal Regional (evento 8, fls 13/15). Assim, nos termos da jurisprudência desta Corte, inadmissível a pretensão veiculada nesta sede processual.
4. Agravo regimental conhecido e não provido. (HC 190855 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 03/05/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-090 DIVULG 11-05-2021 PUBLIC 12-05-2021)
EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Matéria criminal. Decisão pela inadmissibilidade de natureza mista. Capítulo em que se aplica a sistemática da repercussão geral. Não cabimento de recurso dirigido ao Supremo Tribunal Federal. Questões remanescentes. Prequestionamento. Ausência. Acórdão do Tribunal de origem fundamentado em legislação infraconstitucional (Código Penal). Ofensa reflexa à Constituição. Reexame de fatos e provas inadmissível em sede de recurso extraordinário. Incidência da Súmula nº 279/STF. Precedentes. Pedido incidental de análise de acordo de não persecução penal (Lei nº 13.964/19). Inviabilidade. Retroatividade que alcança apenas casos em que ainda não tenha sido recebida a denúncia. Precedente. Agravo regimental não provido. (ARE 1267798 AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 31/05/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-138 DIVULG 09-07-2021 PUBLIC 12-07-2021)
“(...) 1. A Lei nº 13.964/2019, no ponto em que institui o acordo de não persecução penal (ANPP), é considerada lei penal de natureza híbrida, admitindo conformação entre a retroatividade penal benéfica e o tempus regit actum. 2. O ANPP se esgota na etapa pré-processual, sobretudo porque a consequência da sua recusa, sua não homologação ou seu descumprimento é inaugurar a fase de oferecimento e de recebimento da denúncia. 3. O recebimento da denúncia encerra a etapa pré-processual, devendo ser considerados válidos os atos praticados em conformidade com a lei então vigente. Dessa forma, a retroatividade penal benéfica incide para permitir que o ANPP seja viabilizado a fatos anteriores à Lei nº 13.964/2019, desde que a denúncia não tenha sido recebida. (...)”. (RE 1330220, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Julgamento: 25/06/2021, Publicação: 29/06/2021)
E o Superior Tribunal de Justiça também acolheu esse entendimento em diversos precedentes (grifos nossos):
AGRAVO REGIMENTAL NA PETIÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PRETENSÃO DE REALIZAÇÃO DE ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. LEI N. 13.964/2019. MATERIA NÃO ANALISADA PELO EG. TRIBUNAL DE ORIGEM. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. NÃO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS LEGAIS. DECISÃO MONOCRÁTICA MANTIDA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
I. O agravo regimental deve trazer novos argumentos capazes de alterar o entendimento anteriormente firmado, sob pena de ser mantida a r. decisão vergastada por seus próprios fundamentos.
II - O pleito não reúne condições de acolhimento, pois o referido dispositivo de lei federal infraconstitucional, nos termos do que mencionado na petição anteriormente apresentada (art. 28-A, do CP - acordo de não persecução penal), não foi objeto de específico debate perante o eg. Colegiado a quo, tampouco o Ministério Público, legitimado a oferecer o referido acordo, nos termos do que dispõe o art. 28-A, do Código de Processo Penal, o fez.
III - A pretensão defensiva, que caberia para fatos anteriores à Lei n. 13.964/2019 caso não houvesse recebimento da denúncia, é incompatível tendo em vista o encerramento da prestação jurisdicional com a condenação do agravante. Agravo regimental desprovido. (AgRg na PET no AREsp 1668089/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 20/10/2020, DJe 29/10/2020).
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESVIO DE VERBAS PÚBLICAS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. RETROATIVIDADE SOMENTE POSSÍVEL AOS PROCESSOS EM CURSO ATÉ O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. SITUAÇÃO NÃO VERIFICADA NA HIPÓTESE. FIXAÇÃO DA REPRIMENDA. CONCURSO EVENTUAL DE PESSOAS. POSSIBILIDADE DE MAJORAÇÃO DA PENA-BASE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 83 DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. Consoante entendimento pacificado no âmbito desta Corte, a possibilidade de aplicação retroativa do instituto relativo ao acordo de persecução penal, previsto no art. 28-A do CPP, inserido pela Lei n. 13.964/2019, somente é possível aos processos em curso até o recebimento da denúncia, situação não verificada na espécie.
2. Segundo a orientação deste Superior Tribunal, não há ilegalidade na majoração da pena-base, em razão do concurso de pessoas, quando se trata de crime que admite o concurso eventual, porquanto não se trata de circunstância ínsita ao tipo penal. Incidência da Súmula n. 83 do STJ.
3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp 1561858/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 11/05/2021, DJe 18/05/2021)
Tenha-se que nesse sentido já acolheu a 13ª Câmara de Direito Criminal deste egrégio Tribunal de Justiça, ao julgamento do Habeas Corpus Criminal nº 2044250-89.2020.8.26.0000, Relator Desembargador França Carvalho, j. 03.04.2020:
[...] Com efeito, se trata de norma processual penal, incidindo o artigo 2° do Código de Processo Penal, que dispõe, de forma expressa, que 'a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior', consagrando o denominado princípio tempus regit actum.
Assim, aos processos em curso, em que já tenha sido ofertada a denúncia antes da vigência da nova lei (cf. fls. 11/55), o exercício do direito de ação foi regular e, como tal, não sofre impacto com o novel diploma legal, não se exigindo a condição de procedibilidade em questão, eis que se trata de ato jurídico perfeito, que atingiu sua eficácia sob a égide da norma jurídica anterior.
Ademais, não havendo qualquer ressalva feita pelo legislador a exigir a incidência de referida condição aos processos em curso, como o fez outrora no artigo 91, caput, da Lei 9.099/95, não há que se falar em aplicação da nova lei para se exigir representação do ofendido nos processos já instaurados com o regular exercício do direito de ação pelo Ministério Público” (fls. 79 a 81) [...]
Discussão semelhante se estabeleceu com a vigência da Lei nº 13.964/2019 e a retroatividade da exigência da representação para o prosseguimento da ação penal. Decidiu a Colenda 4ª Câmara de Direito Criminal do TJSP, ao tratar do tema:
HABEAS CORPUS. ESTELIONATO TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL OU SUSPENSÃO DO PROCESSO NOVA LEI Nº 13.964/19 - AÇÃO PENAL CONDICIONADA A REPRESENTAÇÃO DENÚNCIA OFERECIDA E RECEBIDA - CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE QUE DEVE SER EXAMINADA ANTES DO OFERECIMENTO DA INICIAL ACUSATÓRIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. ORDEM DENEGADA. (TJSP; Habeas Corpus Criminal 0001131-15.2020.8.26.0000; Relator (a): Ivana David; Órgão Julgador: 4ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Itapeva - 1ª. Vara Judicial; Data do Julgamento: 10/03/2020; Data de Registro: 17/03/2020).
Nessa mesma linha é o precedente do Superior Tribunal de Justiça:
REsp 97731 / RS. RECURSO ESPECIAL. 1996/0035855-9. Relator(a) Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA (1106). Órgão Julgador. T5 - QUINTA TURMA Data do Julgamento 02/12/1997; Data da Publicação/Fonte DJ 02/03/1998 p. 129.
Ementa: RECURSO ESPECIAL. LEI 9.099/95. REPRESENTAÇÃO. LESÃO CORPORAL CULPOSA. DENUNCIA E SENTENÇA ANTERIORES A NOVA EXIGENCIA. - IMPOSSIBILIDADE DE RETROAÇÃO DO ART. 91 PARA ENSEJAR A REPRESENTAÇÃO. AO TEMPO DA DENUNCIA E DE SENTENÇA, NÃO EXIGIA A LEI A REPRESENTAÇÃO. A CONDIÇÃO DE PROSSEGUIBILIDADE NÃO SE APLICA A HIPOTESE DE JA TER SIDO PROFERIDA A SENTENÇA (TEMPUS REGIS ACTUM).
- RECURSO NÃO CONHECIDO.
3. Conclui-se, pois, que o princípio tempus regit actum fixa o momento processual de aferição da condição de procedibilidade da ação penal pública e, sob outro ângulo, fixa o momento processual de aferição da condição negativa de punibilidade, consubstanciadas na representação do ofendido, por incidência já do disposto artigo 102 do Código Penal e dos artigos 2º, 25 e 42, todos do Código de Processo Penal; de modo que a lei nova que cria condicionante de representação do ofendido não retroage na hipótese em que a denúncia foi validamente oferecida e recebida sob a vigência da lei anterior.
Tenha-se, outrossim, que essa conclusão fica revigorada, quando se consideram, no exame do tema, os comandos constitucionais do artigo 5º, caput e incisos XXXV, XXXVI e XLVI, e artigo 129, I, à luz da vedação constitucional de proteção deficiente dos direitos fundamentais de todo e qualquer cidadão.
De resto, como se disse, em atenção à advertência de José Carlos Barbosa Moreira, é certo que "...nenhuma 'revolução' puramente processual é suscetível, por si só, de produzir, na estrutura jurídico-social, modificações definitivas..."[9] se não for acompanhada de uma verdadeira mudança de mentalidade. É esse o desafio que se coloca ao processo penal consensual e as medidas a ele inerentes.
3.1. Os acordos de não persecução penal estão atrelados ao monopólio da ação penal (CF, 129, I) e a legitimidade para sua propositura é, portanto, privativa do órgão do Ministério Público, em atenta e cuidadosa análise dos requisitos objetivos e subjetivos prescritos pelo artigo 28-A, do Código de Processo Penal.
3.2. Tratando-se de acordo com concessões recíprocas, o ANPP não pode ser proposto em atenção ao interesse unilateral do acusado e em qualquer momento processual ou após o trânsito em julgado da condenação, sob pena de tornar-se um refúgio para a impunidade, desvirtuando o próprio significado do processo penal consensual.
3.3. Fere a lógica do razoável falar-se “acordo de não-persecução penal” com a instrução encerrada e a condenação virtualmente efetivada.
3.4. A impropriedade da medida no curso de ação penal fica evidente pelos próprios termos do artigo 28, § 8º, do CPP, do qual se infere que, recusada a proposta, o juiz encaminhará os autos ao MP para a complementação de investigações ou o oferecimento da denúncia, o que pressupõe, como é evidente, que a ação penal não esteja em curso, até porque o MP, nos termos do artigo 42 (não revogado pela novel legislação), não pode desistir da ação da ação que haja proposto.
3.5. Não há novidade na constatação de que a Lei deve ser aplicada como ela é e não como o intérprete gostaria que fosse. É preciso resistir à tentação de se substituir ao legislador, máxime naqueles casos em que a lei não previu uma forma menos rigorosa de expiação.
Não é possível que, a pretexto de se interpretar o texto legislativo, o exegeta se afaste da sua ratio, criando uma nova situação jurídica não desejada e nem concebida implicitamente pela mens legislatoris. Nenhuma mudança puramente processual poderá surtir efeito se não for acompanhada de uma autêntica mudança de mentalidade do operador do direito. É esse o desafio que se coloca ao processo penal consensual e as medidas a ele inerentes.
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[1] Procurador de Justiça de Habeas Corpus e Mandados de Segurança Criminais (MP/SP)
[2] Doutor e mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP); Professor nos programas de graduação e pós-graduação estrito sensu da PUC/SP; Procurador de Justiça de Habeas Corpus e Mandados de Segurança em São Paulo.
[3] Cf. MARCELO CAETANO – Manual de Direito Administrativo. Lisboa, 1965, p. 154.
[4] Análise Econômica do Direito (2ª ed.), Coimbra, Almedina, 2016, p.36.
[5] Cf. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 6ª ed., São Paulo: Freitas Bastos, 1957, n. 179, p. 210.
[6] Cf. ob. e loc. cit.
[7] Curso de Direito Penal – volume I, Saraiva, 1954, pp. 194/195.
[8] Lições de Direito Penal – A Nova Parte Geral, Forense, 12ª ed., 1990, p. 104.
[9] A Função Social do Processo Civil Moderno e o Papel do Juiz e das Partes na Direção e na Instrução do Processo, Revista de Processo (37):141, janeiro/março de 1985, Ed. Revista dos Tribunais.
Mestrando em Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (São Paulo, Capital; Brasil); Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, integrante do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado – GAECO, Núcleo da Capital; Professor do curso Estratégia Carreiras Jurídicas e do Curso de Pós-Graduação em Direito (Unileya). [email protected]
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
Por: BRUNA RAFAELI ARMANDO
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