RESUMO: O regime jurídico a regular a hipótese de concessão mercantil de veículos automotores é o da Lei n. 6.729, de 1979, com a redação dada pela Lei n. 8.132, de 1990, bem como as estipulações das convenções da categoria econômica envolvida e das convenções de marca. A Lei Ferrari além de estabelecer condutas básicas do relacionamento entre o concedente e o concessionário, estabeleceu a criação das convenções de marca e de categorias econômicas tendo em vista o caráter dos contratos de concessão de permanência do vínculo contratual, de mutabilidade das relações e do mercado automobilístico. Essa mesma lei atribuiu às convenções da marca a competência para disciplinar o regime de penalidades gradativas, que visa impedir que um dos contratantes seja surpreendido com a resolução do contrato de concessão.
Palavras-chave: Contrato. Concessão comercial. Quotas. Deveres anexos.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. A QUALIFICAÇÃO NEGOCIAL NOS CONTRATOS DE CONCESSÃO COMERCIAL DE VEÍCULOS AUTOMOTORES E AS SUAS ESTIPULAÇÕES GERAIS; 3 O REGIME JURÍDICO DO CONTRATO DE CONCESSÃO COMERCIAL DE VEÍCULOS AUTOMOTORES E A SUA NATUREZA RELACIONAL; 4. OS DIREITOS, GARANTIAS INDENIZATÓRIAS CONFERIDAS AO CONCESSIONÁRIO, A BASE OBJETIVA DO CONTRATO DE CONCESSÃO COMERCIAL DE VEÍCULOS AUTOMOTORES E A IMPOSSIBILIDADE DE REDUÇÃO UNILATERAL DA QUOTA DE FORNECIMENTO DE VEÍCULOS; 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS.
1. Introdução
A dinâmica da atividade empresarial, incrementada pela intensa circulação de produtos e serviços em busca do melhor atendimento ao mercado de consumo, faz com que os empresários utilizem métodos de aproximação aos consumidores por meio de outros empresários individuais ou sociedades empresárias (FERNANDES, 2007).
Instaura-se, assim, uma intensa rede de colaboração entre o produtor, fornecedor e intermediários para que os produtos e serviços possam chegar de uma maneira rápida, eficiente e segura aos consumidores.
Na circulação de produtos surgem os contratos de representação comercial, agência, comissão e mandato mercantil, que integram o conjunto dos chamados contratos de colaboração empresarial por aproximação, além dos contratos de distribuição e concessão mercantil (comercial) na categoria dos contratos de colaboração empresarial por intermediação.
Segundo Coelho (2012, p. 112), contratos de colaboração empresarial para o escoamento de mercadorias “são aqueles em que um dos contratantes (empresário colaborador) se obriga a criar, consolidar ou ampliar o mercado para o produto do outro contratante (empresário fornecedor)”.
Os contratos de colaboração, portanto, instrumentalizam o escoamento de mercadorias, dividindo-se em duas espécies. Na primeira inserem-se os contratos de distribuição e concessão mercantil, sendo o núcleo da operação a compra pelo colaborador da mercadoria fabricada ou comercializada pelo fornecedor para revendê-la (colaboração por intermediação). Na segunda espécie, enquadram-se os contratos de representação comercial autônoma, agência, mandato e comissão mercantil, onde não ocorre a compra da mercadoria para revenda (colaboração por aproximação).
No campo dos contratos de colaboração por intermediação o escoamento de produtos se expressa em duas formas importantes de contratação: os contratos atípicos de distribuição e de concessão mercantil.
O contrato de concessão mercantil, porém, comporta uma única forma tipificada, ou seja, quando envolve o negócio jurídico de distribuição de veículos automotores, de via terrestre, devendo se efetivar por meio de concessão comercial entre produtores e distribuidores, disciplinado pela Lei n. 6.729/1979 - que precisamente ora nos interessa –, voltado para o objetivo final de alcançar e ampliar mercados.
A proposta, portanto, deste artigo é analisar, no contexto da teoria obrigacional e sob a perspectiva constitucional, o correto enquadramento jurídico do contrato de concessão comercial de veículos automotores, os direitos e garantias conferidas às suas partes, especificamente as implicações resultantes da redução unilateral da quota de veículos pela concedente.
2. A qualificação negocial nos contratos de concessão comercial de veículos automotores e as suas estipulações gerais
A doutrina registra que na identificação das relações jurídicas que envolvem os agentes econômicos, importa examinar os elementos constitutivos e componentes do núcleo do negócio jurídico que se analisa: data, lugar, agentes, objeto, forma, circunstâncias negociais, vontade do declarante e a causa negocial (NERY JÚNIOR, 2011, p. 481). Nas palavras de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (2005, p. 222), o negócio jurídico existe:
[...] quanto é causado. Quando, potencialmente, tem aptidão para produzir os efeitos decorrentes de sua função jurídica, delineada segundo a sua essência. Compõem-se o negócio jurídico, constituindo-se em elementos necessários à sua existência: a) o agente (qualidade de ser sujeito de direito); b) a vontade; c) a causa; d) o ato ou o negócio em si mesmo.
Ainda, destaca Nery Júnior (2011, p. 482), citando François Terré, a importância do conhecimento pelo intérprete da causa e propósito do negócio, a fim de bem qualificar o negócio jurídico formatado:
Consequentemente, é preciso que o intérprete conheça a causa, o propósito do negócio, pois sem isso não se pode qualificar o negócio jurídico ou o contrato. Nesse sentido é a lição autorizada de Terré: “A pesquisa pela qualificação adequada é às vezes muito mais audaciosa. Ela se efetua sem dúvida, hodiernamente, inspirando-se na causa do contrato. Mas o juiz procura revelar, com o auxílio das estipulações do contrato e dos diversos elementos do litígio, se o propósito perseguido pelos particulares é ilícito. O juiz pesquisa então qual o motivo que guiou as vontades individuais. E é somente na sequência, e em função do caráter lícito ou ilícito deste motivo, que ele o qualifica. A qualificação opera-se bem com o auxílio de um elemento causal. Mas a determinação do caráter lícito ou ilícito do propósito perseguido é prévia à escolha da qualificação. A escolha da qualificação efetua-se, uma vez determinado o objetivo efetivamente perseguido”.
No tocante ao contrato de concessão comercial, adverte Coelho (2012, p. 126) sobre a existência de uma hipótese em que é caracterizado como contrato típico. Justamente quando envolve a comercialização de veículos automotores terrestres, como explica:
Existe, ressalto, uma hipótese em que a concessão mercantil é contrato típico, e, assim, as relações entre os contratantes não se guiam somente pelo pactuado entre eles, mas se submetem aos ditames prescritos na lei. Em outros termos, os empresários não são, nesse caso, inteiramente livres para dispor sobre as suas relações, estando jungidos às restrições da autonomia da vontade decorrentes do direito positivo. Cuida-se da hipótese em que o objeto da concessão é a comercialização de veículos automotores terrestres. Assim, quando o contrato vincula, de um lado, a fábrica de automóveis (ou de motocicletas, caminhões, tratores etc.) como concedente e, de outro, a revendedora autorizada como concessionária, ele é típico e está regulado da Lei n. 6.729/79 – conhecida como Lei Ferrari.
Igualmente, resta submetido o contrato de concessão comercial de veículos automotores às estipulações de convenções da categoria econômica e de marca, como prevê o artigo 18 da Lei 6.729/1979, mais conhecimento como “Lei Renato Ferrari”:
Art. 18. Celebrar-se-ão convenções das categorias econômicas para: I - explicitar princípios e normas de interesse dos produtores e distribuidores de veículos automotores; Il - declarar a entidade civil representativa de rede de distribuição;
III - resolver, por decisão arbitral, as questões que lhe forem submetidas pelo produtor e a entidade representativa da respectiva rede de distribuição; IV - disciplinar, por juízo declaratório, assuntos pertinentes às convenções da marca, por solicitação de produtor ou entidade representativa da respectiva rede de distribuição.
Assim, nos contratos de concessão comercial de veículos automotores é regra geral as partes acordarem: a) a distribuição, por concessão mercantil típica, de veículos automotores em determinada região ou regiões; b) comercialização de veículos automotores, implementos e componentes fabricados ou fornecidos pela concedente; c) a prestação de assistência técnica pela concessionária a esses produtos, inclusive quanto ao seu atendimento ou revisão; d) o uso gratuito da marca da concedente, como identificação; e) obrigatoriedade de investimento na adoção de um layout padrão e identidade visual pela concessionária, seguindo um “Manual de Padronização Visual” da concedente; f) a estipulação de quota de fornecimento de veículos.
3. O regime jurídico do contrato de concessão comercial de veículos automotores e a sua natureza relacional
O regime jurídico a regular a hipótese de concessão mercantil de veículos automotores é o da Lei n. 6.729, de 1979, com a redação dada pela Lei n. 8.132, de 1990, bem como as estipulações das convenções da categoria econômica envolvida e das convenções de marca.
Ainda, acrescente-se o fato de que o contrato de concessão comercial de veículos automotores, categoria tipificada dos contratos de distribuição, possui a natureza de um contrato relacional, destacando-se, “em especial, a possível dependência econômica e o império da boa-fé”, como diretrizes orientadoras de sua interpretação, como observa Forgioni (2008, p. 72-73):
Os contratos relacionais podem encerrar uma verdadeira rede de agentes econômicos, aumentando o grau de complexidade da teia de deveres e direitos contratuais. Muitas vezes, há troca de valores que não são facilmente suscetíveis de avaliação pecuniária. Enquanto nos contratos descontínuos os vínculos costumam ser breves, naqueles relacionais são levados em consideração outros elementos além do preço, qualidade e quantidade: desempenho da outra parte, planejamento futuro etc.
Disso decorre que, além da regulação específica pela Lei Ferrari, o contrato de concessão comercial de veículos é um contrato relacional por natureza, impondo-se a observância aos princípios da boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança, solidariedade e da lealdade, que deve orientar a sua interpretação e de todos os contratos de colaboração empresarial, seja por aproximação ou intermediação (LUPION, 2011, p. 50).
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu, no julgamento do Recurso Especial n. 1073595 – MG, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, que “No moderno direito contratual reconhece-se, para além da existência dos contratos descontínuos, a existência de contratos relacionais, nos quais as cláusulas estabelecidas no instrumento não esgotam a gama de direitos e deveres das partes”.
No campo do Direito Comercial os contratos relacionais, também chamados de contratos cativos são modalidades já conhecidas, bastando lembrar a proteção ao fundo de empresa previsto no artigo 51 e seguintes da Lei n. 8.245/1991. Extrapolando o âmbito do Direito Comercial é que os contratos relacionais passaram a orientar também as relações consumeristas, seguindo na sua interpretação os mesmos deveres anexos da cooperação, solidariedade, boa-fé objetiva e proteção da confiança, presentes nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual, os quais, embora não se encontrem expressamente previstos, igualmente vinculam as partes e devem ser observados, em conformidade com a teoria contratual contemporânea e com os princípios da ordem econômica brasileira.
O artigo 170 da Constituição da República elenca os princípios da ordem econômica brasileira, entre outros, a função social da propriedade, do qual decorre a função social da empresa, orientando-se pela valorização do trabalho humano, livre iniciativa, a fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
As relações obrigacionais modernas, especialmente no âmbito da atividade empresarial onde se observa a intensa e necessária massificação dos contratos, devem atender a função social, a boa-fé e a solidariedade.
No tocante à boa-fé, Macedo Júnior (1998, p. 230), ao abordar a teoria relacional, esclarece que o seu relevante papel no encorajamento da continuidade das relações contratuais:
Isto porque as normas de integração não são apenas a promessa ou a vantagem e dependência em razão da confiança ("reliance "), mas também a reciprocidade, a implementação do planejamento, a efetivação do consenso, a restituição e a confiança ("trust"), a função de integridade, solidariedade e equilíbrio de poder e harmonização com a matriz social, conforme visto até agora. Conforme aponta REITER ("Good Faith in Contracts", Valparaiso Law Review, vol. 17, p. 726): "A teoria dos contratos relacionais oferece regras sobre contratos num nível geral que a boa-fé exige, produzindo para tanto a elaboração de regras mais específicas para as áreas especializadas em termos das mesmas normas, mas aplicáveis a cada especialidade."
Em resumo, o contrato de concessão comercial: a) trata-se de um contrato relacional (também chamado de contrato descontínuo, cativo de longa duração), constituindo uma única relação jurídica; b) nele estão presentes deveres anexos decorrentes de postulados de cooperação, confiança, boa-fé objetiva, lealdade e solidariedade; c) pauta-se pelos princípios constitucionais da ordem econômica brasileira; d) é inadmissível a modificação unilateral, injustificada e abrupta do sistema anterior de fornecimento de quotas de veículos, sem acordo e informação prévia ao concessionário.
4. Os direitos, garantias indenizatórias conferidas ao concessionário, a base objetiva do contrato de concessão comercial de veículos automotores e a impossibilidade de redução unilateral da quota de fornecimento de veículos
O contrato relacional de concessão comercial de veículos automotores insere-se na categoria dos denominados contratos de colaboração por intermediação, nos quais o empresário colaborador (concessionário) adquire os produtos do empresário fabricante (concedente) e os revende aos consumidores.
Não obstante a sua natureza empresarial, revelam os contratos de colaboração nítidos traços de subordinação do empresário colaborador ao fornecedor. Em muitas circunstâncias, o empresário colaborador se vê em uma situação de extrema vulnerabilidade, a qual, inclusive, restou reconhecida pelo legislador ao criar dispositivos legais garantindo-lhe direitos essenciais, como se observa ao exame da Lei n. 6.729/1979, reguladora da concessão comercial de veículos automotores e explicitados em sua Exposição de Motivos:
A própria circunstância de uma grande empresa necessitar de uma rede para a comercialização e assistência técnica de seus produtos, ao mesmo tempo em que evidencia o seu extraordinário porte econômico e tecnológico, suscita a desigualdade decorrente do estilhaçamento da relação, na medida em que confronte a grande unidade da empresa concedente com os concessionários, limitados na sua capacidade negocial em razão de seu porte e da sua multiplicidade. O concedente, como grande empresa, tende a tornar-se o senhor da relação contratual e fazer prevalecer sobre cada concessionário isolado a sua vontade, pois detém, graças a sua cadeia de monopólios justapostos, um terrível poder de domínio.
Diante da evidente superioridade econômica do concedente e o seu poder de domínio na relação contratual relacional, o legislador, com o escopo de dar equilíbrio à relação negocial, garantiu ao concessionário de veículos automotores:
(I) a faculdade de participar das modalidades auxiliares de venda que a concedente promover ou adotar, tais como consórcios, sorteios, arrendamentos mercantis e planos de financiamento;
(II) a comercialização de implementos e componentes novos produzidos ou fornecidos por terceiros, mercadorias de qualquer natureza que se destinem a veículo automotor, implemento ou à atividade da concessão e veículos automotores e implementos usados de qualquer marca;
(III) a faculdade de comercializar outros bens e prestar outros serviços, compatíveis com a concessão;
(IV) a paridade de tratamento na hipótese de contração de nova concessão pela concedente, sendo vedado a este estabelecer em condições que de algum modo prejudiquem os concessionários da marca;
(V) estipulação de quota de veículos ajustada com a concedente de acordo com a capacidade empresarial, desempenho de comercialização e capacidade do mercado da área demarcada;
(VI) liberdade na fixação do preço de venda ao consumidor, relativamente aos bens e serviços objeto da concessão dela decorrentes;
(VII) proteção contra a prática de atos pelos quais a concedente vincule o concessionário a condições de subordinação econômica, jurídica ou administrativa ou estabeleça interferência na gestão de seus negócios;
(VIII) possibilidade de contratação por prazo determinado inicial, não inferior a cinco anos;
(IX) reparação de danos na hipótese de rescisão ocasionada pela concedente;
A opção do legislador foi pela proteção ao concessionário (empresário colaborador), impedindo que o empresário fornecedor (concedente) aproveite do mercado por ele conquistado, prejudicando-o com a substituição por outro em condições mais vantajosas ou passando a exercer diretamente a atividade no local nas hipóteses legais.
Por isso é que a Lei Ferrari, visando coibir essa prática abusiva, garantiu ao concessionário uma indenização, consistente na obrigatoriedade de a concedente, na hipótese de rescisão do pacto:
(I) readquirir o estoque de veículos automotores, implementos e componentes novos, pelo preço de venda ao consumidor, vigente na data da rescisão contratual;
(II) efetuar a compra dos equipamentos, máquinas, ferramental e instalações à concessão, pelo preço de mercado correspondente ao estado em que se encontrarem e cuja aquisição a concedente determinara ou dela tivera ciência por escrito sem lhe fazer oposição imediata e documentada, excluídos desta obrigação os imóveis do concessionário;
(III) pagar perdas e danos, à razão de quatro por cento do faturamento projetado para um período correspondente à soma de uma parte fixa de dezoito meses e uma variável de três meses por quinquênio de vigência da concessão, devendo a projeção tomar por base o valor corrigido monetariamente do faturamento de bens e serviços concernentes a concessão, que o concessionário tiver realizado nos dois anos anteriores à rescisão ou, se ajusta a concessão por prazo determinado, indenização calculada sobre o faturamento projetado até o término do contrato e, se a concessão não tiver alcançado dois anos de vigência, a projeção tomará por base o faturamento até então realizado;
(IV) satisfazer outras reparações que forem eventualmente ajustadas entre o produtor e sua rede de distribuição ou, se ajustada a concessão por prazo determinado, as obrigações vincendas até o termo final do contrato rescindido.
Na realidade, trata-se de indenização pela perda da oportunidade de continuar explorando o mercado criado, ampliado ou consolidado pelo concessionário (empresário colaborador).
Nas palavras de Coelho (2012, p. 127), o “objetivo da disciplina legal do contrato de concessão é garantir ao concessionário meios para a recuperação do investimento, em geral elevado, feito na implantação e periódica modernização do estabelecimento de revenda”. Diante disso, o legislador garantiu ao concessionário os seguintes instrumentos para recuperar o seu investimento:
a) isonomia de tratamento relativamente aos demais concessionários, obrigando-se o concedente a praticar preço, encargos financeiros, prazo e condições uniformes para toda a rede; b) proibição de o concedente contratar novas concessões que possam prejudicar os concessionários já estabelecidos, observando distâncias mínimas entre os estabelecimentos, de acordo com o potencial de mercado; c) quota de veículos, que o concedente se obriga a fornecer, fixada tendo em conta o desempenho de comercialização do concessionário e a capacidade do mercado da sua área demarcada; d) o pagamento, mesmo parcial, não pode ser exigido do concessionário antes do faturamento; na pior das hipóteses para o concessionário, admite-se o pagamento nos 6 dias anteriores ao da saída do veículo da fábrica; e) proibição de o concedente efetuar venda diretas, salvo para o Poder Público, o corpo diplomático ou clientes especiais; f) direito de uso gratuito da marca do concedente; g) plena liberdade de comercializar acessórios de quaisquer marcas ou procedência.
Especificamente quanto à quota de veículos, nota-se que o legislador garantiu ao concessionário a sua estipulação inicial e ajustes de acordo com o desempenho de comercialização e capacidade empresarial e do mercado da área demarcada.
Observa-se, portanto, que a quota de veículos não pode ser unilateralmente fixada, alterada ou imposta pela concedente ao concessionário, mas, ao contrário, deve ser fruto de ajuste livre de vontade, vinculado aos deveres anexos de cooperação, confiança, boa-fé objetiva e solidariedade e aos critérios objetivos definidos pela Lei n. 6.729/1979, em seu artigo 7º, inciso III:
Art. 7º Compreende-se na concessão a quota de veículos automotores assim estabelecida:
[...]
Ill - o concedente e o concessionário ajustarão a quota que a este caberá, consoante a respectiva capacidade empresarial e desempenho de comercialização e conforme a capacidade do mercado de sua área demarcada.
Ademais, o comportamento exigido por ambas as partes no contrato de concessão comercial de veículos automotores compõe a base objetiva do negócio jurídico celebrado, exigindo-se: a) da concedente: a obrigação de fabricação ou montagem de veículos automotores; a disponibilização do uso gratuito de sua marca pelo concessionário; o ajuste da quota de fornecimento de veículos, consoante a respectiva capacidade empresarial e desempenho de comercialização e conforme a capacidade do mercado da área demarcada ao concessionário; b) do concessionário: realização de investimentos com a montagem do estabelecimento empresarial, conforme exigido pela concedente; permissão de fiscalização pela concedente de todo o procedimento, desde a estruturação do estabelecimento até a adoção da correta identidade visual para utilização da marca cedida gratuita e a forma de revenda dos veículos.
O prazo de duração, razoavelmente longo, também compõe a base objetiva do negócio jurídico de concessão comercial de veículos automotores. Os vultosos investimentos realizados pelo concessionário refletem na estipulação de um prazo longo de vigência, o que, na visão deste, constitui um dos fatores mais importantes do contrato, a fim de que possa recuperar os investimentos realizados. Tanto é assim que o parágrafo único, do artigo 21, da Lei n. 6.279/1979 estabelece duração mínima inicial de cinco anos, quando determinado o prazo de vigência contratual. Segundo Nery Júnior (2011, 488-489), tudo isso integra o que a doutrina designa como base objetiva do contrato, ou seja:
[...] as circunstâncias que motivaram as partes a celebrar o contrato. O Código Civil de 2002 estabelece a base objetiva com as cláusulas gerais da função social do contrato (artigo 421) e da boa-fé objetiva (artigo 422). [...]
A boa-fé objetiva, cláusula geral que decorre da função social do contrato e que está prevista expressamente no artigo 422 do Código Civil, é regra de ordem pública (art. 2.035, parágrafo único, do CC/2002), aplicando-se imediatamente, inclusive aos negócios jurídicos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor, mas que se encontram em execução continuada ou diferida (princípio da eficácia imediata ou da ultratividade da lei).
Em outra passagem, quando se dedicou a análise do contrato de seguro de vida em grupo e a legislação consumerista, o Nery Júnior (2002, p. 180) deixou registrado que:
A alteração da base negocial pode ocorrer quando houver falta, desaparecimento, ou modificação do condicionalismo que formou e informou a base do negócio. Ainda que não haja, no contrato, cláusula expressa referindo à base negocial como fator determinante para a manutenção do negócio jurídico, o preceito deriva do sistema, de sorte que se considera como se estivesse escrita referida regra, que é aplicável inexoravelmente porque matéria de ordem pública.
Como um dos deveres anexos do contrato relacional de concessão comercial de veículos automotores, a boa-fé objetiva existe antes da celebração do contrato, com as tratativas preliminares (eficácia pré-contratual), deve ser mantida durante toda a execução do contrato e mesmo depois de o contrato já ter sido totalmente executado (eficácia pós-contratual). Ocorrendo no decorrer do cumprimento do contrato descompasso entre o que as partes acordaram antes e na época da sua celebração, haverá quebra da base objetiva do negócio jurídico (Nery Júnior, 2011).
5. ConSIDERAÇÕES FINAIS
Em decorrência de redução injustificada de quotas de veículos, sem observância dos deveres anexos do contrato e dos critérios objetivos previstos no artigo 7º, inciso III, da Lei n. 6.729/1979, que impossibilite a execução do pacto, surge o dever de a concedente indenizar ao concessionário, expressamente previsto no artigo 24 da Lei Ferrari, mesmo que não tenha agido culposamente.[1]
A propósito, demonstrada a redução da quota de veículos, cabe a concessionária o ônus probatório de comprovar a sua ocorrência de acordo com os ditames legais, ou seja, que foi realizada de comum acordo entre as partes e observando os critérios objetivos fixados pela Lei Ferrari, sob pena de quebra da base objetiva do negócio jurídico, circunstância que implica no descumprimento contratual e inviabiliza a sua continuidade.
Conclui-se, pois, pela existência de normas proibitivas de ajuste ou reajuste da quota de veículos de forma unilateral e injustificada pela concedente, objetivando manter equilíbrio contratual e preservar os investimentos realizados pelo concessionário.
Trata-se, sem dúvida alguma, da incidência, entre outros, do princípio da boa-fé objetiva, integrante do rol dos deveres anexos dos contratos relacionais.
Referências
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 13. ed. São Paulo: Saraiva, v. 3, 2012.
FERNANDES, Jean Carlos. Direito empresarial aplicado. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
FORGINI, Paula A. Contrato de distribuição. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 72-73.
LUPION, Ricardo. Boa-fé objetiva nos contratos empresariais: contornos dogmáticos dos deveres de conduta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
MACEDO JR., Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 230.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado e legislação extravagante. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
NERY JÚNIOR, Nelson. Contrato de distribuição de petróleo e derivados: aspectos materiais e processuais. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz Edson (Org.). Doutrinas essenciais – obrigações e contratos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, v. VI, p. 475-509.
NERY JÚNIOR, Nelson. Contrato de seguro de vida em grupo e o Código de defesa do Consumidor. In: Revista de Direito Privado n. 10. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril-junho de 2002, p. 180.
NOTAS:
[1] A esse respeito, esclarece Coelho (2012, p. 129): “Se o contrato é com prazo indeterminado – porque assim pactuaram as partes desde o início, ou porque se deu a prorrogação do primeiro contrato com prazo determinado, tanto faz –, a dissolução do vínculo contratual promovida pelo concedente obriga-o a reparar o concessionário em valores especificamente previstos na Lei Ferrari (art. 24). A reparação compreende, no caso, a compra dos elementos essenciais do estabelecimento do concessionário – com a diferença de que a reaquisição do estoque de veículos e componentes novos far-se-á, agora, pelo preço de revenda ao consumidor na data da resolução contratual, e não pelo preço de venda –, o pagamento de indenização baseada no faturamento da concessão e de outros itens previstos no contrato. Essa reparação é devida, note-se, mesmo que o concedente não tenha culposamente descumprido o contrato e apenas se encontre insatisfeito com os resultados apresentados pelo concessionário. Isso porque, na verdade, está-se ressarcindo o colaborador pela perda da oportunidade de continuar explorando o mercado que ele ajudou a constituir para os veículos do concedente”.
Bacharel em Direito pela Unifenas. Oficial do MP/MG. Agente Fiscal do Procon/MG. Pós-graduado em Direito Civil, Penal, Consumidor.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PACHECO, Eder Jose. A aplicabilidade do princípio da boa-fé objetiva no contrato de concessão comercial de veículos automotores Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 mar 2022, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58168/a-aplicabilidade-do-princpio-da-boa-f-objetiva-no-contrato-de-concesso-comercial-de-veculos-automotores. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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