RESUMO: O artigo tem como objetivo abordar a discussão jurídica acerca dos limites do direito de defesa no Tribunal do Júri. Busca, também, identificar os requisitos da legítima defesa e se a tese da legitima defesa da honra se enquadra neles, analisando os argumentos contrários e favoráveis a tese. Pretende, por fim, tecer comentários a respeito da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 779 que analisou a constitucionalidade da referida tese defensiva.
PALAVRAS-CHAVE: Tribunal do Júri. Legitima defesa da honra. Plenitude de defesa.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A PLENITUDE DE DEFESA NO TRIBUNAL DO JÚRI. 3. OS REQUISITOS DA LEGÍTIMA DEFESA. 4. A LEGITIMA DEFESA DA HONRA 5. A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADPF 779. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
A pandemia da COVID-19 trouxe outra tão letal quanto, a pandemia da violência doméstica e familiar contra a mulher. Comumente escutamos em noticiários e até mesmo ouvimos de pessoas próximas casos de vítimas desse crime. A sociedade passou a ficar mais atenta e a acompanhar mais de perto as ações estatais no combate a esse delito.
Nesse contexto, ressurge o debate acerca da constitucionalidade de um dos argumentos bastante trazidos em Plenário, a tese da legitima defesa da honra, especialmente quando o advogado da defesa sabe que os jurados são membros de uma comunidade machista e patriarcal.
A plenitude de defesa é então colocada em cheque quando em jogo outros princípios também tutelado pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB/88), a proteção à vida e a igualdade de gênero (art. 5º, “caput”, da CRFB/88).
A partir dessa pesquisa, procura-se entender no que consiste a “plenitude do direito de defesa” no âmbito do Tribunal do Júri e seus limites, para que dessa forma se possa chegar a uma conclusão acerca da possibilidade ou não da utilização da tese da legítima defesa da honra em Plenário.
2. A PLENITUDE DE DEFESA NO TRIBUNAL DO JÚRI
A ampla defesa é princípio basilar do processo penal como todo, que confere ao acusado uma profunda e abrangente possibilidade de provar a sua inocência ou apresentar teses defensivas, desde que dentro dos parâmetros fixados pela Constituição e pela legislação.
Por sua vez, a plenitude de defesa, prevista no art. 5º, XXXVIII, “a”, da Constituição Federal de 1988, é norma aplicada especificamente ao Tribunal do Júri, sendo reconhecida pela doutrina como um reforço à ampla defesa, em uma concepção ainda mais vasta do que se entende como possível apresentar em juízo como mecanismo de defesa.
Admite-se, assim, em plenário uma maior amplitude retórica, com a utilização de argumentos metajurídicos, como questões políticas, sociais, econômicas ou morais, permitindo uma série de direitos aos advogados de defesa que não são estendidas ao órgão ministerial, uma vez que não há plenitude de acusação, a exemplo da possibilidade de inovação de tese defensiva na tréplica.
Essa plenitude de defesa decorre da desnecessidade de exteriorização da motivação das decisões tomadas por parte dos jurados leigos, pois a eles se aplica o sistema da íntima convicção, diferentemente do procedimento comum, em que o sistema da apreciação da prova é o do livre convencimento motivado do magistrado.
Também advém da sigilosidade dos veredítos, pois, distintamente dos demais procedimentos, em que se tem inteiro conhecimento do sentido dos votos de cada julgador, não se sabe sequer se o jurado votou por absolver ou condenar.
Outro fundamento para aplicação da defesa plena é a aplicação do princípio da soberania dos vereditos ao Tribunal do Júri, em que a decisão dos jurados não pode ter seu conteúdo reformado pela instância superior, o que, do mesmo modo, se distingue do processo comum, em que é garantido o acesso ao grau recursal com possibilidade de reapreciação do mérito.
Ademais, o fato de aos crimes levados a apreciação do Tribunal Popular, pela importância e a natureza irreconstituível do bem jurídico vida, serem conferidas as penas mais elevadas de forma que o acusado sofrerá maiores impactos com a condenação, devem ser, em grau ainda mais elevado, adotadas todas as medidas para evitar condenações injustas, entre elas conferir a parte a maior possibilidade de se defender.
Também, comumente, se vê um maior acompanhamento da mídia nesses casos, pois são os que trazem uma maior repercussão social, devendo o advogado realizar atividade hercúlea de reverter um julgamento que já foi formado antes mesmo do início da instrução em plenário. Para isso se confere esse tratamento isonômico, visando reestabelecer a paridade de armas.
Neste sentido, devido a estrutura e os princípios próprios, a gravidade dos crimes que são levados a sua apreciação e, muitas vezes, a forte influência da mídia nesses casos é que o constituinte resolveu ampliar os direitos da defesa no Tribunal Popular.
Contudo, a plenitude de defesa encontra balizas no próprio texto constitucional, de forma que não é concebido como um direito absoluto, irrestrito e superior a todos os demais. Os princípios constitucionais, quando colidentes, deverão ser sopesados, aplicando-se o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
3. OS REQUISITOS DA LEGÍTIMA DEFESA
A legítima defesa é uma das teses defensivas mais defendidas em Plenário. Isso porque, como causa excludente da ilicitude, tem o condão de afastar a responsabilidade penal.
Prevista, no art. 25 do Código Penal, a legitima defesa é um direito garantido a todos, devido a impossibilidade de onipresença estatal, e que se caracteriza pela utilização moderada dos meios necessário para repelir injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Assim, como se observa da leitura do dispositivo legal, para a sua aplicação devem ser obedecidos alguns requisitos. O primeiro deles é a existência de uma agressão injusta. Essa agressão deve ser humana. Caso advenha de uma animal poderá incidir em um estado de necessidade. Além disso, essa agressão deve ser injusta, não sendo possível advir de uma provocação do próprio agente que dela quer se valer ou de uma conduta tutelada pelo próprio ordenamento, a exemplo do policial que necessita realizar uma ordem de prisão.
Como segundo requisito está a necessidade de utilização moderada dos meios necessários, isto é, a parte deve se valer daquele meio menos lesivo, porém capaz de repelir a agressão e que estejam ao seu alcance. O excesso será punido caso seja intencional ou quando não intencional, na hipótese de ser evitável, segundo os parâmetros utilizados por um homem médio.
Além disso, deve ser comprovado o elemento temporal, consistente na atualidade ou iminência da agressão. Não é permitido utilizar a presente excludente da ilicitude nas hipóteses em que há apenas um receio ou temor da ofensa.
Deve ser observado, ademais, o requisito subjetivo, consistente na consciência da situação justificante. O agente deve saber estar repelindo uma agressão injusta.
Compreendido os requisitos da legítima defesa, questiona-se: a tese da legítima defesa da honra atende a esses parâmetros?
4. A LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA
Tese bastante defendida nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, é a “legitima defesa da honra”.
A tese da legítima defesa da honra sustenta que os requisitos da justificante estariam presentes quando o homem, diante de uma traição, se visse em uma situação de desonra e para repará-la se valesse de uma agressão capaz de retirar a vida da própria esposa.
Aqueles que são favoráveis a referida tese sustentam que ela se encontra ancorada na plenitude de defesa, que permite a utilização de argumentos outros que não apenas os jurídicos no Plenário do Tribunal do Júri.
Também apontam que impedir a sua utilização implicaria em usurpar a competência dos próprios jurados para decidir o que merece ou não ser acolhido, violando também a soberania dos vereditos.
Por outro lado, os defensores da extirpação da tese da legitima defesa do plenário do júri apontam, primeiramente, que não estariam presentes os requisitos para aplicação da excludente de ilicitude. Isso porque a traição não representaria uma agressão, podendo, no máximo, configurar uma provocação, apta a atrair uma valoração menos gravosa nas circunstâncias judiciais (art. 59 do Código Penal), uma atenuante genérica (Art. 65, III, “a”, do Código Penal) ou um privilégio (art. 121, §1º, do Código Penal). Ademais, não haveria a utilização dos meios moderadamente necessários, situação configuradora de um verdadeiro excesso doloso.
Afirma, ainda, que o direito a plenitude de defesa não pode justificar a violação a outros direitos que encontram guarida na própria Constituição, de modo que a utilização da legitima defesa da honra contraria um dos valores mais caros, vetor da interpretação de todos os direitos constitucionais e legais, a dignidade da pessoa humana.
Para essa corrente, essa tese coloca a mulher na condição de objeto do homem, coisificando a sua existência e ferindo diretamente a sua dignidade. Estar-se-ia considerando que a mulher estaria sob a tutela do homem, responsável por carregar a honra deste, de modo a ser considerada um meio e não um fim em si mesmo.
No mesmo sentido desta última corrente foi o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 779.
5. A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA ADPF Nº 779
O Ministro Dias Toffoli na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 779 proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), referendada por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal, afastou a possibilidade de sustentação da tese da legítima defesa da honra em Plenário do Tribunal Júri. A propósito, transcrevo a ementa do referido julgado:
SEGUNDO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. AGRAVO INTERPOSTO CONTRA DECISÃO QUE RECONSIDEROU ANTERIOR NEGATIVA DE PROVIMENTO DO RHC PARA ACOLHER A TESE DEFENSIVA E DAR-LHE PROVIMENTO. PROCEDIMENTO DO TRIBUNAL DO JÚRI. INCLUSÃO DO QUESITO GENÉRICO DE ABSOLVIÇÃO PELA LEI 11.689/2008 (ART. 483, III, DO CPP). CONTROLE JUDICIAL DO JUÍZO ABSOLUTÓRIO QUANDO O RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FUNDAR-SE EM DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS (ART. 593, III, D, DO CPP). IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – Em razão da superveniência da Lei 11.689/2008, que alterou o Código de Processo Penal – CPP no ponto em que incluiu no questionário do procedimento do Tribunal do Júri o quesito genérico de absolvição (art. 483, III), “os jurados passaram a gozar de ampla e irrestrita autonomia na formulação de juízos absolutórios, não se achando adstritos nem vinculados, em seu processo decisório, seja às teses suscitadas em plenário pela defesa, seja a quaisquer outros fundamentos de índole estritamente jurídica, seja, ainda, a razões fundadas em juízo de equidade ou de clemência” (HC 185.068/SP, Rel, Min. Celso de Mello, Segunda Turma). II – Em face da reforma introduzida no procedimento penal do júri, é incongruente o controle judicial em sede recursal (CPP, art. 593, III, d), das decisões absolutórias proferidas pelo Tribunal do Júri com base no art. 483, III e § 2º, do CPP, quer pelo fato de que os fundamentos efetivamente acolhidos pelo Conselho de Sentença para absolver o réu (CPP, art. 483, III) permanecem desconhecidos (em razão da cláusula constitucional do sigilo das votações prevista no art. 5º, XXXVIII, b, da Constituição), quer pelo fato de que a motivação adotada pelos jurados pode extrapolar os próprios limites da razão jurídica. III – Agravo regimental a que se nega provimento. (RHC 192432 AgR-segundo, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 23/02/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-089 DIVULG 10-05-2021 PUBLIC 11-05-2021)
Como primeiro fundamento apontou-se que, tecnicamente, a legítima defesa da honra não se trataria propriamente de uma excludente de ilicitude, pois a traição não é sequer uma forma de agressão.
Ademais, a Corte Constitucional sustentou que a referida tese afronta de maneira direta a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e à igualdade. A dignidade estaria violada, pois a mulher seria concebia como um meio de satisfação e realização do homem, em uma concepção de submissão e não com um fim em si mesmo.
A ideia concebida na tese defensiva em debate, conforme aponta o Supremo, violaria, de igual forma, o direito à vida, pois seria um estímulo à perpetuação da violência contra a mulher. A igualdade, também, pois traz consigo valores machista e patriarcais.
Por fim, a Corte Suprema sustentou que o princípio da plenitude de defesa não pode servir de escudo para práticas ilícitas e contrárias a ordem constitucional como um todo.
Visando extirpar por completo a utilização da tese, o Relator ainda ressaltou que a sua utilização, de maneira direta ou indireta, resultará na nulidade do ato ou do julgamento.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A tese da legítima defesa da honra representa um retrocesso diante de todos os avanços alcançados na sociedade atual, de busca por uma maior igualdade e respeito para com as mulheres. Permitir a utilização desse argumento representaria tolerar a discriminação, o machismo e a barbárie.
O direito a plenitude de defesa deve sim ser tutelado pelo Estado, mas não se pode conferir um garantismo hiperbólico e monocular, devendo também serem observados os direitos das vítimas, sob pena de se configurar uma proteção insuficiente.
Portanto, acertou, e muito, a Corte Constitucional ao não mais permitir a utilização da tese da legitima defesa da honra em Plenário do Júri.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Advogada, Bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BEZERRA, Joana Nogueira. A legítima defesa da honra no Tribunal do Júri Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 maio 2022, 04:33. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58296/a-legtima-defesa-da-honra-no-tribunal-do-jri. Acesso em: 22 nov 2024.
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