MAÍRA BOGO BRUNO[1]
(orientadora)
RESUMO: O direito à educação é assegurado à criança e ao adolescente no texto constitucional brasileiro e está intrinsecamente atrelado à dignidade da pessoa humana. A Constituição Federal de 1988 atribui ao Estado o dever de ofertar uma educação de qualidade e gratuita e aos pais a responsabilidade de assistir, criar e educar seus filhos menores, o presente trabalho versasobre o Projeto de Lei 3.262/2019, que pretende descriminalizar a educação domiciliar, e resguardará as famílias que optarem pela modalidade o respaldo de não enquadramento no crime de abando intelectual, conforme artigo 246, caput, do Código Penal brasileiro e as consequências disso. Com o objetivo de analisar a possibilidade de impactos que poderão ser causados no direito constitucionalà educação pela possível aprovação do referido projeto de leie ausência de lei regulamentado a educação domiciliarpara os estudantes da educação básica. O presente artigo utiliza a metodologia jurídica com método dedutivo, por meio de pesquisa exploratória bibliográfica e documental etécnica de tratamento de dados qualitativo. Pela presente pesquisa fica demonstrada que a possível descriminalização do abandono intelectual e a ausência de regulamentação da educação domiciliar afetará a qualidade do ensino às crianças e adolescentes da educação básica, bem como, acentuará a desigualdade social, sobretudo por questões econômicas de acesso aos recursos necessários para o regular desenvolvimento da educação domiciliar.
Palavras-chave: Educação domiciliar; Educação de qualidade; Desigualdade social.
ABSTRACT: The right to education is ensured to children and teenagers in the Brazilian constitutional text and is intrinsically linked to the dignity of the human person. The Federal Constitution of 1988 assigns to the State the duty to offer a quality and free education and to the parents the responsibility to assist, raise and educate their minor children. This article deals with the Bill n° 3.262/2019, which intends to decriminalize homeschooling, and will protect the families who opt for this modality by not including them in the crime of intellectual abandonment, according to article 246, caput, from the Brazilian Penal Code and the consequences of that. In order to analyze the possibility of impacts that may be caused in the constitutional right to education due to the possible approval of the aforementioned bill and the absence of a law regulating home education for basic education students. This article uses the legal methodology with a deductive method, through exploratory bibliographic and documentary research and qualitative data treatment technique. This research demonstrates that the possible decriminalization of intellectual abandonment and the absence of regulation of home education will affect the quality of education for children and teenagers in basic education, as well as accentuate social inequality, mostly for economic reasons of access to the necessary resources for the average development of homeschooling.
Keyword: Homeschooling; Quality education; Social inequality.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho versa sobre os impactos da possível aprovação do Projeto de Lei 3262/2019 que permite a pais e responsáveis a opção pela educação domiciliar para estudantes da educação básica que compõem a idade de quatro a sete anos. Com tal aprovação, em se tratando da esfera penal, a educação domiciliar não configura como crime de abandono intelectual, entretanto, não há lei que regulamente seu exercício.
O principal questionamento no decorrer da pesquisa se trata da lacuna gerada pela falta de regulamentação quanto à aplicação da educação domiciliar para os estudantes da educação básica no Estado brasileiro, uma vez que as famílias responsáveis por conduzir de forma direta, ou indireta, por meio de professores particulares, não vislumbram norma que os direcionem a tal condução da aplicação efetiva do estudo em casa. Diante disso, pergunta-se: a descriminalização do ensino domiciliar como abandono intelectual sem uma regulamentação específica violaráo direito à educação dos estudantes da educação básica como uma das garantias fundamentais da pessoa humana?
Esta pesquisa se justifica no meio acadêmico por se tratar de tema relevante do campo de Direito Constitucional, em especial, ao respeito aos direitos e garantias fundamentais atrelados ao indivíduo estudante, nesse contexto, se tratando da criança e do adolescente que tem seu o direito à educação assegurado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em seu artigo 26 e, é tanto Direito Constitucional como direito garantido na lei infraconstitucional.
Ainda, em justificativa, se pode afirmar que no âmbito social, na esfera penal, a alteraçãoque será trazida pelo Projeto de Lei 3262/2019 que altera o Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, e inclui no parágrafo único do seu artigo 246, o estabelecimento de que a educação domiciliar (homeschooling) não é considerada como crime de abandono intelectual, no entanto, não há lei brasileira que a regulamente quanto a sua aplicação e criação de políticas públicas.
O objetivo geral do trabalho é analisar quais os possíveis impactos causados na garantia do direito constitucional à educação dos estudantes da educação básica, do específico colegiado de quatro a dezessete anos, pela ausênciade lei regulamentadora da educação domiciliar no sistema de ensino brasileiro, uma vez descriminalizada como abandono intelectual na aprovação do Projeto de Lei 3262/2019, bem como da falta de oferta de diretrizes educacionais às famílias adeptas.
No tocante aos objetivos específicos, a pesquisabuscará: (i) elucidar a tutela jurídico-normativa da educação domiciliar no direito comparado;(ii) averiguar a possibilidade de queda no padrão de qualidade do ensino, garantido no artigo 205, VII, da constituição Federal de 1988; (iii) ilustrar a probabilidade de afronta ao princípio da igualdade no que tange ao direito à educação, assegurada no artigo 205, I, da constituição Federal de 1988; e ainda, (iv) exemplificar fatores de impacto como fragilidades quanto a ingerência das autoridades públicas sobre a frequência regular aos estudos e meios de avaliações eficazes.
Para alcançar os fins propostos, a presente pesquisa utiliza a metodologia jurídica, com a finalidade de analisar os impactos da descriminalização da educação domiciliar no direito fundamental à educação de crianças e adolescentes, sob uma perspectiva de pesquisa dedutiva. O tratamento de dados utiliza a técnica qualitativa, pois utiliza conteúdos já publicados para a abordagem de dados e tais procedimentos que apontam os impactos da prática da educação domiciliar, descriminalizada como abandono intelectual e da ausência de lei regulamentadora, na garantia da igualdade e a qualidade na educação dos estudantes da educação básica do Estado brasileiro.
O método de pesquisa utilizado é o dedutivo com caráter exploratório e técnicas de coleta de dados bibliográfica e documental, a partir Projeto de Lei 3262/2019, inserido no Código Penal Brasileiro, que alterou o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 do Código Penal, e incluiu o parágrafo único no seu artigo 246 e da Constituição Federal de 1988, bem como obras doutrinárias de Luciane Muniz Ribeiro Barbosa, Romualdo Luiz Portela de Oliveira, Ricardo Castilho, Carlos Roberto Jamil Cury, Nina Beatriz Stocco Ranieri, e jurisprudências do Superior Tribunal Federal.
Assim, na estrutura do presente trabalho, a primeira seção será voltada para a origem da educação domiciliar, bem como sua aplicação no direito comparado, com a informação de sua prática em outros países e a possibilidade de sua adoção no Brasil. A segunda seção será dedicada à tentativa de demonstrar as causas e consequências da omissão legislativa do Estado, bem como suas fragilidades quanto a aplicabilidade e a segurança jurídica do direito à educação.
2 TUTELA JURÍDICO-NORMATIVA DA EDUCAÇÃO DOMICILIAR
O termo ensino domiciliar ou ensino doméstico diz respeito ao ensino ministrado em casa, ou seja, no ambiente familiar os pais e/ou responsáveis e/ou profissionais contratados ensinam a criança o conteúdo escolar. Esta prática se trata de uma modalidade antiga, pois antes do surgimento das escolas e dos Estados Modernos, coube à família o papel de agente educador da criança e do adolescente. (MOREIRA, 2016).
Diante da proposta apresentada pelo Projeto de Lei 3.262/2019 que pretende alterar o Código Penal brasileiro e, com isso, isentar os pais que optarem por tal modalidade de ensino de responder pelo crime de abandono intelectual e da recente decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário número 888.815/RS no ano de 2018 que analisou a falta de regulamentação da educação domiciliar, faz-se importante mencionaralgumas das normas internacionais acerca da educação domiciliar.
2.1 EDUCAÇÃO DOMICILIAR NO DIREITO COMPARADO
O termo “ensino domiciliar” vai além da instrução ou da transmissão de conteúdos e métodos de estudos direcionados às crianças e adolescentes, neste caso em específico, da educação básica no Estado brasileiro que compreende as idades entre quatro e dezessete anos.
O pesquisador Alexandre Magno Fernandes Moreira, considerado um dos brasileiros mais dedicados ao tema do ensino domiciliar como instrução dirigida pelos pais conceitua:
A denominada educação domiciliar (também chamada de homeschooling e de educação familiar desescolarizada) consiste na assunção pelos pais ou responsáveis do efetivo controle sobre os processos instrucionais de suas crianças ou adolescentes. Para alcançar esse objetivo, o ensino é, em regra, deslocado do ambiente escolar para a privacidade da residência familiar. Isso não impede, porém, que os pais ou responsáveis, no exercício de sua autonomia, determinem que o ensino seja realizado parcialmente fora da residência, por exemplo, em curso de matérias específicas, como Matemática e Música. (MOREIRA, 2016, p. 46).
Na versão inglesa o ensino doméstico ou educação domiciliar é conhecido como homeschooling. O professor Carlos Roberto Jamil Cury explica que se trata de “um movimento por meio ao qual, pais de família, alegando insatisfação com a educação escolar ofertada nos estabelecimentos públicos e privados pleiteiam transmissão dos conhecimentos a ser dada em casa”. (CURY, 2019, p. 1)
O tema em questão teve sua origem na cultura americana no momento em que a sociedade clamava pela mudança do ensino concentrado das instituições escolares para uma modalidade em que permitisse uma educação individual desenvolvida no âmbito familiar. O defensor e precursor desse ideal foi o professor e escritor americano Jonh Holt, natural de Nova York, Estados Unidos, ele foi o primeiro grande crítico da educação pública e grande defensor do ensino doméstico na década de 1970. (FORMAGGIO, 2021)
O professor Jonh Holt influenciado pelo pensamento filosófico de Ivan Illich em sua obra “Deschooling society” que significa “Sociedade sem escolas”, idealizou uma educação fora do ambiente escolar numa perspectiva de atender a criança além de suas necessidades individuais, bem como a isenção de convivência com as dificuldades estruturais apresentadas pela instituição e ainda isentá-las de abordagens religiosas, valores, ideológicas, políticas, dentre outros, preservando da violência física, moral ou emocional em que as adesões tomaram grandes proporções na década de 1980. (FORMAGGIO, 2021)
Em pesquisa realizada à National Home Education Research Institute, Luciana Gomes de Oliveira Formaggio apurou que no ano de 2018, a adesão ao ensino domiciliar de crianças e adolescentes registraram 2,5 milhões nos Estados Unidos, 100 mil no Reino Unido, 95 mil no Canadá, 80 mil na Rússia, 75 mil na África do Sul, 40 mil no Japão e 30 mil na Austrália, e ainda, que a qualidade de vida do aluno houve melhora significativa da qualidade de vida. (FORMAGGIO, 2021)
Nos Estados Unidos da América, a suprema corte iniciou julgados sobre a educação domiciliar como liberdade de escolha na educação e condução dos estudos de seus filhos como discorre Cássio Casagrande
A primeira vez que os juízes constitucionais americanos se pronunciaram sobre o assunto deu-se no julgamento Meyer v. Stateof Nebraska 262 U.S. 390 (1923). Durante a Grande Guerra (1914-1919), houve nos Estados Unidos campanhas intensivas para banir tudo que fosse “germânico”, incluindo concertos sinfônicos de compositores alemães e associações civis de imigrantes daquele país. Leis estaduais e municipais procuravam restringir o uso da língua alemã, como proibir estatutos de associações em alemão e a utilização do idioma em locais públicos. Muitos estados proibiram o ensino de línguas estrangeiras e alguns vedaram especificamente o ensino do alemão em estabelecimentos particulares, inclusive religiosos. (CASAGRANDE, 2017, não paginado).
Atualmente, de acordo com informações da Revista Infoescola, “em países como Estados Unidos, Áustria, Bélgica, Canadá, Austrália, França, Noruega, Portugal, Rússia, Itália, e Nova Zelândia o homeschooling é legalizado. Nos EUA, principalmente, a prática é bastante comum.” (PORTO, 2022, não paginado).
A título de exemplificação, a Educação Domiciliar em Portugal é defendida no Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo de nível não superior, no Decreto-Lei 152/13 de 04 de novembro, em seu artigo 3º, 1, 2, a) e b)
Art. 3º - 1 - Para efeitos do disposto no presente Estatuto, consideram-se «estabelecimentos de ensino particular e cooperativo» as instituições criadas por pessoas singulares ou coletivas, com ou sem finalidade lucrativa, em que se ministre ensino coletivo a mais de cinco alunos ou em que se desenvolvam atividades regulares de carácter educativo ou formativo. 2 - Para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo anterior, considera-se: a) «Ensino individual», aquele que é ministrado por um professor habilitado a um único aluno fora de um estabelecimento de ensino; b) «Ensino doméstico», aquele que é lecionado, no domicílio do aluno, por um familiar ou por pessoa que com ele habite. (PORTUGAL, 2013, p. 6343).
E ainda é tratado na Lei 65/79 de 04 de outubro que aponta as garantias e liberdades do ensino em seu artigo 1º:
A liberdade do ensino compreende a liberdade de aprender e de ensinar consagrada na Constituição, é expressão da liberdade da pessoa humana e implica que o Estado, no exercício das suas funções educativas, respeite os direitos dos pais de assegurarem a educação e o ensino de seus filhos em conformidade com as suas convicções. (PORTUGAL, 1979, p. 2563)
Desse modo, a educação domiciliar em Portugal tem sua legalização reconhecida pela legislação que defende tanto o direito de acesso em estabelecimentos de ensino particular e cooperativo, quanto ao ensino individual, este último realizado no domicílio por familiar ou pessoa responsável e livre para exercer seus princípios e concepções. O modelo é considerado como positivo, pois, também normatizam o procedimento em que os pais devem matricular seus filhos em instituições de ensino para que sejam sujeitos a exames regulares para verificações de seus níveis de desempenho acadêmico. Já no Estado do México, a frequência obrigatória não é regulamentada e com isso, é cada vez mais crescente o número de adeptos à modalidade domiciliar de ensino em que não há intervenção estatal.
De acordo com a Associação Nacional de Educação Domiciliar – ANED – a Educação Domiciliar é uma modalidade de educação que vem crescendo e ganhando adeptos por todo o mundo, bem como, é praticado em regime de governos em diversos países e tem seu reconhecimento e permissão, e regulamentação em mais de 60 países dos cinco continentes. (BRASIL, 2022, não paginado). Na subseção seguinte, será abordado sobre a possibilidade da educação domiciliar no Estado brasileiro, bem como as tratativas do direito à educação na legislação vigente do país.
2.2 POSSIBILIDADE DA ADOÇÃO DA EDUCAÇÃO DOMICILIAR NO BRASIL
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 6º o rol dos direitos sociais, dentre eles, o educação assentado como direito fundamental. Adiante, o texto constitucional institui que família e Estado devem ser solidários quanto ao dever da educação ao dispor:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988, não paginado).
Da mesma forma, a Lei 9.9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases – que em 20 de dezembro de 1996 foi sancionada pelo então presidente da república Fernando Henrique Cardoso, como lei de grande importância para o sistema educacional brasileiro no sentido de reafirmar o direito constitucional do acesso à educação básica, prelecionaem seu artigo 1º, que a educação “[...] abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.” (BRASIL, 1996, não paginado).
Referida norma, em seu parágrafo 1º, diz que tal educação deverá ser desenvolvida predominantemente por meio de instituições próprias, e ainda em seu artigo 6º determina que “É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade.” (BRASIL, 1996, não paginado).
O Estatuto da Criança e do Adolescente corrobora, em seu artigo 55, que “Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino” e reforça, a partir do artigo 129, inciso V, os deveres que os pais têm com a educação “obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua frequência e aproveitamento escolar.” (BRASIL, 1990, não paginado).
Além disso, o Código Penal brasileiro, em seu artigo 246, caput, prevê pena de detenção de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês e multa para aqueles que responsáveis que se fizerem omissos da responsabilidade de matricular os filhos em instituição regular oficial de ensino. (BRASIL, 1940, não paginado).
Mesmo diante deste arcabouço que normatiza a educação formal e institucional, eis que surgiram os opositores desta modalidade de ensino e, consequentemente, os adeptos, tanto no âmbito político quanto jurídico, pelo ensino domiciliar no Brasil, o tema esteve em pauta no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal. (BARBOSA; OLIVEIRA, 2017).
O apoio dessas instituições, opositoras a educação formal, no desenvolvimento de materiais pedagógicos e estratégias educativas e a falta de regulamentação específica da educação domiciliar abriram espaço para que diversas famílias aderissem ao modelo voltado para a educação no seio familiar. No ano de 2015, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral do Recurso Extraordinário número 888.815/RS, cuja ação originou de um mandado de segurança impetrado contra a Secretaria Municipal de Educação da cidade de Canela no Rio Grande do Sul. (BARBOSA; OLIVEIRA, 2017).
Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. EDUCAÇÃO. ENSINO DOMICILIAR. LIBERDADES E DEVERES DO ESTADO E DA FAMÍLIA. PRESENÇA DE REPERCUSSÃO GERAL. 1. Constitui questão constitucional saber se o ensino domiciliar (homeschooling) pode ser proibido pelo Estado ou viabilizado como meio lícito de cumprimento, pela família, do dever de prover educação, tal como previsto no art. 205 da CRFB/1988. 2. Repercussão geral reconhecida. (BRASIL, 2015, página 1).
O julgamento do tema de repercussão geral foi presidido pela Ministra Carmem Lúcia em setembro de 2019, cuja decisão final buscou a consolidação do entendimento e solução do caso, a fim de que outros tivessem a melhor interpretação conforme ementa do acórdão do Recurso Extraordinário 888.815:
Ementa: CONSTITUCIONAL. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL RELACIONADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E À EFETIVIDADE DA CIDADANIA. DEVER SOLIDÁRIO DO ESTADO E DA FAMÍLIA NA PRESTAÇÃO DO ENSINO FUNDAMENTAL. NECESSIDADE DE LEI FORMAL, EDITADA PELO CONGRESSO NACIONAL, PARA REGULAMENTAR O ENSINO DOMICILIAR. RECURSO DESPROVIDO. [...]3. A Constituição Federal não veda de forma absoluta o ensino domiciliar, mas proíbe qualquer de suas espécies que não respeite o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes. São inconstitucionais, portanto, as espécies de unschooling radical (desescolarização radical), unschooling moderado (desescolarização moderada) e homeschooling puro, em qualquer de suas variações. 4. O ensino domiciliar não é um direito público subjetivo do aluno ou de sua família, porém não é vedada constitucionalmente sua criação por meio de lei federal, editada pelo Congresso Nacional, na modalidade “utilitarista” ou “por conveniência circunstancial”, desde que se cumpra a obrigatoriedade, de 4 a 17 anos, e se respeite o dever solidário Família/Estado, o núcleo básico de matérias acadêmicas, a supervisão, avaliação e fiscalização pelo Poder Público; bem como as demais previsões impostas diretamente pelo texto constitucional, inclusive no tocante às finalidades e objetivos do ensino; em especial, evitar a evasão escolar e garantir a socialização do indivíduo, por meio de ampla convivência familiar e comunitária (CF, art. 227). 5. Recurso extraordinário desprovido, com a fixação da seguinte tese (TEMA 822): “Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira.”(BRASIL. 2019a, p. 2-4).
Em entendimento, para a Suprema Corte, a negativa em provimento ao recurso se deu pelo fato de que a educação domiciliar somente poderá ser autorizada após a devida regulamentação, ainda que a maioria dos ministros entendeu que a modalidade não era inconstitucional.
O ano de 2019 foi marcado pela crise sanitária e humanitária, de escala global, decorrente da pandemia causada pela Covid-19, e, no âmbito educacional, suspendeu as aulas presenciais, sendo essas substituídas pela modalidade remota, e consequentemente, obrigou a substituição de estudo do ambiente escolar pelo residencial, bem como, de professores por pais ou responsáveis, contudo, a instituição escolar era a responsável pela elaboração do currículo a ser ministrado aos estudantes domiciliares. (REIS, 2021).
Neste cenário, foi aprovado o Projeto de Lei 3.262, de 3 de junho de 2019, de autoria das Deputadas Federais Chris Tonietto, Bia Kicis e Caroline de Toni, que altera o Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal, incluindo em seu artigo 246, o parágrafo único: “Os pais ou responsáveis adeptos da educação domiciliar não incorrem no crime previsto neste artigo” (BRASIL, 2019b), ou seja, a proposta versava que aos optantes pelo ensino domiciliar não seria aplicada a pena prevista para o crime de abandono intelectual, de detenção de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês ou multa, a quem, sem justa causa, deixasse de prover a instrução primária ao filho ou filha em idade escolar.(REIS, 2021)
A justificação da propositura “visa salvaguardar os pais e responsáveis adeptos da educação domiciliar, a fim de que não sejam incursos no crime de abandono intelectual, eis que notadamente não configurada a hipótese de privação de instrução”. (BRASIL, 2019b, p.1)
O texto reconhece a falta de regulamentação e aponta que existe projeto de autoria do Poder Executivo aguardando instalação de Comissão Especial, e outros projetos do Poder Legislativo em tramitação, defende que a prática da modalidade de ensino não ofende o ordenamento jurídico do Estado brasileiro e que a conduta não está expressamente proibida por lei, por teor do disposto no artigo 5, inciso II da Constituição Federal, em que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;” (Brasil, 2019b, p.1)
Adiante, afirma que a educação domiciliar é um direito natural dos pais, e que a estes cabe o direito de escolher qual ambiente mais compatível com a realidade de seus filhos, a despeito do bem-estar e seu pleno desenvolvimento, e ainda que o Estado impõe usurpa a obrigação de ensinar que é das famílias, sufocando a educação integral em troca de parcialidade de oferta de conteúdos, o que afasta os pais do processo educacional. (BRASIL, 2019b, p. 2)
Afirma que a família tem a primazia na educação das crianças, e que ao poder público compete a limitação de ajudar, apoiar e incentivar as famílias que totalmente independentes, em relação ao Estado, por meio de associações com seus representantes legais conhecedores do trabalho da educação domiciliar, e que o estado de coisas quanto a dar responsabilidade e poder aos órgãos públicos, resulta no perecimento enquanto estrutura fundamental da sociedade. (BRASIL, 2019b, p. 3)
Acerca a ilegalidade, o texto do projeto de lei lembra que a educação domiciliar carece de regulamentação, conforme a deliberação do Supremo Tribunal Federal no Julgamento do Recurso Extraordinário 888.815, de 12 de setembro de 2018, portanto, afirma que não é ilegal, e ainda se trata de repercussão geral reconhecida, caracteriza-se por decisão erga omnes, sendo aplicável a todos. (BRASIL, 2019b, p. 3)
Em relação ao uso do Direito Natural, o texto aponta que a escolha pela modalidade de ensino é um direito anterior ao Estado e que as famílias têm sido vítimas de perseguição jurídica, pelo Ministério Público e pelos Conselhos Tutelares, com base no artigo 246 do Código Penal, e que a conduta tipificada do referido artigo, não se aplica e elas, pois estão preocupadas é com a formação das crianças e com seu pleno desenvolvimento, como forma antiga e tradicional de ensino como o exemplo da sociedade norte-americana. (BRASIL, 2019b, p. 4)
O texto cita o artigo 1.634 do Código Civil, dado pela Lei número 10.406/2002, inciso I, “compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos, dirigir-lhes a criação e a educação” como princípio da subsidiariedade que garante a primazia da sociedade civil sobre o Estado na resolução de problema com a matrícula em instituições de ensino desacreditadas por parte da sociedade e que deixa claro que ao reconhecer a educação domiciliar como pertencente ao direito natural, salvaguarda as famílias da insegurança jurídica. (BRASIL, 2019b, p.4)
No Brasil, ao ser descriminalizada como abandono intelectual, a educação domiciliar passará a ser permitida e não regulamentada, nesse caso, não existem parâmetros normativos quanto a sua aplicação. Assim, é possível aduzir pontos relevantes acerca desta omissão legislativa como a ofensa ao princípio da Igualdade previsto no artigo 5º da Constituição Federal de 1988. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança [...]”. (BRASIL, 1988, não paginado).
Nesse sentido, Ricardo Castilho assevera,
[...] o direito à educação assim concebida não inclui somente o acesso à escola. Como vimos, é também sinônimo de educação de qualidade, com a qual os indivíduos desenvolvem conhecimentos e habilidades aplicáveis à vida diária. Tal direito deve compreender a implementação de medidas concretas para garantir a continuidade e, especialmente, a perseverança dos alunos. (CASTILHO, 2016, p.235).
Portanto, acerca dessa regulamentação somente com base na descriminalização não há que se pensar apenas no fato de famílias serem salvaguardadas de serem perseguidas pelo Conselho Tutelar ou pelo Ministério Público, e sim que o Estado crie instrumentos, mecanismos e políticas públicas para que o poder público possa realizar supervisão e avaliação periódica de aprendizagem das crianças e adolescentes que é garantido constitucionalmente aos estudantes da educação básica dos 4 aos 17 anos de idade.
3 POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS DA REGULAMENTAÇÃO DA EDUCAÇÃO DOMICILIAR
O acesso ao ensino da educação básica obrigatório para crianças e adolescentes é regulamentado na Constituição Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 6º trata da educação como um direito social e estabelece em seu artigo 24 “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:”, inciso IX “educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;”. (BRASIL, 1988, não paginado).
A despeito da educação domiciliar não há consenso acerca da competência constitucional para legislar. Para a Associação Nacional de Educação Domiciliar – ANED – a competência legislativa seria privativa da União no caso de necessidade qualquer mudança que seja nas diretrizes e bases da educação nacional. (BRASIL, 2022, não paginado).
O “Manifesto Contra a Regulamentação da Educação Domiciliar e em Defesa do Investimento nas Escolas Públicas” foi assinado por 356 Coalizões, Redes, Entidades Sindicais, Instituições Acadêmicas, Fóruns, Movimentos Sociais, Organizações da Sociedade Civil e Associações e divulgado considerando que a possível autorização e regulamentação da educação domiciliar é um fato extremo de risco, constituindo um ataque ao direito à educação como uma as garantias fundamentais da pessoa humana e poderá possibilitar o aumento das desigualdades sociais e educacionais e manifestando-se contrários aos Projetos de Lei sobre a regulamentação da matéria já presentes no Congresso Nacional. (ANDES, 2021, não paginado).
3.1 FRAGILIZAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO DE QUALIDADE
De acordo com a Lei 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases daEducação Básica, a educação básica abarca os estudantes em idade dos 4 aos 17 anos, na sequência de pré-escola, ensino fundamental e ensino médio. No entanto, para os jovens com mais de 18 anos de idade que não concluíram o ensino médio e com mais de 15 anos para o ensino fundamental, podem participar de forma voluntária e gratuita do Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCEJA), que emite certificado e declaração de proficiência por meio de secretarias de educação e institutos federais de educação, ciência e tecnologia. (BRASIL, 2022, não paginado)
A exemplo do Enceja, o que se aparenta é uma inobservância do Estado acerca do que dispõe os artigo 208, § 3º, da Constituição Federal de 1988 “Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola”, ou seja, o poder público deve zelar pela frequência de crianças e adolescentes ao ambiente institucional escolar, e leva a reflexão acerca da atuação do Estado para garantir aos estudantes cujas famílias optarem pela educação domiciliar o que assevera o artigo constitucional 205 que garante o “[...] pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” (BRASIL, 1988, não paginado).
Outro ponto importante é que, na educação domiciliar, são os próprios pais ou responsáveis os encarregados de assumir e mediar a instrução do ensino básico, e a não tipificação como crime de abandono intelectual, abstém o Estado, em nome de liberdade individual das famílias de intervir e os responsabilizar por negligência ou omissão em prover a educação primária para os filhos em idade escolar. (RANIERI, 2017).
Além do exposto, é importante mencionar o que determina a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 205, parágrafo 3º que “Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola” (BRASIL, 1988), e na atual conjuntura, diante da lacuna ocasionada pela aprovação do Projeto de Lei 3.262/19 se abriu uma grande brecha dificultando a atuação das autoridades públicas em supervisionar e que incorre na Lei nº 9.394/96 em seu artigo 55: “Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. (BRASIL, 1996)
Em breve reflexão, Fernanda Morgan e José Vicente Medonça asseveram:
É preciso regular o homeschooling. É preciso identificar-lhe condições de admissibilidade constitucional. Pode-se pensar, a título de sugestão ao STF, em algumas condicionantes para o como (o quando também é tema essencial): (i) primeiro, a criança deve estar matriculada na rede regular de ensino – ainda que sem obrigatoriedade de frequência; (ii) ela deverá se submeter a avaliações periódicas, preparadas por equipes pedagógicas da rede regular; (iii) pode-se pensar num controle, físico ou digital, para aferir o material escolar que está sendo utilizado, consoante conteúdos mínimos fixados para o ensino fundamental2; (iv) a família que optar pelo homeschooling pode ser objeto de visitas do Conselho Tutelar direcionadas a esse foco; (iv) pode-se exigir a participação regular da criança em projetos acadêmicos e atividades esportivas oferecidas pela escola. Quanto a este último critério, vale salientar que homeschooling não se confunde com o isolamento social, tal como indicam estatísticas do documento Conditionof Education,3 publicado pelo Centro Educacional dos Estados Unidos (MORGAN, MENDONÇA, 2018, não paginado).
Portanto, percebe-se que, a questão sobre a descriminalização da educação domiciliar como abandono intelectual é ato que primordialmente requer sua regulamentação, como se preocupou o Supremo Tribunal Federal, a tal modo que seja promovido o clareamento das organizações acerca das regras, preparações e adaptações tanto para as famílias quanto para as instituições educacionais.
No texto constitucional, o capítulo III, que trata da educação, da cultura e do desporto, enumera os princípios do ensino, e, em que, dentro outros, certifica em seu artigo 206, inciso VII, a “garantia de padrão de qualidade” (BRASIL, 1988, não paginado) como base do ensino a ser ministrado, sendo que em relação ao tema, se trata de norma abstrata, ou seja, cabe a melhor interpretação.
Nesse contexto, não há de se analisar o assunto que permeia a dada educação de qualidade no Brasil sem mencionar o olhar pedagógico acerca do tema. Sobre esse assunto, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em conjunto com o Ministério da Educação (MEC) que tem, dentre outros, promover a contribuição para o diálogo intercultural por meio da educação com ações e projetos internacionais que cooperam nas áreas da educação, ciência e cultura.
Em sua afirmação sobre a educação de qualidade no Brasil, a UNESCO sustenta que tanto a qualidade quanto a igualdade permanecem como sendo grandes desafios confrontados quando se trata de atendimento eficaz às necessidades de atendimento aos alunos para a real situação de estarem inseridos numa sociedade de conhecimento, pois grande parcela destes emdiferentes níveis educacionais,apresenta que o nível de aprendizagem nas disciplinas graves deficiências, bem como, baixa absorção de conceitos científicos. (UNESCO BRAÍLIA, [2020]).
Como a descriminalização do abandono intelectual derrubará a barreira para que as famílias matriculem as crianças e adolescentes em instituição de ensino regular e possibilitará que eles sejam submetidos à educação domiciliar, a ausência de regulamentação dessa modalidade de ensino prejudicará o monitoramento, avaliação e desenvolvimento das atividades pedagógicas e, consequentemente, a garantia do direito à educação de qualidade.
É importante ressaltar que a reflexão de que a descriminalização da educação domiciliar esteja em consonância com a regulamentação dessa modalidade, pois o que vigora atualmente na comunidade escolar é a oportunidade de igualdade acerca de desenvolvimentos e experiências comunitárias que as vivências do ambiente institucional são de possível promoção. E ainda que seja na modalidade institucional o no seio familiar, o que se deve prezar é pela qualidade de ensino que são norteados pela Lei de Diretrizes e Bases, Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição Federal.
3.2 ACENTUAÇÃO DA DESIGUALDADE SOCIAL
A educação domiciliar ao ser descriminalizada como crime de abandono intelectual, previsto no artigo 246 do Código Penal, poderá permitir a pais negligenciar aos filhos o acesso às oportunidades educacionais do modelo regular de ensino institucional.A omissão de norma regulamentadora e de criação de políticas públicas da educação domiciliar fere o princípio da igualdade que é garantido no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, já que os estudantes membros das famílias de baixo poder aquisitivo não terão à disposição os mesmos recursos pedagógicos que os de alto poder aquisitivo.
A aprovação do referido projeto que descriminaliza a educação domiciliar assentou a grande celeuma, pois os que optarem pela modalidade de ensino escolar poderão ficar à margem da lei, contudo, pelo fato de não existir resolução da lacuna gerada no ordenamento jurídico brasileiro e com isso afrontar ao princípio da igualdade, diante da incerteza acerca daaplicação do ensino domiciliar.
No tocante às famílias que possuem maior poder aquisitivo poderão se valer de equiparação de equipamentos tecnológicos para seus filhos, bem como, professores particulares, enquanto isso, o Estado poderá ampliar sua desobrigação em promover educação de qualidade para todos do ensino público. O professor Carlos Roberto Jamil Cury ainda em análise a questão educacional afirma
O Brasil é ainda um país endividado com sua população. Nossa cidadania educacional está longe de ser um exemplo. Convivemos com milhões de crianças fora da escola ou presentes na escola, mas fora da idade apropriada... Temos milhões de jovens e adultos que não tiveram a oportunidade de entrar na escola ou dela tiveram que se evadir mais cedo, por condições de sobrevivência ou por repetência. A educação infantil e o ensino médio ainda são privilégio (Cury, 2000, p. 569).
Os céticos com relação à adoção da educação domiciliar no tocante ao papel da educação na promoção da igualdade social defendem que essa modalidade de ensino representa: “uma afronta ao esforço em prolda democratização da educação, da luta pela escola pública e dequalidade, além do esforço pela equalização e justiça social atravésde uma educação e currículos centralizados, o que diminuiria asdesigualdades”. (OLIVEIRA, PAIVA. 2016, p. 39).
Se por um lado terão famílias optantes da modalidade domiciliar de educação, com aspetos de comprometimento e responsabilidade, e ainda munidos de aparatos tecnológico e financeiro para contratar professores particulares especializados, ou resguardados por políticas públicas, a possibilidade de êxito do processo poderá ser viável, porém, por outro lado, como cita o professor Cury, o cenário de recíproca decadência no tocante ao colegiado de estudantes da educação infantil ao ensino médio em face da real conjuntura sócio-econômica de grande maioria é fator preocupante da discussão (CURY, 2000).
As diferenças econômico-sociais privarão grande parte das famílias de acesso aos recursos necessários para o desenvolvimento de uma educação domiciliar que garanta às crianças e aos adolescentes igualdade de condições de aprendizagem. François Dubet citado Maria Celi Chaves Vasconcelos e Carlota Boto observa que:
Em todos os países, os alunos originários das categorias sociais mais privilegiadas, os mais bem munidos em capital cultural e social, apresentam um rendimento melhor, cursam estudos mais longos, mais prestigiosos e mais rentáveis que os outros. Mesmo que a seleção tenha se deslocado para a sexta série no calendário escolar, depois para a segunda, e enfim para o limiar dos estudos superiores, a estrutura das carreiras e das performances escolares continua refletindo mais ou menos a das desigualdades sociais. (DUBET, 2008, p. 27apud VASCONCELOS; BOTO, 2020, p. 6).
Para o professor, o que ocorre é uma disparidade na condução do processo educacional, uma vez que o Estado se omiteem não promover uma educação que abarca as crianças, jovens e adultos sem a oportunidade de participar do processo educacional que envolve o ensino regular, e tal pensamento é assentido por inúmeros críticos da educação domiciliar em que a escola como instituição que acolhe coletivamente as crianças e jovens é indispensável para que as desigualdades sejam minimizadas e a garantia de maiores oportunidades sejam privilégios para igualdade na educação. (OLIVEIRA, PAIVA. 2016).
Em se tratando de educação domiciliar e o direito de igualdade na educação para que possibilite a redução das desigualdades sociais, o cerne é que “Não há no ordenamento jurídico brasileiro em vigor nenhuma norma jurídica que tenha como conteúdo ou objeto a Educação Domiciliar, seja em caráter permissivo ou proibitivo” (ANDRADE, 2017, não paginado).
Nesse sentido, é possível concluir que a ausência legal de vedação e omissão do Estado quanto à regulamentação da educação domiciliar, diante da aprovação do Projeto de Lei 3.262/2019 que a descriminaliza como abandono intelectual, causará impacto na garantia constitucional de igualdade prevista a estudantes da educação básica brasileira.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Faz-se importante destacar que a Constituição Federal não prevê a possibilidade da opção pela educação domiciliar como também não a proíbe. No entanto, em seu artigo 205 afirma que a educação é um “direito de todos e dever do Estado e da família”.
Se, de um lado a Constituição Federal brasileira de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 apontam e garantem a importância da educação básica nas escolas, de outro lado, tem-se um percentual considerável de famílias que, na atualidade, são adeptas à nova modalidade de ensino e com a aprovação do Projeto de Lei nº 3262/2019, estas famílias se encontrarão à mercê da morosidade do Poder Legislativo, sem a devida supervisão das autoridades quanto a efetividade e qualidade do ensino, neste caso, ministrado pelas por elas.
Diante disso, o foco deste artigo é demonstrar os impactos causados no processo educacional pela lacuna omissiva do Poder Legislativo de lei regulamentadora da educação domiciliar no sistema de ensino brasileiro uma vez descriminalizada como abandono intelectual na aprovação do Projeto de Lei nº 3262/2019 e sem a sua devida regulamentação.
Ademais, a educação básica, que abarca as crianças e adolescentes na idade dos 4 aos 17 anos, se trata de uma direito fundamental regulamentado pela Constituição Federativa do Brasil de 1988, tendo por base a obrigatoriedade de oferta gratuita como responsabilidade da União, Estados e Municípios, e ainda que é um direito que deve ser exercido com a oferta da qualidade na forma quantitativa, em que as vagas são para todos, e na forma qualitativa, garantindo o padrão de qualidade a fim de que os estudantes adquiram ou potencializem ou transformem suas competências no desempenho do papel de cidadão e que resguardem a dignidade da pessoa humana.
Portanto, o que se pode aduzir é que, de fato, existirá uma lacuna deixada pela descriminalização da educação domiciliar e sua regulamentação por parte do poder legislativo. No atual cenário, caso ocorra, não se poderá esperar apenas das famílias e responsáveis por estudantes da modalidade domiciliar que cumpram com o compromisso de educar tão logo tal liberdade seja conquistada, e sim, que o Estado cumpra com o seu papel de legalizar, conduzir e resguardar, por meio de ações efetivas e de políticas públicas, para que o risco de queda na qualidade do ensino básico e o alargamento da desigualdade social não seja acentuado por controvérsias legais.
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[1] Mestre em Direito. Professora da Faculdade de Ciências Jurídicas de Paraíso do Tocantins (FCJP). E-mail: [email protected]
Graduanda do curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas de Paraíso do Tocantins (FCJP). E-mail: [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOTA, Maria Elcilene Gomes de Oliveira. O direito à educação frente a descriminalização da educação domiciliar como abandono intelectual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 maio 2022, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58353/o-direito-educao-frente-a-descriminalizao-da-educao-domiciliar-como-abandono-intelectual. Acesso em: 22 nov 2024.
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