RESUMO: O reconhecimento das manifestações culturais na esfera jurídica torna-se maleável ao identificar, proteger e garantir os direitos que lhe são aplicáveis. A doutrina, por sua vez, identificou os princípios e características dessas manifestações, sem encontrar uma posição unificada quanto à forma de construção da cultura do indivíduo ou sua participação no grupo que o cerca. Isso fez com que o sistema jurídico não considerasse um critério unificado sobre a noção de cultura e sobre o direito cultural. O objetivo geral do presente artigo é estudar os direitos animais e seus aspectos que repreendem qualquer ato que trate o animal como coisa, especialmente como forma de entretenimento. A série de martírios transformados em espetáculo mostra a ignorância, a barbárie e a impunidade com que os direitos mais básicos dos animais, como o direito à vida ou à dignidade, continuam sendo violados em nome da tradição. Uma das mostras mais pedidas deste catálogo é a de vaquejadas. O que se celebra com este ato muitas vezes é apontado como um costume, muitas vezes secular, que apela a valores tão legítimos e respeitáveis como a identidade local ou as raízes no território, mas que não podem ser impostos aos direitos do animal.
Palavras-chave: Direito dos animais. Vaquejada. Manifestação Cultural.
ABSTRACT: The recognition of cultural manifestations in the legal sphere becomes malleable when identifying, protecting and guaranteeing the rights that apply to it. The doctrine, in turn, identified the principles and characteristics of these manifestations, without finding a unified position regarding the way in which the individual's culture was built or his participation in the group that surrounds him. This made the legal system not consider a unified criterion on the notion of culture and on cultural law. The general objective of this article is to study animal rights and their aspects that rebuke any act that treats the animal as a thing, especially as a form of entertainment. The series of martyrdoms turned into a spectacle shows the ignorance, barbarism and impunity with which the most basic rights of animals, such as the right to life or dignity, continue to be violated in the name of tradition. One of the most requested shows in this catalog is that of vaquejadas. What is celebrated with this act is often pointed out as a custom, often secular, that appeals to values as legitimate and respectable as local identity or roots in the territory, but which cannot be imposed on animal rights.
Keywords: Animal rights. Vaquejada. Cultural manifestation.
Sumário. 1. Introdução. 2. Manifestações culturais. 2.1. Principais manifestações culturais no Brasil com o uso de animais. 2.2. Cultura x Maus-tratos. 3. Direito dos animais. 3.1. Conceito e evolução histórica. 3.2. A cultura do Massacre: Os danos reais causados contra os animais e a sua senciência. 4. Análise dos danos sofridos pelos animais em manifestações culturais. 4.1. Traumas físicos sofridos por animais. 4.2. O embate entre o STF e o Congresso. 5. Conclusão. 6. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Embora as vaquejadas não sejam um hábito cultural em todos os estados brasileiros, essas manifestações "artísticas e esportivas" fazem com que os animais não humanos sejam convidados forçados, que não apreciam o desenvolvimento desses festivais.
Muitos doutrinadores entendem que a vaquejada é uma exibição das tradições mais tristes e degradantes. Tradições envolvendo animais não humanos em suas celebrações e festas não são inéditas.
Sobre o suposto caráter cultural dessas práticas, há uma ampla gama de debates. Alguns doutrinadores defendem que todos esses esportes envolvem uma tradição popular, na qual são promovidos costumes, valores, ofícios e objetos que são expressão de cultura rural e popular, constituindo uma valiosa herança viva.
Mas esse é precisamente um aspecto problemático: permitir que uma cultura, uma identidade nacional e uma construção de tradições se sustentem em atos de crueldade e abuso de animais. As vacas sofrem lesões, pancadas e stress em consequência destas atividades que divertem a poucos.
O reconhecimento das manifestações culturais na esfera jurídica torna-se maleável ao identificar, proteger e garantir os direitos que lhe são aplicáveis. A doutrina, por sua vez, identificou os princípios e características dessas manifestações, sem encontrar uma posição unificada quanto à forma de construção da cultura do indivíduo ou sua participação no grupo que o cerca. Isso fez com que o sistema jurídico não considerasse um critério unificado sobre a noção de cultura e sobre o direito cultural. Desse modo, diante das questões norteadoras, o que é cultura? E o que deve ser considerado uma manifestação cultural? Quais aspectos tornam a emenda inconstitucional acerca dos maus tratos em manifestações culturais como a vaquejada? Tornou-se necessário estabelecer uma delimitação dessas categorias para entender quando uma prática deve ou não ser abrangida pelo direito cultural, utilizando a prova de culturalidade como método para determinar práticas como as manifestações culturais. Para o caso específico, a prática conhecida como “vaquejada”, em que há divergência entre o direito cultural e a proteção animal, é feita uma caracterização e análise à luz dessa proteção da fauna e dos princípios que fundamentam a validação cultural da proteção de sua essência cultural.
Diante disto, questiona-se: A vaquejada é uma prática que submete os animais à crueldade, os expondo a maus-tratos, vedada pelo art. 225, § 1º, VII, da Constituição Federal? A prática da vaquejada é ilegal e inconstitucional?
O objetivo geral do presente artigo é estudar os direitos animais e seus aspectos que repreendem qualquer ato que trate o animal como coisa, especialmente como forma de entretenimento. Já os Objetivos Específicos são: Demonstrar a violação de princípios constitucionais acerca do total descaso e indiferença com os animais; Verificar a emenda constitucional do Estado do Ceará que regulamentava a vaquejada como atividade desportiva e atual lei que leva a vaquejada ao status de manifestação cultural mesmo que provida de maus-tratos; Explicar o equilíbrio que deve permanecer entre ambos para que haja harmonia social.
Para atender aos objetivos propostos, recorreu-se à documentação indireta – com observação sistemática, abrangendo a pesquisa bibliográfica de fontes primárias e secundárias (doutrinas em geral, artigos científicos, dissertações de mestrado, teses de doutorado etc.), além de documentação oficial (projetos de lei, mensagem, leis, decretos, súmulas, acórdãos, decisões etc.).
A primeira seção abarca questões relativas às manifestações culturais, apresentando as principais manifestações culturais do Brasil com uso de animais. Posteriormente, destaca-se o direito dos animais, fazendo uma análise da evolução histórica, apontando os danos reais causados contra os animais e a sua senciência com vistas à humanização das normas. A terceira seção analisa os danos sofridos pelos animais em manifestações culturais, abordando o embate entre o STF e o Congresso e os traumas físicos sofridos por animais.
2 MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
2.1. Principais manifestações culturais no Brasil com o uso de animais
As culturas humanas são diversas e as distinções culturais podem ser sutis ou chocantes. Mesmo entre países ocidentais aparentemente muito semelhantes, as incongruências culturais podem ser consideráveis. Quando se analisa uma cultura, normalmente observa-se linguagem, religião, culinária, música e arte. Um aspecto da cultura que pode não receber tanta atenção quanto deveria são as semelhanças e diferenças culturais relacionadas à relação entre humanos e animais. As semelhanças são abundantes; virtualmente todas as culturas comem animais e os utilizam para fins científicos, para trabalho e entretenimento. Portanto, de acordo com Francione (2013, p. 18) “o uso e a exploração de animais são “culturalmente onipresentes”. Na verdade, a “universalidade da violência humana contra os animais é notável”.
Apesar das semelhanças óbvias, Andrade (2016, p. 146) menciona que “as diferenças culturais com respeito às atitudes e ao tratamento dos animais podem ser profundas”. As culturas têm visões diferentes sobre a natureza dos animais, sobre o valor de tipos específicos de animais e sobre os deveres morais e éticos para com os animais e como eles devem ser tratados. Na cultura ocidental, por exemplo, ter animais de estimação é endêmico; em chinês e culturas islâmicas, este não tem sido tradicionalmente o caso. Na Índia, as mulheres têm sido, por vezes, forçadas a casar com animais.
Embora seja um clichê, vive-se em um mundo globalizado, apesar de todas as diferenças culturais. E a globalização pode ter um impacto profundo na eficácia da defesa do benefício dos animais. As tentativas de uma nação para fornecer proteção aos animais podem ter consequências indesejadas em nosso mundo globalizado.
Neste mundo globalizado, economias e culturas se misturam, fermentam, se fundem e, ocasionalmente, batalham em um amálgama de práticas que se cruzam frequentemente, às vezes paralelas e, ocasionalmente, extremamente divergentes. Dadas as consequências da globalização, na busca por direitos e proteção dos animais e diferenças culturais, as semelhanças são agora de importância primordial na determinação de uma estratégia global para a defesa dos animais. A terceirização da exploração animal torna uma “estratégia de um estado” na defesa dos direitos e proteção dos animais implausível. O problema que então se apresenta é, segundo Andrade (2016, p. 147) dado “o pot-pourri das culturas humanas e a necessidade de ter uma visão global da defesa dos direitos dos animais, como os defensores dos direitos dos animais podem defender os animais da maneira mais eficiente e bem-sucedida”.
Aspectos do que se observa na relação entre humanos e animais peculiares a uma cultura são o que chama-se de “solipsismo cultural” no que diz respeito a essa relação. Cada cultura tem uma lente através da qual vê o mundo - um ponto de vista coletivo; uma janela distinta através da qual olha para o mundo. Essa perspectiva cria uma realidade compartilhada para a cultura e uma estrutura que determina como a cultura e os indivíduos na cultura veem sua relação com todos os aspectos do mundo, incluindo outras culturas, humanos em geral, o meio ambiente e, crucialmente para os propósitos atuais, os animais. Como metáfora, pode-se dizer que cada cultura vê o mundo por meio de lentes culturais peculiares. Sales (2017, p. 12) aponta que a forma como o mundo “aparece em cada cultura depende de como essas lentes são moldadas e fixadas. E uma vez que cada cultura individual percebe o mundo através de suas próprias lentes distintas, cria-se o "solipsismo cultural" e está lente em particular como a "Lente Culturalmente Solipsística"”.
Pode-se dizer que esta é simplesmente outra forma de empacotar o "relativismo cultural". Embora o que chama-se de solipsismo cultural tenha algumas semelhanças superficiais com o relativismo cultural, o solipsismo cultural tem uma ênfase diferente. O relativismo cultural olha para dentro de uma cultura a partir da perspectiva dessa cultura. É um método de antropologia que visa evitar a aplicação de preconceitos culturais na análise de diferentes culturas, analisando cada cultura da perspectiva dessa cultura, levando proponentes extremistas a concluir que não há ideias de certo ou errado que transcendam a cultura e nenhuma cultura tem justificativa para aplicar suas crenças ou regras a outras culturas.
A série de martírios transformados em espetáculo mostra a ignorância, a barbárie e a impunidade com que os direitos mais básicos dos animais, como o direito à vida ou à dignidade, continuam sendo violados em nome da tradição.
A Farra do Boi, as rinhas, os rodeios e o uso de animais em circo são exemplos de eventos que provocam o divertimento humano, às custas da exploração e prática de crueldade contra os animais. Nesses casos, preceitos constitucionais entram em choque: o direito à manifestação cultural (artigo 215, §1o, da Constituição Federal) e ao lazer (artigo 217, § 3o da Constituição Federal), em contraposição à tutela dos animais contra tratamentos cruéis (artigo 225, VII, da Constituição Federal). Tal questão foi levada ao Judiciário pelas organizações não governamentais e entidades públicas responsáveis pela proteção do meio ambiente e enseja a ponderação de valores para que se chegue a uma solução razoável. Os Tribunais pátrios, em recentes decisões, enfrentaram a matéria objeto da divergência, tendo proclamando importantes precedentes (FELIZOLA, 2014).
Uma das mostras culturais mais pedidas é a de bezerros. A diversão é pegar um bezerro tão jovem que muitas vezes mal está de pé e oferecê-lo a um bando de maníacos para sacudi-lo, arrancar seu rabo quase fora, passá-lo por obstáculos e finalmente esfaqueá-lo até a morte. O que se celebra com este ato desumano é um costume, muitas vezes secular, que apela a valores tão legítimos e respeitáveis como a identidade local ou as raízes no território, mas que não podem ser impostos aos direitos do animal. E o que é especialmente inadmissível é que a cultura seja invocada para defender o que a ameaça (SILVA, 2019).
A vaquejada, uma tradicional festa cultural nordestina, em que vaqueiros montados tentam derrubar o boi puxando-o pelo rabo. Quem deixar o animal caído com as quatro patas para cima marca pontos. A festa remonta aos séculos XVI e XVII e movimenta muito dinheiro, com importância econômica para vários estados do Nordeste (MEDEIROS, 2017).
2.2 Cultura x Maus-tratos
O debate começou com o tema da festa selvagem que reunia bois, vacas, cavalos e, apesar de estar em vigor há muitos anos, ganhou mais força com as recentes decisões que atualizaram o tema e de alguma forma o colocaram na arena pública. Castro (2016) contextualizou o movimento pelos direitos dos animais, que para ele é responsável por tornar visível o oculto e questionar certas formas de violência contra os seres sencientes. Para o autor, questionar-se diante da violência contra os animais transcende a esfera pública e passa a fazer parte do âmbito ético e moral. Segundo ele, está surgindo uma nova consciência sobre as diversas formas de violência que mudou a forma como vemos determinadas atividades com os animais.
A definição de animais como seres sencientes e seres que não nasceram para esses fins (para serem torturados) foi altamente controversa à luz da resposta dos vaqueiros. Para Peralta (2019), os touros da casta só nasceram para participar das touradas e questionou o conhecimento dos animalistas sobre a casta do touro, além de afirmar que se não for no âmbito da festa, esses animais serão extintos. Manrique (2020) também questionou por que os defensores dos animais se casaram em uma luta contra a festa, enquanto ninguém faz ou diz nada sobre outros esportes, como pesca e até agricultura intensiva.
Na esfera da moralidade, surge um debate onde as pessoas perguntam se as formas de exploração animal são adequadas. Começam a surgir respostas que as pessoas que viviam na sociedade do século XIX não davam. Para López (2017), isso é influenciado pela grande migração do campo para a cidade: os citadinos têm relações com os animais diferentes dos que moram no campo. Essas mudanças são importantes porque os problemas passam de uma esfera meramente moral para uma esfera jurídica.
A lei diz ao cidadão como se comportar, mas muitas vezes o cidadão também pede coisas à lei, diz López (2017). Muitos doutrinadores (Felizola, 2014; Martins, 2016, Souza, 2018) salientam que as vaquejadas são legais, mas muitos cidadãos sentem que com base na lei atual existem restrições que proíbem a tortura de animais. Assim como a moralidade não é uma, o direito também não é unívoco. As leis mais antigas permitem formas de exploração animal, mas ao mesmo tempo há uma interpretação expansiva da constituição que permite discutir questões que pareciam muito claras.
3 DIREITO DOS ANIMAIS
3.1 Conceito e evolução histórica
Na política, sustenta-se que os animais têm uma voz, por meio da qual expressam dor e prazer, mas não podem significar o que é prejudicial ou conveniente, de modo que carecem dos conceitos de bem e mal, o que não significa ignorar imediatamente o que os prejudica ou beneficia. Com isso, Aristóteles segue a linha estabelecida por Platão, segundo a qual o bem se distingue dos prazeres, acrescentando, porém, uma teleologia da natureza, já que aquela dor e aquele prazer têm um sentido, pois a natureza, como costumamos dizer, ela não faz nada em vão. Aristóteles reitera essa ideia ao afirmar que a natureza não deve ser estudada abstratamente, pois ela sempre tem um propósito e que, quando há um movimento animal, ele atua de acordo com esse propósito. A ideia de propósito é também uma das chaves da política aristotélica, cujo sentido é viver bem, não no sentido material, mas no sentido de estar orientado para o bem. Essa ligação entre, por um lado, a ordem e a finalidade natural e, por outro, o sentido ou finalidade da natureza, torna especialmente significativa a analogia que Aristóteles estabelece entre a vida e a política, especialmente a boa política, conforme afirma em “O movimento dos animais” a constituição de um animal deve ser considerada semelhante à de uma cidade bem governada. Pois quando a ordem é estabelecida em uma cidade, um governante com poderes arbitrários não precisa estar presente em todas as atividades especiais.
Outros escritos aristotélicos sobre animais concordam que as sensações obedecem à teleologia da vida e dos seres vivos. No primeiro capítulo do segundo livro das Partes dos Animais, Aristóteles argumenta que os animais não humanos seriam suficientemente dotados para cumprir fins naturais, principalmente graças aos movimentos necessários para isso. Sem entrar no debate sobre se Aristóteles antecipa o conceito de função, a ideia aristotélica de “bom governo” não é contraditória com a concepção contemporânea de um sistema autorregulado onde suas partes cumprem funções que apontam para o mesmo fim sem exigir nem um conhecimento racional dele nem um governo arbitrário, ainda que tenha surgido. Um sistema autorregulador também se identifica com o ideal de anarquia, não no sentido vulgar que identifica esse conceito com algum tipo de desordem ou caos, mas em seu sentido político. E, embora em seu significado político e técnico tenha uma ampla variedade de significados, em todos ou quase todos eles supõem-se uma autorregulação política e social de seus componentes, sem a necessidade de um corpo legislativo ou repressivo externo ao corpo. A isto acrescenta-se que neste sistema anárquico há um cumprimento autônomo de funções pelos seus membros, sem exigir o conhecimento racional da finalidade que se cumpre em cada função, tal como um bom trabalhador humano não necessariamente conhece nem compreende a finalidade última de sua contribuição trabalhista.
O autogoverno funcional dos animais pelos animais, sem poderes arbitrários ou externos, acentua a analogia política para compreender a autonomia da vida animal. No entanto, o autogoverno animal se dá sem levar em conta o bem e o mal, consideração que é exigida pelo político em vários dos principais sistemas filosóficos, com exceção da linha que abre com Trasímaco no diálogo A República (Platão, 2006) e continua com O Príncipe (Maquiavel, 2005), que, embora de forma diversa, subordinam a ideia do bem, ao menos político, à conveniência dos mais fortes. A cidade que constitui a vida animal (entendida como uma unidade analogicamente política) também não exige a moral, que Aristóteles reserva para os animais racionais, que podem produzir juízos sobre o bem e o mal, que podem até ser contrários às sensações, de dor ou de prazer.
Pode-se definir Direito Animal como o conjunto de teorias, princípios e normas destinadas a dar proteção jurídica ao animal de outra espécie que não a do ser humano, promovendo e garantindo seu bem-estar e proteção. Uma noção semelhante é dada por Castro (2016, p. 46) que afirma que o direito animal é, em sua forma mais simples e ampla, aquela lei estatutária e jurisdicional em que a natureza - legal, social ou biológica - dos não humanos é um fator de relevância. O horizonte deste regulamento é uma questão em constante discussão, pois há quem proponha um regulamento dedicado a garantir o bem-estar animal no atual quadro comercial e industrial, evitando assim sofrimentos e abusos injustificados; enquanto, por outro lado, afirma-se que o objetivo do Direito Animal deve ir ainda mais longe, gerando um novo marco regulatório na busca de consagrar a noção de que o animal não é um bem para ser comercializado, mas sim um ser autônomo, dotado de direitos e prerrogativas, com capacidade de sofrimento e gozo e com identidade ou subjetividade própria. Nesta última tendência, Peralta (2019) afirma que o objetivo final de uma regulamentação desse tipo deve ser a total dissolução do comércio animal e agrícola, para isso, não são necessárias apenas reformas com objetivos claros, mas também a modificação de crenças e costumes no plano social, complexas e exigentes transformações.
Independentemente de qual das duas posições seja adotada, existem alguns conceitos que são relevantes para a construção desta disciplina. Castro (2016, p. 32) define animal como "Ser orgânico que vive, sente e se move por impulso próprio". Oliveira (2017) define o animal como qualquer "ser senciente", para quem ser senciente é aquele que tem a capacidade de avaliar as ações dos outros em relação a si mesmo e a terceiros; para lembrar algumas de suas ações e suas consequências; para avaliar riscos, ter alguns sentimentos e algum grau de consciência ". Nesse sentido, ele destaca que embora seja difícil prever quais outros seres vivos poderemos reconhecer como seres sencientes no futuro, esperamos que as evidências científicas nos indiquem isso, para não cometermos injustiças como assumindo que um determinado ser vivo não sente, quando na verdade, pode estar sentindo.
No plano internacional, a UNESCO e mais tarde a ONU aprovou a "Declaração Universal dos Direitos dos Animais", proclamada em 15 de outubro de 1978 em Paris, onde o preâmbulo começa afirmando que "Todo animal tem direitos" e os artigos consagrados no direito de existir, de respeitar, de cuidar e de proteger do homem, de não receber maus-tratos ou atos cruéis, à liberdade dos animais pertencentes a uma espécie selvagem em seu próprio natural ambiente, terrestre, aéreo e de reprodução, para viver e crescer no ritmo e nas condições de vida e liberdade que são típicas de suas espécies daqueles animais que vivem no ambiente do homem, por não abandono, limitação de tempo razoável e intensidade de trabalho e uma dieta restauradora e descanso de animais de trabalho, a limitação da experimentação animal que envolva sofrimento físico ou psicológico é incompatível com os direitos do animal, a preservação do animal da ansiedade ou dor mesmo quando criado para alimentação, à não exploração para a recriação do homem, à proibição do biocida –crime contra a vida-, do genocídio –crime contra a espécie-, ao respeito mesmo após a morte, à proibição de cenas de violência contra animais no cinema e na televisão, para defender seus direitos por lei, como os direitos do homem.
Em 2003 a Sociedade Mundial de Proteção Animal propõe a "Declaração Universal de Bem-Estar Animal”, que é uma proposta intergovernamental acordo perseguir a adoção das Nações Unidas, a fim de reconhecer que os animais são seres capazes de sentir e sofrimento, e promove seu bem-estar, seu respeito e o fim de atos de crueldade para com eles.
3.2 A cultura do Massacre: Os danos reais causados contra os animais e a sua senciência
A senciência é um fenômeno subjetivo multidimensional que se refere à profundidade de consciência que um indivíduo possui sobre si mesmo e sobre os outros. Quando perguntamos sobre a senciência em outros animais, estamos perguntando se a experiência fenomenológica deles é semelhante à nossa. Eles pensam sobre si mesmos como nós? Eles ponderam sobre suas próprias vidas? Eles sabem que outros indivíduos têm sentimentos e pensamentos? E eles têm um sentido autobiográfico do passado e do futuro?
Souza (2017) aponta que em seus níveis mais sofisticados cognitivamente, a senciência pode ser conceituada no contexto de três domínios ou capacidades psicológicas relacionadas. Está se tornando cada vez mais claro a partir da evidência acumulada de que esses três domínios não são um 'pacote' cognitivo; apesar de
nosso conhecimento ainda limitado, neste momento, elas parecem ser capacidades relacionadas separáveis. Os dois primeiros têm a ver com a consciência de si mesmo, física e/ou mentalmente. Primeiro, a autoconsciência é um senso de identidade pessoal, particularmente autobiográfica. A autoconsciência pode existir em um nível físico, referido como auto-reconhecimento, para níveis mais abstratos de continuidade psicológica ao longo do tempo. Em segundo lugar, a metacognição é a capacidade de pensar ou refletir sobre os próprios pensamentos e sentimentos, e é claramente subscrita pela autoconsciência na esfera psicológica, mas não necessariamente pela autoconsciência na esfera física (isto é, auto-reconhecimento). E terceiro, a Teoria da Mente (ToM) compreende capacidades, como tomada de perspectiva, modelagem da vida mental dos outros, incluindo empatia. ToM é orientado para os outros, relacionado à capacidade de assumir a perspectiva física e mental dos outros, e é presumivelmente subscrito pela metacognição.
A senciência refere-se a qualquer um desses fenômenos psicológicos. Em seres humanos adultos normais, todas essas três capacidades são encontradas até certo ponto. O estudo da senciência em outros animais equivale a determinar quantas e em que medida essas capacidades são compartilhadas. Embora tenhamos a tendência de ver os humanos como tendo todo o alcance e profundidade da senciência, é importante reconhecer a possibilidade de que outros animais possam ter propriedades de senciência que os humanos não possuem. Essa possibilidade é difícil de avaliar.
4 ANÁLISE DOS DANOS SOFRIDOS PELOS ANIMAIS EM MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
4.1 Traumas físicos sofridos por animais
Para os filósofos utilitaristas, questionaram-se as máximas que justificam o ser racional como único sujeito e destinatário da lei; Assim, para Souza (2017), a capacidade de raciocinar ou falar dos seres vivos é irrelevante, mas não o sofrimento que eles possam sofrer com qualquer ato que cause sofrimento não ser vivo, independentemente de sua racionalidade; daí vem o direito de que os animais não sejam tratados com crueldade. Para Silva (2015), o ser que sente ou "ser senciente" configura-se como o único limite defensável da atenção aos interesses dos outros, portanto a ação se traduz em não causar ou reduzir danos, inclusive nos animais. Além disso, o especismo que se traduz na atitude parcial favorável aos interesses dos membros de nossa própria espécie encontrando outros, não é razão válida para justificar o dano ou tirar a vida do ser, como na questão constitucional e legal. No cenário internacional, em 15 de outubro de 1978, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais foi aprovada pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) e, posteriormente, aceita pela Organização das Nações Unidas (ONU) e mantém-se a doutrina sobre a limitação dos direitos fundamentais das pessoas, em face dos direitos dos animais, doutrina que dará suporte adicional ao conteúdo da Carta Magna, que estabelece a responsabilidade do Estado de proteger os fundamentos naturais da vida e dos animais no interesse das gerações futuras.
Apesar do exposto, em uma perspectiva menos antropocêntrica, o direito à vida que assiste os animais com os quais coabitamos a terra não pode, nem deve, ser reduzido a uma simples questão legal ou a um dissenso cultural; o problema transcende plataformas e tradições e se instala no que se entende de sustentabilidade como ética: A ética na visão da sustentabilidade é uma abordagem fundamental que transcende “facções, ideologias, partidarismo, sectarismo ou qualquer tipo de atitude ou sintoma de um grupo fechado; é, na realidade, um compromisso com o trabalho humanístico, pela vida, respeito pelo meio ambiente e pela natureza” (CAMPOSA, 2018, p. 23).
Assim, validou-se a senciência como um critério moral autônomo para a proteção de animais e fonte do direito de não 'sofrer desnecessariamente'. Oliveira (2017) alerta também, a respeito desse reconhecimento, que a suposta lesão aos direitos de um sujeito de direito não humano torna necessário que ele tenha uma “representação humana”. Ou seja, já que o 'animal' é "incapaz de fato, sua representação legal torna-se obrigatória e necessária”. Observa-se, assim, uma virada substancial no tratamento legal dos animais que, se geridos como “bens” sujeitos ao regime de propriedade, são tratados como sujeitos de direito. Em outras palavras, ver sua capacidade de sentir e sofrer protegida.
Algumas medidas permitem argumentar que a aplicação do princípio do “sofrimento desnecessário” funciona apenas como critério normativo para motivar a decisão do juiz de eliminar a prática cruel – em seu significado de 'insuportável', 'excessivo', 'sangrento', 'duro' e 'violento' – e substituí-lo por métodos de 'abate humanitário'. No entanto, não cabe inconsciente de que a aplicação expansiva deste princípio pode ser uma verdadeira garantia dos interesses dos animais. Especificamente, quando o interesse dos animais em não sofrer prevalece sobre o interesse humano de uso, ou quando valoriza-se como 'desnecessária' determinada prática à qual a produção é inerente do sofrimento dos animais.
4.2 O embate entre o STF e o Congresso
Colocando a reflexão constitucional em uma perspectiva prática, Silva (2021) analisou o caso “Associação Brasileira de Vaquejada / Procuradoria-Geral da República” (ação direta de inconstitucionalidade 4.983) perante o Supremo Tribunal Federal e sua relação com a emenda constitucional nº 96/2017, do artigo 225 da Constituição Brasileira.
Como salientado, a vaquejada é uma prática esportiva, muito popular no Brasil, que consiste em uma competição em que duas pessoas, montadas a cavalo, tentam derrubar um touro em uma área demarcada no terreno. Essa atividade foi regulamentada no Estado do Ceará por meio da Lei nº 15.299 de 2013. Após a promulgação dessa lei, o Supremo Tribunal Federal do Brasil teve que se pronunciar sobre sua constitucionalidade, analisando o conflito entre o pleno exercício dos direitos culturais, consagrados no artigo 215 da Constituição brasileira, e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, contido no artigo 225.
O primeiro desses artigos indica que “O Estado garantirá a todas as pessoas o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e divulgação das manifestações culturais” e acrescenta em seu parágrafo primeiro: “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional” .
Considerando ambos os artigos, a Lei nº 15.299 que regulamentou as vaquejadas foi declarada inconstitucional, uma vez que esta atividade causa sofrimento desnecessário em animais não humanos.
Após a edição desta sentença, no entanto, o texto original do artigo 225 da Constituição Brasileira de 1988 foi modificado, acrescentando um novo parágrafo sétimo que estabelece que “Para os fins do disposto na parte final do inciso sete doparágrafo primeiro deste artigo, as práticas esportivas que utilizam animais não são consideradas cruéis, desde que sejam manifestações culturais, de acordo com o § 1º do art. 215 desta Constituição Federal, registrado como bem de natureza imaterial que faz parte do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentado por lei específica que garanta o bem-estar dos animais envolvidos”.
Gomes (2021) referiu-se à importância de gerar um diálogo interseccional no que diz respeito às questões socioambientais, para que fórmulas regulatórias que respeitem os valores mínimos intransigíveis possam ser alcançadas por meio de acordos constitucionais. Silva (2021) e Gomes (2021) defendem que parece que há uma espécie de opressão contra o meio ambiente, contra os animais e contra as expressões culturais, e não há interseccionalidade entre os brasileiros. Então, esses tipos de discussões acontecem e, se forem “juridificadas”, caímos na armadilha de ponderar o imponderável.
A "cultura" não pode ser colocada acima do maltrato animal, que é intrínseco a todos os espetáculos de vaquejadas, e que está presente de forma particularmente cruel em todas e cada uma das festividades que se realizam.
5 CONCLUSÃO
Mais um ano, aqueles de nós que tiveram a oportunidade de viajar de férias pela nossa geografia constataram mais uma vez o variado e tremendo catálogo de formas de maus- tratos aos animais que são exibidos nas festas populares.
A série de martírios transformados em espetáculo mostra a ignorância, a barbárie e a impunidade com que os direitos mais básicos dos animais, como o direito à vida ou à dignidade, continuam sendo violados em nome da tradição.
]Uma das mostras mais pedidas deste catálogo é a de vaquejadas. O que se celebra com este ato muitas vezes é apontado como um costume, muitas vezes secular, que apela a valores tão legítimos e respeitáveis como a identidade local ou as raízes no território, mas que não podem ser impostos aos direitos do animal. E o que é especialmente inadmissível é que a cultura seja invocada para defender o que a ameaça. Porque tortura animal não é cultura, muito pelo contrário. E mais: devemos recorrer a ela para erradicar esse tipo de celebração da tradição.
É muito bom que se façam manifestações contra as vaquejadas e pela abolição desta. É bom que de vez em quando mostremos força social e mostremos que cada vez mais somos a favor dos animais e contra a sua tortura. Mas devemos dar um passo adiante nesse compromisso.
Assim, além de apelar ao cumprimento da legislação em vigor e exigir a sua proibição, é necessário lançar uma grande campanha de educação e sensibilização cidadã para promover uma mudança geral de atitude em relação aos animais, com especial atenção ao mundo rural.
Devemos ir às escolas e centros cívicos, aos sindicatos agrários e cooperativas rurais para explicar por que é necessário avançar para um melhor tratamento dos animais e acabar de uma vez por todas com as tradições baseadas em seus maus-tratos que nos mantêm com um pé no chão da barbárie.
Se queremos que a grosseria no tratamento dos animais dê lugar a uma maior consideração e respeito, devemos favorecer a compreensão, buscar a cumplicidade. As alianças devem ser estabelecidas com base no desejo de compreensão, sem recorrer a uma suposta supremacia moral ou imperativo legal.
Embora pareça um paradoxo, para avançar em direção a novas tradições livres de crueldade animal devemos seduzir em vez de impor, ensinar em vez de instruir. E a melhor ferramenta para conseguir isso é a cultura. Chegará ao fim o dia em que as vaquejadas causarem mais rubor do que alegria no povo da cidade. Trabalhemos a partir da cultura, além da legalidade, para que assim seja.
6 REFERÊNCIAS
ANDRADE, Fernanda. A condição de Sujeitos de Direitos dos Animais Humanos e Não Humanos e o Critério da Senciência. Saber, Salvador, Bahia. v.11, n.23, 143-171, set-Dez. 2016.
CASTRO, M. Direitos dos Animais e a Garantia Constitucional de Vedação à Crueldade. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 1, n. 13, 2016.
FRANCIONE, G. L. Introdução aos Direitos dos Animais. São Paulo: EDITORA UNICAMP, 2013.
GOMES, Carlos. Libertação Animal. São Paulo: Martins Fontes, 2022.
OLIVEIRA, K. F. O Direito dos Animais e a quarta dimensão dos Direitos Fundamentais: Análise da Jurisprudência do STF. 2017. Monografia (Bacharelado em Direito) - Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais no Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Brasília, 2017.
SALES, R. A (in)constitucionalidade da Emenda Constitucional 96/2017 que busca legitimar a Vaquejada sob a Édige da proteção cultural e imaterial brasileira. 2017. Monografia. (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte –UFRN, Natal.
SANTOS, S. Os animais e o STF: Os Limites Jurisprudenciais Do Direito Animal. Salvador: NeoJuris, 2018.
SILVA, Camila. Pesquisas em animais vivos: usos e abusos. Animais-bióetica e direito. Coord. Tereza R. Vieira e Camila H. Silva. Portal Jurídico, Brasília, 2021.
Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário Fametro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Jéssica Rafael da. Análise da manifestação cultural da vaquejada em contradição ao regime de proteção aos animais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 maio 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58503/anlise-da-manifestao-cultural-da-vaquejada-em-contradio-ao-regime-de-proteo-aos-animais. Acesso em: 22 nov 2024.
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