MARCIUS ROBERTO PIMENTEL DE CARVALHO [1]
(coautor)
GILBERTO ANTÔNIO NEVES PEREIRA DA SILVA [2]
RESUMO: A presente pesquisa tem relevância no contexto nacional, posto que se volta ao estudo da Liberdade das Formas e a segurança jurídica à luz do Código civil de 2002. Tem-se por problema de pesquisa: a liberdade das formas afeta a segurança jurídica à luz do código civil de 2022? Logo, tal pesquisa se propôs a fazer uma análise sobre a “visão contemporânea dos contratos”, “a compra e venda no direito brasileiro” e o consensualíssimo contemporâneo dos contratos. Objetivou-se, desse modo, fazer um estudo com o intuito de analisar se a liberdade das formas afeta ou não a segurança jurídica à luz do que prevê o código civil de 2002, uma vez que está prevista no Código civil de 2002, foi adotada pelo legislador, portanto nem sempre prejudica a segurança jurídica ou será que prejudica? Quanto aos meios, a pesquisa foi bibliográfica, pelo fato de a fundamentação teórico- metodológica ser necessária para este estudo.
Palavras-chave: Contrato, Liberdade Contratual, Função social do contrato, Código Civil 2002, Segurança Jurídica.
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa se volta a identificar de que forma a liberdade das formas tem afetado a segurança jurídica à luz do que prevê o código civil de 2002.
Dessa maneira, tem-se como delimitação do tema: a liberdade das formas e a segurança jurídica à luz do código civil de 2002.
Em assim sendo, eis o problema de pesquisa: a liberdade das formas afeta a segurança jurídica à luz do código civil 2002?
O desenvolvimento da pesquisa terá como base a revisão bibliográfica acerca da temática da teoria geral dos contratos e os seus princípios que devem ser observados na formação dos contratos à luz do que prevê o código civil de 2002.
O objetivo da pesquisa visa identificar se a liberdade das formas afeta a segurança jurídica uma vez que está prevista no código civil de 2002, foi adotada pelo legislador, portanto nem sempre prejudica ou será que prejudica?
Assim, será analisado a segurança jurídica frente a liberdade da autonomia da vontade das partes, utilizando como referência o código civil 2002.
Para alcançar as considerações finais da presente pesquisa, propõe-se trabalhar no primeiro momento, na revisão bibliográfica em Direito civil sobre a formalidade dos contratos na visão contemporânea, bem como os princípios que regem os contratos no estado democrático de direito, de acordo com o que prevê o código civil de 2002.
Depois discorrer-se-á sobre a funcionalização do contrato. Na sequência, discorrer-se-á sobre a compra e venda, suas características e efeitos, bem como a solenidade exigida no direito brasileiro.
E, por fim, discorrer sobre o consensualismo contemporâneo dos contratos, a relativização do formalismo, a segurança jurídica e a preservação da vontade das partes.
O artigo será desenvolvido através de uma pesquisa bibliográfica com abordagem dedutiva no que diz respeito a analise da formalização dos contratos, a preservação da vontade das partes e a segurança jurídica à luz do que prevê o código civil de 2002, por meio da consulta em livros, artigos, teses, dissertações, legislações e jurisprudências brasileiras atinentes á temática.
A pesquisa tem como objetivo geral analisar de que maneira a liberdade das formas preserva a vontade das partes, sem prejudicar a segurança jurídica de acordo com o que prevê o código civil de 2002, sem intenção de esgotar o assunto, que merece atenção crescente da academia.
2.CONTRATO NA VISÃO CONTEMPORÂNEA
Ao longo da história, corriqueiramente, as expressões pacto, convenção e contrato, vocábulos que comportam acepções distintas tanto na perspectiva histórica quanto na técnica, tornou-se voz corrente dizer que o contrato é a espécie mais importante dos negócios jurídicos.
Partindo dessa premissa, o contrato, é um dos pilares do direito privado, um dos institutos jurídicos mais antigos e mais significativos do direito privado, está sempre em constante mudança, amoldando-se a realidade social e histórica ao qual está inserido.
Ao longo dos séculos, o direito contratual foi marcado por uma concepção individualista, restrito somente as artes. Trazia a ideia de que as partes eram livres para contratar com quem quisessem e da forma que quisessem inspiradas pelo princípio da autonomia da vontade.
No entanto essa concepção, não é mais absoluta no direito contratual contemporâneo, o contrato não pode ser analisado como algo fora do contexto social.
Nesse sentido, à concepção de contrato, sofreu inúmeras mudanças em especialmente com o advento do Código Civil de 2002, ao inserir no ordenamento jurídico positivo os princípios da dignidade da pessoa humana, a liberdade contratual, a força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda), Relatividade, boa-fé objetiva, Equilíbrio econômico e a função social do contrato, manifestando-se, através de vários dispositivos, a preocupação com o equilíbrio material nas relações contratuais.
Assim, a visão contemporânea de contrato em muito se difere do diploma anterior, que se caracterizava por um individualismo exacerbado. Hoje o contrato é visto como um instrumento dinâmico, voltado não apenas à satisfação dos interesses ou necessidades individuais das partes, mas direciona-se também à produção de efeitos externos às partes contratantes.
Portanto, a visão contemporânea do contrato impõe um novo olhar, uma nova concepção, onde tais princípios devem ser obrigatoriamente observados, revelando um respeito maior ao interesse coletivo em detrimento apenas do interesse individual.
2.1 Princípios Contratuais no Estado Social democráticos de direito
A palavra “princípio” traz uma ideia de início, começo, e também de fundamento. No passado, os princípios só entravam em cena caso não houvesse norma ou dispositivo legal para dirimir um determinado conflito. E, mesmo nesse cenário os princípios tinham que concorrer com os costumes e analogias, elementos que no passado integravam o ordenamento jurídico.
Contudo, e com o advento da Constituição Federal de 1988 e com a edição do Código de Defesa do consumidor (Lei 8.078/90), os princípios ganham força, passando a dispor de autonomia e positivação no ordenamento jurídico em larga escala, passando a ser inserido nos principais ordenamentos jurídicos, adquirindo importância singular, inclusive, no direito brasileiro.
E importante destacar que atualmente os “princípios” não se encontram mais atrelados às lacunas da legislação, ou não exclusivamente a essa situação. Constituem autênticas normas jurídicas, de natureza cogente, a prescreverem condutas e servindo de elemento conformador do sistema jurídico ao direcionarem o melhor sentido para a valoração e aplicação das demais normas jurídicas pertencentes ao sistema” (JUNIOR, 2013, p.40).
Nesse sentido, cabe salientar que o Código Civil de 2002, alterou profundamente a filosofia do direito civil brasileiro ao inseri explicitamente no seu corpo legislativo os “princípios”, que citamos com exemplos os contidos nos art. 421 (função social do contrato), art. 422 (boa-fé objetiva) e vários outros que abordaremos a seguir.
2.1.1 Princípio da dignidade humana
O status de norma constitucional que ocupa hoje o princípio da “dignidade humana” é bem diferente do que ocupou ao longo da história da humanidade. Tal, principio, só foi reconhecido internacionalmente após a Declaração Universal dos Diretos do Homem em 1948.
Seguindo a mesma linha da Declaração Universal dos Diretos do Homem, a Constituição Federal de 1988, consagrou em seu art.1º, III, “a dignidade da pessoa humana” como um de seus fundamentos, in verbis:
“Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III — a dignidade da pessoa humana”.
Mais do que garantir, a mera sobrevivência, este princípio assegura o direito de se viver plenamente, viver com dignidade, sem qualquer intervenção estatal ou particular, na efetivação dessa finalidade.
Ao comentar a respeito desse importante princípio Pablo Stolze Gagliano aduz:
"a sua definição é missão das mais árduas, muito embora arrisquemo-nos em dizer que a noção jurídica de dignidade traduz um valor fundamental de respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e à busca da felicidade." (GAGLIANO, 2021, p.101)
Nessa mesma linha, discorrendo sobre esse importante tema, ALEXANDRE DOS SANTOS CUNHA, acentua:
"“O princípio da dignidade da pessoa humana, não obstante a sua inclusão no texto constitucional, é, tanto por sua origem quanto pela sua concretização, um instituto basilar do direito privado. Enquanto fundamento primeiro da ordem jurídica constitucional, ele o é também do direito público. Indo mais além, pode-se dizer que é a interface entre ambos: o vértice do Estado de Direito." (GAGLIANO, 2021, p.101)
Nesse sentido, a consagração desse princípio é o reconhecimento de que a ordem jurídica existe em função da pessoa humana, para a sua proteção e o seu desenvolvimento. Logo, tal princípio serve como base sólida para a construção de um sistema jurídico de direito contratual, para que tenha assim um mínimo de legitimidade.
Com efeito, o direito contratual recepcionou o princípio da dignidade humana como elemento indispensável que valida o pactuado, não apenas como forma de garantia entre as partes, mas também de validade perante toda a sociedade. Pois existindo confronto entre o pactuado no contrato e a dignidade da pessoa humana, prevalecera este último em detrimento do primeiro.
2.1.2 Princípio da autonomia da vontade
Não se pode pensar em contrato sem autonomia da vontade. Mesmo no sistema brasileiro que toma por princípio maior a função social do contrato, ainda assim, não se pode neutralizar a livre- iniciativa das partes, consoante bem advertiu o insuperável professor ARRUDA ALVIM:
“Parece, portanto, que a função social vem fundamentalmente consagrada na lei, nesses preceitos e em outros, mas não é, nem pode ser entendida como destrutiva da figura do contrato, dado que, então, aquilo que seria um valor, um objetivo de grande significação (função social), destruiria o próprio instituto do contrato”" (GAGLIANO, 2021, p.110).
Como bem leciona o ilustre professor, mesmo tendo por vetor a função social do contrato, o contrato é instrumento voluntarista, fruto da autonomia privada e da livre- iniciativa.
Na mesma esteira Clovis V. do Couto e Silva:
“Entende-se por autonomia de vontade, a “facultas”, a possibilidade, embora não ilimitada, que possuem os particulares para resolver seus conflitos de interesses, criar associações, efetuar o escambo dos bens e dinamizar, enfim, a vida em sociedade. Para a realização desses objetivos, as pessoas vinculam-se, e vinculam-se juridicamente, através de sua vontade41." (JUNIOR, 2013, p.43).
Essa liberdade de contratar ou (liberdade contratual), nada mais é que a livre escolha pelas partes de optarem com quem contratar e o que pactuar.
São ainda livres para pactuarem, sob os limites das normas cogentes e dos bons costumes, o que bem lhe convier, o que resulta mais adequadamente na chamada “liberdade contratual ou liberdade de disposição do conteúdo do contrato”.
Esse princípio, engloba tanto a liberdade dos sujeitos escolherem com quem querem contratar, como também a modalidade contratual a ser pactuada (compra e venda, locação, doação, empréstimo etc.) e de que maneira disporão sobre o conteúdo desse contrato.
O princípio da autonomia da vontade, nesse viés, almeja no plano da bilateralidade do contrato, o que também pode ser expressa pelo denominado consensualismo, ou seja, o encontro de vontades livres que faz nascer o consentimento, que é a pedra fundamental de todo negócio jurídico contratual.
Portanto, "Contrato sem vontade não é contrato. Pode ser tudo. Até tirania. Menos contrato." (GAGLIANO, 2021, p.112).
Assim, o princípio da autonomia da vontade está intimamente ligado ao at.421, CC, que dispõe:
“Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.”
Seguindo essa esteira, significa dizer que os sujeitos que estão envolvidos no negócio jurídico detêm essa liberdade ampla de contratar dentro dos estritos limites da Lei.
É importante frisar, que a autonomia privada está relacionada também ao que dispõe o art.425, CC, in verbis:
“Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.”
Desse modo, é licito as partes criarem contratos atípicos, ou seja, contratos que podem ser estipulados pelas partes nos limites da Lei. Não há nomes específicos para esses tipos de contrato, que dentro dessa liberdade de contratar, as partes estão livres para criarem contratos atípicos, considerando que o legislador diz que apenas devem observar as normas gerais fixadas neste código como por exemplo o artigo 104, senão vejamos:
Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I - agente capaz;
II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III - forma prescrita ou não defesa em lei.
Esse dispositivo trata da validade dos negócios jurídicos, ou seja, um negócio jurídico existe, mas não basta apenas existir, ele precisa ter validade para surtir efeitos. Desse modo o mínimo que um contrato atípico, e que demonstra essa autonomia da vontade tem que ter são: agente capaz, objeto licito, observar a forma, se não tiver forma então estaremos diante de um contrato livre, não solene com é o caso da compra de um livro em uma livraria por exemplo.
2.1.3 Princípio da força obrigatória do contrato (pacta sunt servanda)
Outro importante princípio do direito contatual é o princípio da força obrigatória do contrato, que classicamente é denominado de “pacta sunt servanda”, isto é, o pacto, o acordo deve ser cumprido.
De nada adiantaria, se um negócio firmado entre as partes não fosse dotado de força obrigatória, se não fosse assim seria apenas um mero protocolo de intenções vazio e sem validade jurídica alguma.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves:
"O aludido princípio tem por fundamentos: (i) a necessidade de segurança dos negócios, que deixaria de existir se os contratantes pudessem não cumprir a palavra empenhada, gerando balbúrdia e o caos; (ii) a intangibilidade ou imutabilidade do contrato, decorrente da convicção que o acordo de vontades faz lei entre as partes, personificada pela máxima pacta sunt servanda (os contratos devem ser cumpridos), não podendo ser alterado nem pelo juiz. Qualquer modificação ou revogação terá de ser, também, bilateral. O seu inadimplemento confere à parte lesada o direito do uso dos instrumentos jurídicos para obrigar a outra parte a cumpri-lo" (ALMEI, 2015, p.152)
Desse modo, a força obrigatória consubstancia-se na regra de as partes se obrigam a cumprir o que foi pactuado, o que foi acordado, tornando –se assim o contrato lei entre as partes, uma vez celebrado deverá ser cumprido todos os pressupostos e requisitos necessários à sua validade, e executado pelas partes como se suas cláusulas fossem preceitos legais imperativos.
Ademais, o princípio da obrigatoriedade encontrará limitação a regra da obrigação, extinguindo-se caso vier a impossibilitasse por caso fortuito ou de força maior, ou seja, caso o que tenha sido avençado entre as partes encontre no futuro alguma disparidade entre as partes no que foi acordado poderá esse contrato de algum modo ser relativizado. Dentro da concepção clássica essa é a única limitação à norma da obrigatoriedade do contrato.
2.1.4 Princípio da relatividade dos efeitos dos contratos
O princípio da relatividade dos efeitos do contrato traz a ideia de que o contrato vincula somente as partes contratantes, não atingindo a esfera de interesses de quem não se sujeitou a ele.
Com efeito, esses terceiros não serão beneficiados e tampouco prejudicados pelo contrato ao qual não se sujeitaram.
Importante destacarmos que, o código civil de 1916, previa que “A obrigação, não sendo personalíssima, opera assim entre as partes, como entre seus herdeiros”. Nesse viés, não sendo a obrigação personalíssima operava somente entre os contratantes e seus sucessores, a título universal ou singular. Somente a obrigação personalíssima não vinculava os sucessores.
Contudo, eram previstas algumas exceções que permitiam a estipulações em favor de terceiros, reguladas pelos art.436 e 438 (comuns nos seguros de vida e nas separações judiciais consensuais, e também em convenções coletivas de trabalho, onde os acordos estipulados pelos sindicatos beneficiaria toda a categoria.
Toda via, essa visão não foram abandonadas com o advento do código civil de 2002, que não concebe mais o contrato com instrumento de interesses apenas dos contratantes, mas lhe confere uma função social.
Com efeito, abre a possibilidade de que terceiros estranhos a relação contratual possam nele influir, em razão de serem por ele direta ou indiretamente atingidos por seus efeitos.
Portanto, não resta dúvidas de que o princípio da relatividade dos efeitos dos contratos, foi de sobremodo atenuado pelo reconhecimento de que as cláusulas gerais, conterem normas de ordem pública, não se destinam mais a proteção unicamente dos interesses individuais dos contratantes, mas coloca em evidencia o interesse da coletividade frente aos individuais.
2.1.5 Princípio da boa-fé objetiva
Dispõe o código civil em seu art.422, in verbis:
“Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa –fé”
Note-se que o legislador tratou os princípios de probidade e da boa-fé como verdadeira obrigação dos contratos.
O princípio da boa-fé obriga as partes atuarem de forma correta, ou seja, com responsabilidade e boa-fé no sentido de não prejudicarem a outra parte contratante.
Tal princípio deve ser observado não só durante as tratativas, mas desde a formação do contrato até o seu cumprimento. Esse princípio guarda relação segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. (GONÇALVES,2022)
Nessa esteira, o código civil o adotou como princípio basilar, que deverá incidir antes, durante e após a execução do contrato, isto é, nas fases pré e pós-contratual.
Seguindo esse viés, a regra da boa-fé, é uma cláusula geral na aplicação do direito obrigacional que segundo leciona (GONÇALVES, 2022), divide-se em boa-fé objetiva, também denominada de concepção ética da boa-fé e boa-fé subjetiva, também conhecida de concepção psicológica da boa-fé.
A boa-fé subjetiva, está relacionada ao fato do sujeito ter conhecimento ou não a existência de um vício em relação a coisa ou ao direito que está exercendo ou exercerá. Por outro lado, a boa-fé objetiva está relacionada ao comportamento dos contratantes, ou seja, o que se espera das partes na contratação é que fação boa coisa vendida, isto é, não tirar vantagem ou prejudicar a outra parte na contratação.
A boa-fé objetiva foi uma inovação introduzida pelo código civil de 2002, provocou inúmeras mudanças tornando-se um princípio de norma geral do direito, segundo o qual todos devem-se comportar-se de boa-fé nas relações contratuais.
A clausula geral de boa-fé é tratada no código civil de 2002 em três dispositivos, sendo o de maior repercussão o art.422 (“Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa –fé”).
Os demais artigos são: o art. 113 (“Os negócios devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”) e o 187 (“Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”).
Assim, pode-se concluir que a boa-fé objetiva é clausula geral que deve estar presente nas relações contratuais, não podendo as partes deixar de observar esse importante princípio antes, durante e após a conclusão do negócio jurídico, guardando entre si, a lealdade, o respeito e a responsabilidade em todas as fases do contrato.
2.1.6 Princípio da função social do contrato
O princípio da função social do contrato, também é merecedor de especial atenção no estudo dos princípios norteadores do direito contratual.
O código civil vigente, prevê expressamente esse valioso princípio em seu art.421, senão vejamos;
Art. 421. “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.
Nesse sentido, o contrato deve atender aos interesses de toda a sociedade, ou seja, as partes ao contratar devem se abster de não prejudicar a outrem, devendo contratar um objeto licito, pois existe todo um interesse da sociedade nos reflexos desse contrato.
Nesse contexto, tal princípio aparece como um limitador ao princípio da autonomia da vontade, que possibilita as partes contratarem a partir de seus desejos, entendimentos e preferencias, mas que tais liberdades não podem ser ilimitados ou absolutas. (ALMEI, 2015)
O contrato deve resguardar um proposito em si mesmo, atingir uma finalidade própria ligada a uma questão social e solidaria.
Nesse sentido, leciona Maria Helena Diniz:
"a liberdade contratual não é ilimitada ou absoluta, pois está limitada pela supremacia da ordem pública, que veda convenções que lhe sejam contrárias e aos bons costumes, de forma que a vontade dos contraentes está subordinada ao interesse coletivo" (ALMEI, 2015, p.171)
Dessa forma, a função social do contrato atinge a liberdade contratual, ou seja, os contratantes deverão observar as regras e os limites quanto ao conteúdo e ao objeto que se deseja contratar.
Assim, a função social do contrato objetiva a prevalência dos interesses coletivos frente aos interesses individuais.
Desse modo, a autonomia da vontade não é absoluta, as partes tem liberdade para contratar o que quiserem, desde que o contrato atenda a função ao qual foi determinado, resguardando sempre os interesses da coletividade quando em confronto com os interesses individuais.
Pela função social dos contratos, os negócios jurídicos patrimoniais devem ser analisados de acordo com o meio social. A função social é a barreira contra as onerosidades excessivas, desproporções, injustiça social. Sem olvidar, não podem os contratos violarem interesses metaindividuais ou interesses individuais relacionados com a proteção da dignidade humana.
A jurisprudência mais abalizada é nesse sentido com o se verifica:
AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL (CPC/2015). DIREITO CIVIL. PLANO DE SAÚDE. MEDICAMENTO ANTINEOPLÁSICO PALBOCICLIBE (IBRANCE). RECUSA DE COBERTURA. ALEGAÇÃO DE NÃO ENQUATRAMENTO NA DIRETRIZ DE COBERTURA DA ANS. CARÁTER EXEMPLIFICATIVO DO ROL DE PROCEDIMENTOS E DIRETRIZES DA ANS. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DA TERCEIRA TURMA. FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE PLANO DE SAÚDE. 1. Controvérsia pertinente à obrigatoriedade de cobertura do medicamento antineoplásico PALBOCICLIBE (IBRANCE) a paciente acometida de câncer de mama metastático, tendo havido recusa da operadora sob o fundamento de ausência de enquadramento do caso nas diretrizes de utilização previstas no rol de procedimentos mínimos da ANS.2. Caráter exemplificativo do rol de procedimentos da ANS, na linha da jurisprudência pacífica desta TURMA, firmada com base na função social do contrato de plano de saúde.3. Caso concreto em que a paciente se encontra acometida de doença oncológica grave e progressiva, de modo que a recusa genérica de cobertura (sem instauração de junta médica nos termos da RN ANS 424/2017) deixou a paciente padecendo à própria sorte no tratamento da doença, desatendendo assim à função social do contrato, segundo a linha de entendimento desta TURMA.4. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.
(AgInt no REsp 1911407/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/05/2021, DJe 24/05/2021) grifou-se.
Nesse mesmo sentido, o enunciado 23 do CJF, aprovado na I Jornada de Direito Civil:
"A função social do contrato prevista no artigo 421 do novo Código Civil não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses meta-individuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana".
Assim, conclui-se que a autonomia contratual não pode se sobrepor diante do interesse maior que é de resguardar a vida e a integridade física do segurado, direitos da personalidade relacionados com dignidade da pessoa humana.
3. A COMPRA E VENDA
O contrato de compra remonta uma fase primitiva da civilização a sua história e origem está intimamente ligada à troca. Isso porque antigamente as trocas ou permutas de objetos entre os indivíduos era comum, trocava-se o que se precisava pelo que sobejava para o outro. Esse sistema de trocas atravessou os séculos como pratica comum de negociações, até certas mercadorias passarem a ser utilizadas como padrão, para facilitar o comercio e o intercâmbio de bens úteis aos homens.
Assim, a compra venda, em pouco tempo, tornou-se responsável pelo desenvolvimento dos países passando a figurar como o mais importantes dos contratos, pois aproxima os homens e fomenta a circulação das riquezas.
Seu conceito é dos mais simples, como bem leciona PABLO STOLZE GAGLIANO:
"A definição do contrato de compra e venda é extremamente simples, dispensando grande esforço intelectual: traduz o negócio jurídico em que se pretende a aquisição da propriedade de determinada coisa, mediante o pagamento de um preço." (GAGLIANO, 2017, p.52).
No mesmo sentido, denomina Carlos roberto Gonçalves:
"Denomina-se compra e venda o contrato bilateral pelo qual uma das partes (vendedor) se obriga a transferir o domínio de uma coisa à outra (comprador), mediante a contraprestação de certo preço em dinheiro3" (GONÇALVES, 2022, p.451).
Já o código civil de 2002 o enuncia da seguinte forma:
“Art. 481. Pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro.”
Nota-se, portanto, a existência de dois atores de fundamental importância nesse contexto jurídico, quais sejam, o vendedor e o comprador. O primeiro se obriga a transferência do domínio enquanto o segundo se obriga ao pagamento do preço avençado.
É importante ressaltar que, no sistema jurídico brasileiro o contrato de compra e venda, vai produzir efeitos apenas jurídicos obrigacionais, não operando, de per si, isto é, por si só, a transferência da propriedade, por ele, os contratantes apenas obrigam-se reciprocamente pois a transferência do domínio depende de outro ato: a tradição, para os móveis (CC, arts. 1.226 e 1.267); e o registro, para os imóveis (arts. 1.227 e 1.245).
Com efeito, Dispõe o art. 1.267 do Código Civil, com efeito, que “a propriedade das coisas não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”. Do mesmo modo, “os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código” (art. 1.227).
Com isso, queremos dizer que, mesmo tendo celebrado o contrato de compra e venda, as partes “vendedor e comprador”, ainda não podem considerar-se ser donas do preço ou da coisa, até que se opere a tradição da coisa vendida, muito embora já sejam titulares do direito de exigir a sua prestação.
3.1 – Características e efeitos
A “compra e venda” como já mencionado antes é o mais importante dos contratos e a origem também de quase todo o direito das obrigações. Em sua caracterização jurídica, diz a doutrina que este contrato é em síntese, um negócio jurídico bilateral e sinalagmático, em regra consensual, cumulativo ou aleatório, em certos casos solene quando a Lei exigir, oneroso, autorizador da transferência de propriedade, de execução instantânea ou diferida, entre outras características.
Nesse viés, a compra e venda é um contrato bilateral, ou sinalagmatico, pois exige-se na sua formação a conjugação de vontades contrapostas do vender e do comprador, as quais geram obrigações reciprocas: para o comprador a de pagar o preço em dinheiro e para vendedor a de transferir o domínio da coisa. Assim, quando harmonizadas, formam então o consentimento, que se entrelaçam de tal modo que a execução da prestação por parte de um dos contraentes é causa do adimplemento da do outro.
Além de bilateral e sinalagmatico é consensual, ou seja, torna-se perfeito quando os contraentes convencionam no preço e na coisa vendida. Vale dizer, o contrato forma-se pelos simples consentimento, independente da entrega da coisa.
Nesse sentido aduz o código civil 2002:
“Art. 482. A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço”
De acordo com o disposto supramencionado, é possível extrair os elementos essenciais do contrato de compra e venda “consentimento, objeto e o preço”, o que analisaremos com mais profundidade no próximo tópico.
É ainda, espécie de negócio jurídico oneroso, podendo ser cumulativo ou aleatório. É oneroso, pois ambos os contraentes percebem proveito, o que corresponde um sacrifício (para um, o pagamento do preço e o recebimento da coisa, já para o outro a transferência do domínio da cosa e o recebimento do pagamento). Faz-se, destarte, por interesse e utilidade recíproca de ambas as partes.
Em regra, também é cumulativo, uma vez que de imediato se apresenta certo o conteúdo das prestações reciprocas. As prestações são certas e as partes podem antever as vantagens e os sacrifícios, que geralmente serão equivalentes, todavia, pode se transformar em aleatório quando se tem por objeto coisas futuras ou coisa existente, mais sujeita a riscos se não houver certeza quanto à ocorrência de umas das suas prestações. A este respeito SILVIO VENOSA pontifica: [...]
"“é contrato geralmente comutativo porque, no momento de sua conclusão, as partes conhecem o conteúdo de sua prestação. Admite-se a compra e venda aleatória quando uma das partes pode não conhecer de início o conteúdo de sua prestação, o que não suprime os fundamentos básicos do negócio”" (GAGLIANO, 2017, p.61).
Trata-se, ainda, de um contrato que pode ser de forma (livre ou solene, ou, a contrário sensu, com rigor formal (contrato solene), quando envolva bens imóveis, a teor do art. 108 do CC/2002.
Outrossim, a compra e venda pode ainda se dar tanto na modalidade Paritária, quanto na modalidade de adesão. Vai depender se as partes estão ou não em iguais condições de negociação, estabelecendo de forma livre as cláusulas contratuais, na fase de pontuação, ou se apenas um dos contratantes as predetermina, ou seja, as impõe de forma unilateral.
O contrato de compra e venda é ainda, um contrato “impessoal”, pois só interessa o resultado da atividade contratada a pessoa que irá contratá-la. Com isso, se o comprador ou vendedor vier a falecer antes da ocorrência da tradição da coisa ou da transcrição (registro) da transferência, pode ser exigida de seu espolio a providência.
Por fim, é um contrato instantâneo, pois seus efeitos podem ser produzidos de uma só vez, podendo ser de execução imediata, quando se consumam no momento da celebração, com a entrega do bem móvel ou registro do contrato de transferência de bem imóvel, ou ser diferida, quando as partes fixam prazo para a sua exigibilidade ou o seu cumprimento. (GAGLIANO, 2017).
3.1.2 – Elementos essenciais da compra e venda
O contrato de compra e venda, pela sua própria natureza, exige-se, como elementos integrantes a coisa, o preço, e o consentimento.
Esses elementos essenciais podem ser extraídos da leitura do art.482, CC, in verbis;
“Art. 482. A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço.” (Grifo nosso)
Para melhor compreensão analisemos cada um desses elementos separadamente.
Superadas as fases das tratativas preliminares, ao firmarem as partes o seu consentimento a respeito do preço e a coisa a ser vendida, o contrato reputar-se a formado, independentemente de forma previamente estabelecida em lei.
O com sentimento pressupõe a capacidade das partes para comprar e vender e deve ser livre e espontâneo, sob pena de anulabilidade, bem como recair sobre os outros dois elementos: a coisa e o preço.
A venda será anulável, também, caso haja erro sobre o objeto principal da declaração ou sobre as qualidades essenciais (CC, art.139). Não existe venda se o vender julgar esta alienando uma coisa e o comprador acredita estar recebendo outra coisa diferente.
O preço é elemento essencial da compra e venda. Sem a sua fixação a venda é nula (sine pretio nulla venditio), dizia ULPIANO. O preço é em regra é determinado pelo livre debate entre os contraentes, de acordo com as leis do mercado sendo por isso denominado de preço convencional, pois se não for desde logo determinado, deverá ser ao menos determinável.
O código civil em seu art.486, permite que se deixe “a fixação do preço à taxa do mercado ou de sua bolsa, em certo e determinado lugar “. Todavia, se a cotação variar no mesmo dia escolhido “tomar-se-á por base a medida nessa data, salvo se as partes tenham convencionado forma diversa, por aplicação análoga do parágrafo único do art.488, CC.
Vários outros modos de determinação futura do preço podem ser escolhidas pelas partes, como por exemplo: o preço do custo, o preço em vigor no dia da expedição, a melhor oferta, o preço do costume etc. o que não é admitido é a indeterminação absoluta, como na clausula “pagarás o que quiseres”, ficando a cargo do comprador a taxação do preço. Consoante ao art.489 o declara nula, por potestativa.
Outrossim, permite ainda a lei que a fixação do preço seja “deixada ao arbítrio de terceiro, que os contratantes logo designarem ou prometerem designar. Se o terceiro não aceitar a incumbência, ficará sem efeito o contrato, salvo quando acordarem designar outra pessoa” (CC, art. 485). Nesse caso o terceiro vai agir como mandatário destes, o que não se exige capacidade especial. Não é ele uma avaliador da coisa, mas sim um arbitro escolhidos pelas partes.
Pode ainda o preço ser fixado “em função de índices ou parâmetros, desde que suscetíveis de objetiva determinação”. (Art.487, CC).
"Índices são os indicadores de cálculo da variação de preços e valores de determinados conjuntos de bens. A inflação tem provocado a criação de índices de atualização monetária, que podem ser adotados pelos contratantes. Parâmetros são referenciais que servem como indicativos de custo de vida ou de inflação." (GONÇALVES, 2022, p.471).
Para melhor compreensão PAULO LUIZ NETTO LÔBO dá o seguinte exemplo, para explicar o seu significado:
“O contrato de compra e venda de derivados de petróleo pode ter como parâmetro a variação do preço do petróleo no mercado nacional”." (GONÇALVES, 2022, p.471).
Segundo LÔBO, se as partes contratantes não definirem o índice ou os parâmetros que serão aplicados, fazendo referência apenas a sua atualização de valor ou à correção monetária em geral, compete ao juiz defini-los dentre os quais serão calculados por entidades oficiais e que sejam mais pertinentes as finalidades do contrato.
É importante também destacar que, o preço deve ser pago “em dinheiro”, como prescreve o art. 481, in fine, do Código Civil ou redutível a dinheiro, subentendendo-se válido o pagamento efetuado por meio de título de crédito, do qual conste o montante em dinheiro estipulado.
"É, portanto, o preço um pressuposto existencial ou elemento constitutivo específico do contrato de compra e venda" (GAGLIANO, 2017, p.73).
Por fim, por obvia razão, o bem, objeto do contrato de compra e venda, deverá ser a “coisa “passível de circulação no comercio jurídico (a coisa não pode ser bem fora do comercio, seja por disposição de lei, contrato ou por sua própria natureza). Deverá ser certa e determinada ou determinável, afastando assim, por consequência, todos os interesses não suscetíveis de aferição ou valor econômico essencial, como a honra, o nome, a integridade física e a vida etc.
O código civil de 2002, art. 483, admite expressamente a possibilidade da compra e venda ter por objeto coisas atuais ou futuras. In verbis: “a compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura”, dispondo que, “neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório”.
Por coisa entende-se:
"o objeto existente e disponível, ao tempo da celebração do negócio; a coisa futura, por sua vez, é aquela que, posto ainda não tenha existência real, é de potencial ocorrência." (GAGLIANO, 2017, p.68).
O objeto da compra e venda há de ser ainda determinado, ou suscetível de determinação no momento de sua execução, pois o contrato gera obrigação de dar, consiste em entregar, devendo incidir, pois sobre coisas individuada. Contudo admite-se a venda de coisas incertas, indicadas pelo menos pelo gênero e quantidade (art.243, CC), que será determinada pela escolha, bem como a venda alternativa, cuja indeterminação cessa com a concentração (art. 252).
Ademais, a coisa deve-se também, encontrar-se disponível, isto é, não fora do comercio.
3.1.3 – Efeitos da compra e venda.
Os principais efeitos da compra e venda são: gerar as obrigações reciprocas para os contratantes (vendedor e comprador). Para o vendedor gera a obrigação de transferir o domínio da coisa, enquanto que para o comprador a de pagar-lhe o preço em dinheiro conforme aduz o art.481, CC.
Outro efeito da compra e venda é a responsabilidade do vendedor pelos vícios redibitórios e pela evicção. Pode tal responsabilidade derivar também de outros contratos. Por essa razão, o direito brasileiro a disciplina na teoria geral dos contratos diferentemente de alguns sistemas, que a inserem na dogmática da compra e venda, em face da íntima relação que mantém com o aludido contrato.
A principal obrigação do vendedor, como visto, é a entrega da coisa ou a tradição que é o ato pelo qual se consuma a compra e venda.
Não haverá compra e venda, como sublinha Cunha Gonçalves, se for feita com a cláusula de nunca se fazer a tradição." (GONÇALVES, 2022, p.483).
A tradição pode ser real (ou efetiva), simbólica (ou virtual) e ficta (ou tácita). Nesse sentido, será real, quando envolve a entrega efetiva e material da coisa, ou seja, quando o comprador recebe a posse material, tendo a coisa nas suas mãos ou em seu poder. E é ficta, no caso do constituto possessório ou cláusula constituti, que se configura, por exemplo, quando o vendedor, transferindo a outrem o domínio da coisa, conserva-a todavia em seu poder, mas agora na qualidade de locatário.
“A referida cláusula tem a finalidade de evitar complicações decorrentes de duas convenções, com duas entregas sucessivas. O atual Código Civil a adotou no parágrafo único do art. 1.267, segundo o qual a propriedade das coisas “não se transfere pelos negócios jurídicos antes da tradição”, mas está se subentende “quando o transmitente continua a possuir pelo constituto possessório”. (GONÇALVES, 2022, p.483).
Ainda sobre os efeitos da compra e venda podem ser acarretados outros efeitos chamados de secundários ou subsidiários, destacamos a responsabilidade pelos riscos; a repartição das despesas e o direito de reter a coisa.
Em relação a “responsabilidade pelos riscos”, até o momento da tradição no caso dos bens móveis e até o registro no caso dos imóveis, a coisa pertence ao vendedor. Portanto, se antes disso a coisa perecer ou danificar, até esse momento, ficam a cargo do vendedor ( res perit domino). E o do preço se perder, ficam por conta do comprador. Dispõe assim, o código civil, art.492, verbis:
“Até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”.
Outrossim, temos em relação as “repartições das despesas “, consoante ao art.490, CC, in verbis:
“Salvo cláusula em contrário, ficarão as despesas de escritura e registro a cargo do comprador, e a cargo do vendedor as da tradição”.
Nesse sentido aduz Carlos Roberto Gonçalves:
"Despesas da tradição são as efetuadas com o transporte da coisa e sua entrega no domicílio do comprador, ou outro lugar por ele indicado. Pode ser convencionado que incumbe ao adquirente retirá-la no endereço do vendedor, fornecer embalagem mais segura ou veículo adequado para o seu transporte. A norma supratranscrita incidirá na falta de cláusula expressa." (GONÇALVES, 2022, p.489).
Por fim, o direito de reter a coisa ou preço, na compra e venda à vista por exemplo, as obrigações são reciprocas e simultâneas. Cabe ao comprador o primeiro passo, ou seja, pagar o preço. Pois, antes disso, o vendedor não é obrigado a entregar a coisa, podendo retê-la, ou negar-se assinar a escritura definitiva, até que o comprador satisfaça a sua parte da obrigação. Consoante dispõe o art.491 do código civil, verbis:
“Não sendo a venda a crédito, o vendedor não é obrigado a entregar a coisa antes de receber o preço”.
Nesse sentido, vejamos o que escreve Gonçalves a esse respeito:
"Sendo a venda a crédito, pode o vendedor sobrestar a entrega, se antes de tradição “o comprador cair em insolvência”, até obter dele “caução” de que pagará “no tempo ajustado” (CC, art. 495). Preceito semelhante consta do art. 477 do mesmo diploma, de caráter geral: “Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la”." (GONÇALVES, 2022, p.489).
Portanto, pode-se extrair do dispositivo acima transcrito que não sendo a venda à credito, se o comprador não pagando o preço da coisa até a tradição, o vendedor poderá sobrestar então a entrega da coisa até que o comprador efetue o pagamento do preço.
De outro modo, se a coisa a ser vendida for à credito, e percebendo o vendedor que o comprador tornou-se insolvente antes da tradição, poderá o vendedor sobrestá a entrega da coisa até que o vendedor lhe preste “caução” de que pagará “no tempo ajustado”.
3.2 – A solenidade da compra e venda no direito brasileiro.
Solenes são os contratos que devem obedecer à forma prescrita em lei. Assim, quando a forma é exigida como condição de validade do negócio, este é solene e a formalidade é ad solemnitatem, ou seja, constitui a substância do ato (como escritura pública na alienação de imóveis etc.). Caso não observada, o contrato é nulo (C.C, art.166, IV). Portanto, um contrato solene não terá validade se não for celebrado por instrumento público, ainda que as partes o tenham dispensado (C.C, art.109).
Assim, se o contrato versar sobre imóveis que ultrapasse o teto de 30 salários mínimos, considera-se indispensável a lavratura do ato em escritura pública, sob pena de nulidade absoluta (C.C, art 108).
Por outro lado, no âmbito do direito imobiliário, as exceções que admitem a celebração de contrato de compra e venda por meio de instrumento particular são muitas, bastante comuns previsto no art. 108 do C.C. Então vejamos:
a) compra e venda de imóvel inserido em loteamento pode ser celebrada por instrumento particular, a teor do art. 26 da Lei 6.766/1979, e deve ter o seguinte conteúdo: identificação dos contratantes, descrição do loteamento, identificação do lote, preço e forma de pagamento, taxa de juros, cláusula penal de até 10% do débito, e declaração das restrições urbanísticas convencionais do loteamento.
b) compra e venda de imóvel, em regime de incorporação imobiliária, pode ser celebrada por instrumento particular, a teor do art. 35-A da Lei 4.591/1964, e deve ter o seguinte conteúdo: identificação dos contratantes, número do registro do memorial da incorporação imobiliária, a matrícula do imóvel e a identificação do cartório competente, o preço e forma de pagamento, as condições da corretagem, índice de correção monetária e de juros, prazo de conclusão e as consequências do desfazimento do contrato.
c) compra e venda de imóvel, em regime do sistema financeiro imobiliário, a teor do art. 38 da Lei 9.514/1997, pode ser celebrada por instrumento particular com eficácia de escritura pública, e deve conter o seguinte conteúdo: valor principal da dívida, prazo e as condições de reposição do empréstimo, taxa de juros e encargos incidentes, cláusula de propriedade fiduciária com a descrição do imóvel objeto da alienação fiduciária, indicação do valor do imóvel para fins de leilão, e o procedimento de leilão extrajudicial.
d) compra e venda de imóvel, no regime do sistema financeiro da habitação, pode ser celebrada por instrumento particular com eficácia de escritura pública, a teor do art. 61, §5º, da Lei 4.380/1964, e deve ter o seguinte conteúdo: identificação de imóvel construído ou em construção, valor da transação, índice de correção monetária e de juros convencionais.
Por sua vez, à luz do Código Civil/2002 (e conforme interpretação de JOSÉ OSÓRIO) o contrato promessa de compra e venda de imóvel não loteado pode ser celebrado por instrumento particular e, dada a sua natureza de contrato preliminar, não constitui meio idôneo à transmissão da propriedade sobre o imóvel, gerando direitos aquisitivos (Tema 1124/STF). Ressalte-se que a Lei 9.785/1999, ao emprestar nova redação ao art. 26, §6º, da Lei 6.766/1979, dispõe que o contrato de promessa de compra e venda configura título de aquisição para efeito de transmissão da propriedade de imóvel loteado, quando acompanhado da prova da quitação, e desde que levado a registro perante o cartório de registro imobiliário. Trata-se de preceito de ordem pública que é aplicável a qualquer loteamento e de precedentes jurisprudenciais do TJSP e do TJPR. Pelo modelo adotado no Código Civil, em seus arts. 496 e 1.245, o contrato de compra e venda de imóvel não loteado, por si mesmo, não tem o condão de transferir a propriedade imobiliária, mas se limita a criar a obrigação de transferi-la. A transmissão da propriedade imobiliária se opera, quando há o registro do contrato de compra e venda perante o cartório de registro imobiliário.
Vale dizer, pelo contrato de compra e venda de imóvel, a teor do art. 481 do Código Civil, o vendedor promete transferir a propriedade do bem imóvel ao comprador, que, por sua vez, promete pagar-lhe certo preço em dinheiro. Não há transferência, isto é, há a promessa de transferir, porquanto o contrato de compra e venda é negócio jurídico obrigacional e não real. A transmissão da propriedade imobiliária, nesse contexto, somente se opera com o registro do título perante o cartório de registro imobiliário.
Sendo assim, nas citadas hipóteses em que a lei admite que seja celebrado por instrumento particular (imóveis até 30 salários mínimos, loteamento, sistema financeiro imobiliário, sistema financeiro habitacional e incorporação imobiliária), o contrato particular de compra e venda de imóvel ostenta, para todos os efeitos, o atributo da eficácia de escritura pública, de sorte que a transmissão da propriedade imobiliária pressupõe que se proceda, perante o cartório de registro imobiliário, ao registro do instrumento particular, dispensando-se a lavratura da escritura pública, em sintonia com a finalidade inegável de desburocratização da aquisição da propriedade imobiliária.
4 O CONSENSUALISMO CONTEMPORÂNEO DOS CONTRATOS
Outro importante princípio norteador nas relações contratuais é o princípio do consensualismo ou liberadade das formas. Tal princípio traz a concepção de que os contratos se aperfeiçoam no simples consenso de vontade das partes, isto é, a partir do acordo de vontade dos contratantes.
Basta, portanto, o simples acordo de vontade das partes para se aperfeiçoar o contrato, contrapondo-se ao formalismo e ao simbolismo que vigorava tempos atrás. O consensualismo decorre da moderna visão que o contrato resulta do consenso entre as partes, do acordo de vontades dos contratantes, independente da entrega da coisa. (GONÇALVES, 2022)
Nas lições de Maria Helena Diniz [...] como princípio contratual o consensualismo, pelo qual apenas há o acordo de duas vontades, o que seria suficiente para se criar um contrato válido, pelo simples motivo de o vínculo contratual não necessitar de nenhuma forma." (ALMEI, 2015, p.148)
Nesse sentido o art. 482, CC, aduz que:
“Art. 482. A compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço.”
Se as partes consentem em contratar de acordo com suas vontades, deve a Lei evitar de estabelecer solenidades ou formas para se dar validades aos contratos. Salvo os que a seriedades dos seus efeitos exija a observância de requisitos da Lei. Assim os contratos consensuais são considerados não solenes.
No direito brasileiro em regra os contratos são de forma livre, ou seja, as partes podem celebrar de forma escrita, pública ou particular, ou até mesmo verbalmente, a não ser nos casos em que a lei objetivando dar maior seriedade e segurança ao negócio, exija a forma escrita, pública ou particular como se extrai do CC, art. 107, senão vejamos:
“Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.”
O consensualíssimo nessa esteira, é a regra, e o formalismo, a exceção. Assim a não ser que a lei obrigue, no caso concreto, que sejam reais (do latim res: coisa), o contrato só se aperfeiçoa com a entrega da coisa, subsequente ao acordo de vontades.
4.1 A relativização do formalismo
Os atos e negócios jurídicos na esfera civil, individuais, privados ou particulares num primeiro momento possuem forma livre. Assim, só quando a Lei expressamente exigir é que o negócio jurídico deverá obedecer a forma prevista pela legislação.
Nesse sentido, em regra no direito brasileiro a formação dos contratos é de forma livre, isto é, não dependem de forma especial para ter efetividade, salvo, quando a lei expressamente a exigir conforme aduz o CC, art.107, senão vejamos:
“Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.”
Em mesma linha de raciocínio o art.104, III, CC, aduz que a validade do negócio jurídico requer a observância de 3 (três) elementos: 1.agente capaz; 2. Objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e 3. Forma prescrita ou não defesa em lei.
Com efeito, se o contrato é celebrado por agentes capazes, tem como objeto algo lícito, possível, determinado ou determinável então porque não haveria de ter validade? Em alguns casos o contrato apenas deixou de observar a forma prescrita em Lei não podendo as partes ser prejudicadas por mero desapego das formalidades exigidas pelo ordenamento jurídico, uma vez que em algumas situações tais inobservâncias de formalidade não prejudicam em nada a efetividade e satisfação pretendida por esse contrato.
Nesse sentido, é notório observar que o Superior Tribunal de Justiça já tem reconhecido em diversos julgados, a possibilidade do mutuário que compra imóvel financiado por meio de contrato de gaveta discuta em juízo as condições das obrigações e direito assumidos no referido contrato.
Como é sabido os contratos de gaveta são acordos particulares firmados entre o mutuário (neste caso é o vendedor que contraiu financiamento com a agência financeira e bancária, e o terceiro adquirente e comprador, chamado de “gaveteiro”) que receberá o imóvel negociado.
Assim, o mutuário/vendedor permanece como o titular do imóvel (mútuo) até que seja realizada a quitação de todo o procedimento de financiamento.
O contrato de gaveta trata-se de um documento particular de compra e venda, em que não há a interferência de nenhuma agência imobiliária ou instituição bancária vendedora do imóvel.
Além disso, o registro atestando a propriedade do comprador não é atualizado perante o Cartório de Registro de Imóveis competente.
Desse modo, os bancos consideram essa modalidade de contrato irregular pois, segundo o art.1º da Lei 8.004/90, alterada pela Lei 10.150/00, exige-se que para o mutuário do sistema financeira de habitação transferi os direitos e obrigações decorrentes do respectivo contrato a terceiros terá que formalizar a venda em ato concomitante à transferência obrigatória na instituição financiadora, senão vejamos:
Art. 1º O mutuário do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) pode transferir a terceiros os direitos e obrigações decorrentes do respectivo contrato, observado o disposto nesta lei.
Parágrafo único. A formalização de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão relativas a imóvel financiado através do SFH dar-se-á em ato concomitante à transferência do financiamento respectivo, com a interveniência obrigatória da instituição financiadora (Redação dada pela Lei nº 10.150, de 2000).
Com efeito, mesmo o contrato de gaveta não obedecendo a forma prescrita na Lei o Superior Tribunal de Justiça vem reconhecendo, por exemplo, que se o contrato de gaveta já se consolidou no tempo, com o adimplemento de todas as prestações que estavam previstas no contrato, não é possível anular a transferência, uma vez que não há prejuízo ao agente do SFH. No entendimento do colegiado da 1ª Turma, a interveniência do agente financeiro no processo de transferência do financiamento é obrigatória, por ser o mútuo hipotecário uma obrigação pessoal, que não pode ser cedida, totalmente ou em parte, sem concordância expressa do credor.
No entanto, se o financiamento for integralmente pago, com a situação de fato plenamente consolidada no tempo, se aplica a chamada “teoria do fato consumado”, não havendo como considerar inválido e nulo o contrato de gaveta nessas circunstancias (conforme julgamento do Recurso Especial 355.771). Senão vejamos:
RE no RECURSO ESPECIAL Nº 355.771 - RS (2001/0127392-1) RECORRENTE: UNIBANCO UNIÃO DE BANCOS BRASILEIROS S/A.ADVOGADA: CRISTIANA RODRIGUES GONTIJO E OUTRO.RECORRIDO: CAIXA ECONÔMICA FEDERAL - CEFADVOGADO: ROGÉRIO AMPESSAN COSER BACCHI E OUTROS RECORRIDO: INÁCIO LOTÁRIO BLAUTH E CÔNJUGE. ADVOGADO: MARCO POLLO GIORDANI E OUTROS Vistos, etc.1. Trata-se de recurso extraordinário, com fundamento na alínea "a" do permissivo constitucional, interposto contra acórdão assim sumariado: "SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. TRANSFERÊNCIA DE FINANCIAMENTO.NÃO INTERVENÇÃO DO AGENTE FINANCEIRO. "CONTRATO DE GAVETA". PAGAMENTO INTEGRAL DO MÚTUO. SITUAÇÃO CONSOLIDADA PELO LAPSO TEMPORAL.1. Se a transferência de imóvel financiado apesar de efetivada sem consentimento do agente financeiro consolidou-se com o integral pagamento das 180 prestações pactuadas, não faz sentido declarar sua nulidade. 2. Em tal circunstância, os agentes financeiros, que se mantiveram inertes, enquanto durou o financiamento, carecem de interesse jurídico, para resistirem à formalização de transferência. “Interpostos embargos de declaração, foram rejeitados. Alega-se, em primeiro lugar, que a rejeição dos embargos de declaração teria implicado negativa de prestação jurisdicional e ofensa aos arts. 5º, XXXV e LV, e 93, I, da Constituição Federal. No mérito, sustenta-se que a decisão recorrida teria violado o art. 5º, II e XXXVI, da Constituição. Acrescenta-se, ao final, que, "em última análise, o recurso especial deveria ser conhecido e provido" (fl. 209), nos termos do art. 105, III, "a", também apontado como contrariado. 2. Observe-se, inicialmente, que a questão relativa à rejeição dos embargos esgota-se, necessariamente, em patamar infraconstitucional. A propósito, o Supremo Tribunal considera "inviável o processamento do apelo extremo para debater matéria processual, relativa ao reexame do julgamento proferido em grau de embargos de declaração, para fins de nulidade do acórdão" (Ag. Reg. no AG 420.982-2, DJ de 14/5/2004, pág. 55). Igualmente, "a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que a discussão em torno dos requisitos de admissibilidade do recurso especial, dirigido ao Superior Tribunal de Justiça, não viabiliza o acesso à via recursal extraordinária, por tratar-se de tema de caráter eminentemente infraconstitucional, exceto se o julgamento emanado dessa Alta Corte judiciária apoiar-se em premissas que coflitem, diretamente, com o que dispõe o at. 105, III, da Carta Política" (Ag. Rg. no AG 442.654-8, DJ de 11/6/2004, pág. 6). Isso, contudo, não ocorre no presente caso. Quanto ao mérito, cumpre observar que a lide foi dirimida com base na legislação infraconstitucional, mais especificamente, em torno da aplicabilidade do art. 1º, parágrafo único, da Lei n. 8.004/90 à espécie. Nesse contexto, eventual ofensa ao texto constitucional, se ocorresse, somente se verificaria por via reflexa. Entretanto, a jurisprudência do Supremo Tribunal é pacífica em "não admitir, em RE, alegação de ofensa que, irradiando-se de má interpretação, aplicação, ou, até, de inobservância de normas infraconstitucionais, seria apenas indireta à Constituição da República" (Ag 44.977-3, DJ de 21/5/2004, pág. 61).3. Ante o exposto, não admito o recurso.P.I. Brasília, 9 de setembro de 2004.MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA Vice-Presidente (RE no RESP n. 355.771, Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJe de 23/09/2004.)
Em outro julgado o mesmo colegiado destacou que, com a edição da Lei 10.150, foi prevista a possibilidade de regularização das transferências efetuadas até 25 de outubro de 1996 sem a anuência da instituição financeira, desde que obedecidos os requisitos estabelecidos (Recurso Especial 721.232). Vejamos:
ADMINISTRATIVO. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. TRANSFERÊNCIA DO FINANCIAMENTO. INTERVENÇÃO DO AGENTE FINANCEIRO. INDISPENSABILIDADE. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1º DA LEI 8.004/90 E DO ART. 20 DA LEI 10.150/2000. SÚMULA VINCULANTE 10/STF. RECURSO PROVIDO. (REsp n. 721.232/PR, relator Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJe de 13/10/2008.)
Nessa esteira, percebe-se a intenção do legislador em dar validade aos famosos ‘contratos de gaveta” em relação às transferências firmadas até 25 de outubro de 1996. Todavia, manteve-se a vedação à cessão de direitos sobre imóvel financiado no âmbito do SFH, sem a intervenção obrigatória da instituição financeira, realizada posteriormente àquela data.
Em mesma linha de entendimento, a 4ª Turma do STJ no julgamento do Recurso Especial 61.619, entendeu que é possível o terceiro, adquirente de imóvel de mutuário réu em ação de execução hipotecária, pagar as prestações atrasadas do financiamento habitacional, a fim de evitar que o imóvel seja levado a leilão.
CIVIL. S.F.H. EXECUÇÃO HIPOTECÁRIA MOVIDA CONTRA MUTUÁRIOS. CESSÃO DO IMÓVEL POR? CONTRATO DE GAVETA? POSSIBILIDADE DE OS NOVOS ADQUIRENTES PAGAREM A DÍVIDA EM MORA PARA EVITAR A PRAÇA. SITUAÇÃO QUE NÃO SE CONFUNDE COM A VALIDAÇÃO OU NÃO DE TAL ESPÉCIE CONTRATUAL À REVELIA DO AGENTE FINANCEIRO. CC ANTERIOR, ART. 930. EXEGESE.
I. Não sendo objeto de debate específico, nessa espécie de ação de execução hipotecária movida contra os mutuários originários, a validade ou não do? contrato de gaveta? celebrado com terceiros, podem estes intervir na lide para pagar as prestações em atraso, que constituem o escopo da demanda, para evitar a praça do imóvel por eles adquirido.II. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 61.619/RS, relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, DJ de 15/8/2005, p. 316.)
Portanto, segundo entendimento do colegiado o terceiro é diretamente interessado na regularização da dívida, uma vez que celebrou com o mutuário contrato de promessa de compra e venda, quando lhe foram cedidos os direitos sobre o bem. É importante destacarmos que no caso em tela, o colegiado não estava discutindo a validade, em si, do contrato de gaveta, mas a quitação da dívida para evitar o leilão do imóvel.
Com efeito, percebe-se uma maior sensibilidade da jurisprudência em relativizar a forma pelo menos em parte dos contratos quando mesmo não estando nos moldes definidos na legislação não apresente nenhum prejuízo as partes ou ao credor como nos casos dos financiamentos conforme entendimento já pacificado dos tribunais.
4.2 A segurança jurídica e a preservação da vontade das partes
A validade do acordo de vontades foi pressuposto no surgimento na antiguidade quando o respeito a palavra dada materializado pela premissa máxima “pacta sunt servanda”, isto é, os pactos devem ser observados, deu origem ao contrato de basilar importância tanto para o direto nacional quanto para o direito internacional.
O contrato na contemporaneidade possui uma visão solar no contexto jurídico, os contratos organizam as atividades econômicas, as transações e o mercado. A estabilidade econômica e política pressupõe a existência de garantias e de segurança jurídica onde o Estado só consegue garantir a consagração efetiva dos princípios da segurança jurídica, através de uma ordem pública que seja o mais claro, estável e confiável possível, onde o cidadão consiga visualizar com facilidade o regime jurídico que está se submetendo. Nessa esteira, para que haja reconhecimento um Estado de Direito, o Direito e a segurança jurídica têm de se encontrar intrinsecamente ligados.
Assim, se faz necessário tecer algumas considerações acerca do que venha a ser segurança jurídica.
Nesse sentido, Dispõe a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, XXXVI que a Lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
Disso, extrai-se que a constituição veda que a Lei infraconstitucional ´prejudique o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, com isso se esta prestigiando o “princípio da segurança jurídica”, ou seja, os cidadãos não podem ser surpreendidos pela lei de um modo a prejudicar direitos já adquiridos, ou anular atos que antes tenham sidos consubstanciados da maneira correta, nem tão pouco ser surpreendidos por nova lei modificando o status quo de uma coisa julgada.
Segundo Catarina Botelho, "Por sua vez, o princípio da segurança jurídica revela-se como a dimensão objetiva da estabilidade das relações jurídicas. Ambos os princípios assentam na lógica da manutenção do status quo, no sentido de evitar surpresas que possam frustrar os interesses ou expectativas legítimas dos cidadãos”. (author 2020, p.649).
Assim, temos por “direito adquirido” aquele que já se incorporou ao patrimônio e a personalidade de seu titular, pelo aperfeiçoamento de algum ato que o confere e do domínio dessa pessoa não pode ser retirado, surge em decorrência de uma fato licito e amparado por lei não podendo ser subtraído de seu titular pela entrada em vigor de uma nova lei. Portanto, se uma pessoa percorreu toda as regras, todos os procedimentos necessários para aquisição de um direito de forma licita, de forma honesta, e de acordo com o previsto pela lei, aquele direito passa a ser incorporado ao seu respectivo patrimônio.
Já em relação ao “Ato Jurídico Perfeito “, é o ato que ao tempo de sua ocorrência preenche todos os requisitos exigidos em lei, quais sejam, objeto licito, a gente capaz, e forma prescrita ou não defesa em Lei, isto é, não proibida pela Lei. (CC, art.104, III).
E por fim, a “coisa julgada”, é a decisão judicial irrecorrível contra qual não cabe mais recurso, ocorre no âmbito do processo judicial quando a decisão não for mais passível de impugnação tornando-se pois imutável.
Desse modo, o princípio da segurança jurídica está no rol das garantias e direitos constitucionais, favorecendo, desse modo, as relações contratuais, garantindo estabilidade e previsibilidade e clareza dos efeitos dos negócios jurídicos ao qual os contratantes estão se submetendo evitando assim surpresas que possam frustrar os interesses ou expectativas legítimas dos contratantes.
CONCLUSÃO
Em síntese, é possível salientar alguns aspectos importantes da seara abordada no presente estudo. Como visto o contrato é um dos mais antigos e mais importantes instrumentos jurídicos do direito. O contrato é um instrumento dinâmico, está sempre em constante evolução, adequando-se a realidade social e histórica da sociedade em que está inserido.
Assim, como demonstrado o contrato passou por inúmeras transformações ao longo da história, os princípios norteadores da teoria contratual passaram por processo de releituras ao longo do tempo afastando-se da concepção formalista e individualista do século XIX, passando o estado a intervir nas relações econômicas influenciando a teoria contratual e atenuando a autonomia privada, submetendo os contratos a uma nova visão no sentido de atender as novas realidades e desafios vividos pela sociedade.
Nesse contexto, a teoria do contrato pautada na teoria da autonomia da vontade exercendo uma função individual tornou-se insuficiente e inadequada diante das inúmeras transformações sociais e econômicas do século XX, tendo de ser restruturada para conseguir atender e exercer agora uma função social, voltada a uma ideologia de igualdade e de justiça social.
Isso não significa, contudo, o abandono do princípio da autonomia da vontade que foi e sempre será indispensável para a existência, validade e eficácia dos contratos, mas sim, uma atenuação, uma limitação a liberdade de contratar, sobretudo, para que o contrato esteja em consonância com o princípio da função social do contrato e da boa-fé objetiva.
Com efeito, o contrato não pode ser mais concebido como um instrumento de satisfação apenas dos interesses dos contratantes, pois os efeitos decorrentes dos contratos vão além destes, em decorrência das obrigações derivadas da Lei e dos princípios gerais do Direito, tais efeitos são relevantes a toda coletividade e prevalecem estes sobre os individuais.
Em que pese, noutro lanço, recentes decisões, sobretudo, as mencionadas no presente estudo demonstram a intenção da jurisprudência dos tribunais em validar e reconhecer a prevalência da autonomia da vontade das partes pelo menos em parte quando o contrato é estipulado de forma diferente da formalidade exigida de alguns contratos pela Lei, quando, por si só, o mero abandono a formalidade não causar prejuízo direto ao credor como nos casos do reconhecimento dos contratos de gaveta mencionados neste estudo.
Assim, portando verifica-se uma nova visão acerca dos contratos, relativizando o formalismo exacerbado em detrimento da vontade dos contratantes, pelo menos em parte, para que o contrato alcance a sua função social, mas sem deixar de lado a segurança jurídica e compreensão da real intenção dos contratantes ao estabelecê-lo devendo os julgadores observar todo o contexto social no qual o contrato está inserido, para atingir a sua função social em prol da mais acertada justiça contratual.
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[1]Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho- UNIFSA. E-mail:[email protected].
[2]Gilberto Antônio Neves Pereira da Silva Professor do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho -UNIFSA, Mestre em Direito pela PUC-RS, E-mail: [email protected].
Acadêmico do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho- UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARCIEL, Wilame Pereira. A liberdade das formas e a segurança jurídica à luz do Código Civil de 2002 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jun 2022, 04:13. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58649/a-liberdade-das-formas-e-a-segurana-jurdica-luz-do-cdigo-civil-de-2002. Acesso em: 22 nov 2024.
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