ROBERTA VIEIRA GEMENTE DE CARVALHO[1]
(coautora)
RESUMO: O presente estudo tem por objetivo verificar a análise sistêmica da Lei de Execuções Fiscais (Lei nº 6.830/80) que, sob à luz da Constituição Federal de 1988, autoriza a concessão de efeito suspensivo automático aos embargos à execução fiscal e afasta a aplicação da disposição contida no art. 919, §1º, do Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15). Por meio do exame da legislação, da doutrina e da jurisprudência, almeja-se demonstrar que a aplicação da lei específica deverá prevalecer sobre a norma geral e que, a hipótese da concessão do efeito suspensivo automático aos embargos traduz melhor a ideia do devido processo legal, da segurança jurídica e de paridade de armas entre as partes.
PALAVRAS-CHAVE: Execução Fiscal. Embargos à execução fiscal. Efeito suspensivo automático. Especialidade da Lei de Execuções Fiscais. Interpretação.
INTRODUÇÃO
Diferentemente do que ocorreu em outros ramos do Direito, como na seara trabalhista, na penal ou na civil, não há um código que trate de forma consolidada sobre o processo tributário. O que há são legislações esparsas que preveem e regulamentam as ações de iniciativa do Estado e do contribuinte[2].
A respeito das ações que podem ser aviadas pelos contribuintes como, por exemplo, a ação declaratória de relação jurídico-tributária, a ação de repetição de indébito, a ação anulatória de débito fiscal, a ação de consignação em pagamento, desde a vigência do Código de Processo Civil anterior (1973), todas elas têm o mesmo rito processual estabelecido e aplicado às ações de conhecimento em geral. O mandado de segurança, como remédio constitucional que é, tem tratamento diverso, está previsto no art. 5º, LXIX e é regulamentado pela Lei nº 12.016/2009. Os embargos à execução fiscal, porque também se trata de ação, por meio da qual o contribuinte exerce o seu direito de defesa contra o Fisco, estão previstos no art. 16, da Lei nº 6.830/80.
As ações de iniciativa do Fisco também estão previstas e são regulamentadas em legislação esparsa. A ação cautelar fiscal foi instituída pela Lei nº 8.397/92 e é instrumento prévio ao ajuizamento da execução fiscal, para o fim de tornar indisponíveis os bens do contribuinte. A execução fiscal, por sua vez, na qualidade de instrumento hábil a viabilizar a cobrança dos créditos tributários ou não pela Fazenda Pública, está prevista e vem regulamentada pela Lei nº 6.830/80.
Em razão dos diversos diplomas que tratam do Direito Processual Tributário, há reiteradas discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre como relacionar os seus diversos aspectos.
Especialmente no que concerne ao efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal, há quem sustente que em razão da inexistência de disposição expressa da Lei nº 6.830/80, seria aplicável à hipótese as disposições contidas no art. 919, §1º, do Código de Processo Civil, no sentido de que o efeito suspensivo aos embargos dependerá da análise do magistrado quanto à garantia ofertada e do preenchimento dos requisitos indispensáveis à concessão de tutela antecipada: a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo.
Tal conclusão, contudo, poderá reverberar em consequências relevantes à saúde financeira do contribuinte, uma vez que, apesar de garantir o Juízo, sem a concessão do efeito suspensivo à execução fiscal, poderá a Fazenda Pública aproveitar-se sumariamente dos bens oferecidos em garantia, que somente poderão ser revistos pelo sujeito passivo após o trânsito em julgado da sentença favorável dos embargos, pela morosa e irregular via dos precatórios.
Isso sem falar nos impactos incidentes em todo o sistema jurídico-tributário, diante do inequívoco amesquinhamento de princípios como o da inafastabilidade do controle judicial, o do contraditório e da ampla defesa e o do direito à jurisdição, em favor do interesse meramente arrecadatório da Fazenda Pública.
Portanto, por meio do presente estudo, objetiva-se analisar a extensão e a aplicabilidade das disposições gerais contidas no Código de Processo Civil ao procedimento especial da execução fiscal, submetido à sistemática da Lei nº 6.830/80 (LEF).
O CONTEXTO LEGISTATIVO
A execução fiscal como meio viabilizador de cobrança de créditos tributários ou não tributários pela Fazenda Pública está prevista e é regulamentada pela Lei nº 6.830/80. A exigência consubstancia-se na certidão de inscrição em dívida ativa, título executivo extrajudicial, que promove certeza e liquidez à exigência. Não se pretende com a execução fiscal a constituição e nem a declaração do direito do Fisco, mas apenas a sua efetivação (MACHADO, 2014, p. 479).
Isso porque, diferentemente do que ocorre com as obrigações contratuais regidas pelo direito privado, a obrigação tributária é ato unilateral que decorre de disposição legal, nascida da simples ocorrência do fato gerador, sendo dispensável nessa hipótese a manifestação de vontade do contribuinte, que poderá adimplir voluntariamente a obrigação ou ter contra si o lançamento da dívida. (SANTIAGO; BREYNER, 2009, p. 72).
Portanto, quando ajuizada a execução fiscal, há contra o contribuinte pelo menos dois atos administrativos dotados de presunção e legitimidade: o lançamento e a inscrição do débito em dívida ativa.
Conforme observa James Marins (2005, p. 199), a atividade de lançamento está intimamente relacionada com o exercício de fiscalização e de aplicação de penalidades desempenhadas pelo Estado, revelando-se nesse momento a etapa litigiosa da relação jurídica tributária. Segundo o autor (2005, p. 625):
A autotutela da Administração Tributária encerra-se com a formação do título executivo extrajudicial, que se procede através da inscrição do crédito tributário definitivamente lançado e não pago (pretesa insoddisfatta), corporificando a denominada Certidão de Dívida Ativa – CDA que aparelhará a execução fiscal.
A presunção de legitimidade é um dos atributos que recaem desde a origem da edição dos atos administrativos, o que significa dizer que os fatos suscitados pela Administração Pública são reputados verdadeiros e que guardam consonância com a Lei, mas admitem prova em contrário. Cuida-se, portanto, de presunção juris tantum, que admite prova em contrário, que deverá ser providenciada pelo interessado.
Nas palavras de Hugo de Brito Machado, aviada a execução fiscal, não vislumbra o Fisco que se decida sobre o seu direito de crédito, mas apenas que sejam adotadas providências para compelir o contribuinte ao pagamento de um crédito, cuja certeza e liquidez dão respaldo à própria exigência (2014, p. 479).
Não se trata, pois, de mera execução, daí o porquê de ser tratada por lei específica, em prejuízo da aplicação do Código de Processo Civil. Cuida-se da execução do Fisco, de instrumento de efetivação do interesse público colocado à disposição da Fazenda Pública, dotado de prerrogativas e garantias em face do contribuinte, que poderá refutar a certeza e liquidez do título executivo por meio dos mecanismos de defesa a ele disponibilizados, sendo os embargos à execução fiscal e a exceção de pré-executividade as vias naturais à efetivação dos princípios do contraditório e da ampla defesa.
A exceção de pré-executividade é via de defesa incidental, resultado de construção doutrinária e jurisprudencial, que visa a proteção do contribuinte diante de eventuais exigências arbitrárias e ilegais do Estado.
Acaso a matéria de defesa verse sobre matéria de ordem pública ou a respeito das nulidades em geral que prejudiquem o contribuinte e, por conseguinte, sejam suscetíveis de conhecimento de ofício pelo juiz, poderá o sujeito passivo da execução fiscal aviar a exceção de pré-executividade, sem que seja necessário a garantia do juízo.
Outra exigência para a eleição da exceção de pré-executividade como meio de defesa do contribuinte é a de que a prova deve ser pré-constituída, porque enquanto incidente processual que é, inexiste a possibilidade de se requerer a dilação probatória dentro da execução fiscal que destina-se à satisfação do crédito tributário constituído pela Fazenda Pública.
Nas palavras de James Marins (2005, p. 666-669):
Fruto de construção doutrinária, ainda que já conhecida em nossa sistemática jurídica de longa data, surge em nosso ordenamento jurídico a figura da exceção de pré-executividade, como meio de defesa prévia do executado. [...]
A exceção de pré-executividade busca discutir a própria legitimidade da execução, seja por questionar os requisitos da execução, seja por questionar a validade do título. Note-se que a matéria atinente à legitimidade da execução pode, e deve, ser conhecida de ofício pelo juiz da causa, por ser de ordem pública e cogente e seu reconhecimento independe de dilação probatória.
No mesmo sentido, o posicionamento de Eduardo Arruda Alvim (2000, p. 51):
Parece-nos que referidos preceitos, exatamente porque tratam do caráter relativo da presunção de certeza e liquidez de que se reveste a dívida ativa regularmente inscrita, antes de afastar o cabimento da objeção de pré-executividade, o reafirmam. Desde que se admita o espectro das matérias alegáveis pela via da objeção de pré-executividade é moldado pela fronteira da desnecessidade de dilação probatória, não há qualquer incompatibilidade entre a execução fiscal e a objeção de pré-executividade.
Pois bem. Instaurada a cobrança judicial do crédito tributário pela via da execução fiscal e não restando configuradas as hipóteses autorizadoras à apresentação da exceção de pré-executividade e querendo o sujeito passivo discutir a exigência, estabelece o art. 8º, da Lei nº 6.830/80, que deverá o executado nomear bens à penhora, no prazo de 05 dias.
Garantido o juízo, será aberta ao sujeito passivo da execução a via dos embargos à execução fiscal, oportunidade em que o contribuinte deverá deduzir toda a matéria de defesa dentro do prazo de 30 dias, cujo termo inicial irá variar de acordo com a garantia oferecida. É ver:
Art. 16 - O executado oferecerá embargos, no prazo de 30 (trinta) dias, contados:
II - da juntada da prova da fiança bancária ou do seguro garantia;
III - da intimação da penhora.
§ 1º - Não são admissíveis embargos do executado antes de garantida a execução.
§ 2º - No prazo dos embargos, o executado deverá alegar toda matéria útil à defesa, requerer provas e juntar aos autos os documentos e rol de testemunhas, até três, ou, a critério do juiz, até o dobro desse limite.
§ 3º - Não será admitida reconvenção, nem compensação, e as exceções, salvo as de suspeição, incompetência e impedimentos, serão argüidas como matéria preliminar e serão processadas e julgadas com os embargos.[3]
Recebidos os embargos à execução fiscal, a Fazenda Pública será intimada para se manifestar no prazo de 30 dias (art. 17, da LEF). Não oferecida defesa pelo sujeito passivo, o Fisco será intimado para se manifestar acerca da garantia da execução (art. 18, da LEF) e, acaso a garantia seja oferecida por terceiro, será intimado para remir o bem ou pagar a dívida, na hipótese de não serem apresentados embargos ou então serem rejeitados (art. 19, da LEF). A aludida lei ordinária, por sua vez, não faz referência expressa quanto aos efeitos do recebimento dos embargos, se suspendem a execução fiscal ou não.
Nesse aspecto, pela análise sistemática dos dispositivos legais da Lei nº 6.830/80 em conjunto com o que dispunha o art. 739, §1º, do CPC/73, incluído pela Lei nº 8.953/1994, havia o entendimento bastante consolidado no sentido de que a oposição dos embargos à execução fiscal sempre suspendia o trâmite da execução fiscal.
Art. 739. O juiz rejeitará liminarmente os embargos:
I - quando apresentados fora do prazo legal;
II - quando não se fundarem em algum dos fatos mencionados no art. 741;
III - nos casos previstos no art. 295.
§ 1o Os embargos serão sempre recebidos com efeito suspensivo. [...][4]
O cenário foi alterado com o advento da Lei nº 11.382/2006, que revogou o que dispunha o §1º do art. 739 e acrescentou o art. 739-A e seus parágrafos ao CPC/73, que passou a assim dispor:
Art. 739-A. Os embargos do executado não terão efeito suspensivo.
§ 1º O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando, sendo relevantes seus fundamentos, o prosseguimento da execução manifestamente possa causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação, e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes.
§ 2º A decisão relativa aos efeitos dos embargos poderá, a requerimento da parte, ser modificada ou revogada a qualquer tempo, em decisão fundamentada, cessando as circunstâncias que a motivaram.
§ 3º Quando o efeito suspensivo atribuído aos embargos disser respeito apenas a parte do objeto da execução, essa prosseguirá quanto à parte restante.
§ 4º A concessão de efeito suspensivo aos embargos oferecidos por um dos executados não suspenderá a execução contra os que não embargaram, quando o respectivo fundamento disser respeito exclusivamente ao embargante.
§ 5o Quando o excesso de execução for fundamento dos embargos, o embargante deverá declarar na petição inicial o valor que entende correto, apresentando memória do cálculo, sob pena de rejeição liminar dos embargos ou de não conhecimento desse fundamento.
§ 6o A concessão de efeito suspensivo não impedirá a efetivação dos atos de penhora e de avaliação dos bens.[5]
Da leitura dos dispositivos legais descritos acima (art. 739-A e §1º, do CPC/73), diversos juízes e Tribunais passaram a afastar a aplicação automática do efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal, que passou a estar condicionada ao preenchimento dos seguintes requisitos: o requerimento do embargante, os argumentos deduzidos serem relevantes, a existência de dano grave, de difícil ou de incerta reparação e que a execução esteja garantida.
Vale ressaltar que, a referida alteração legislativa, implementada pela Lei nº 11.382/2006, estava restrita aos processos de execução, regidos pelo Código de Processo Civil, conforme importante observação de Hugo de Brito Machado (2008, p. 51):
A Lei nº 11.382/06, por seu turno, porta ementa a dizer que “altera dispositivos da Lei nº 5.869/ de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, relativos ao processo de execução e a outros assuntos”. Os arts. 738 e 739-A do Código de Processo Civil estão inseridos no processo de execução. Não cuidam de outros assuntos. Consubstanciam alterações no Código de Processo Civil, cuja aplicação, ou não, ao processo de execução fiscal obedece ao critério aplicável quando se questiona a aplicação do próprio código. Não alteram a lei de execução fiscal, mas com esta convivem.
Assim, não obstante seja a Lei nº 11.382/06 uma lei ordinária federal que poderia, como tal, alterar a lei de execuções fiscais, certo que não o fez. Inseriu-se no âmbito do Código de Processo Civil, que se aplica às execuções fiscais apenas subsidiariamente.
Após diversas discussões doutrinárias e jurisprudenciais, o STJ fixou entendimento em sede de repetitivos, no julgamento do REsp nº 1.272.827/PE, de que o disposto no CPC/73 seria aplicável às execuções fiscais, de modo que a concessão do efeito suspensivo dependeria da observância dos requisitos dispostos no art. 739-A, §1º, do CPC/73. Eis o que consignou o Min. Mauro Campbell Marques em seu voto:
PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. ART. 543-C, DO CPC. APLICABILIDADE DO ART. 739-A, §1º, DO CPC ÀS EXECUÇÕES FISCAIS. NECESSIDADE DE GARANTIA DA EXECUÇÃO E ANÁLISE DO JUIZ A RESPEITO DA RELEVÂNCIA DA ARGUMENTAÇÃO (FUMUS BONI JURIS) E DA OCORRÊNCIA DE GRAVE DANO DE DIFÍCIL OU INCERTA REPARAÇÃO (PERICULUM IN MORA) PARA A CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO AOS EMBARGOS DO DEVEDOR OPOSTOS EM EXECUÇÃO FISCAL.
1. A previsão no ordenamento jurídico pátrio da regra geral de atribuição de efeito suspensivo aos embargos do devedor somente ocorreu com o advento da Lei n. 8.953, de 13, de dezembro de 1994, que promoveu a reforma do Processo de Execução do Código de Processo Civil de 1973 (Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - CPC/73), nele incluindo o §1º do art. 739, e o inciso I do art. 791.
2. Antes dessa reforma, e inclusive na vigência do Decreto-lei n. 960, de 17 de dezembro de 1938, que disciplinava a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública em todo o território nacional, e do Código de Processo Civil de 1939 (Decreto-lei n. 1.608/39), nenhuma lei previa expressamente a atribuição, em regra, de efeitos suspensivos aos embargos do devedor, somente admitindo-os excepcionalmente. Em razão disso, o efeito suspensivo derivava de construção doutrinária que, posteriormente, quando suficientemente amadurecida, culminou no projeto que foi convertido na citada Lei n. 8.953/94, conforme o evidencia sua Exposição de Motivos - Mensagem n. 237, de 7 de maio de 1993, DOU de 12.04.1994, Seção II, p. 1696.
3. Sendo assim, resta evidente o equívoco da premissa de que a LEF e a Lei n. 8.212/91 adotaram a postura suspensiva dos embargos do devedor antes mesmo de essa postura ter sido adotada expressamente pelo próprio CPC/73, com o advento da Lei n. 8.953/94, fazendo tábula rasa da história legislativa.
4. Desta feita, à luz de uma interpretação histórica e dos princípios que nortearam as várias reformas nos feitos executivos da Fazenda Pública e no próprio Código de Processo Civil de 1973, mormente a eficácia material do feito executivo a primazia do crédito público sobre o privado e a especialidade das execuções fiscais, é ilógico concluir que a Lei n. 6.830 de 22 de setembro de 1980 - Lei de Execuções Fiscais - LEF e o art. 53, §4º da Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991, foram em algum momento ou são incompatíveis com a ausência de efeito suspensivo aos embargos do devedor. Isto porque quanto ao regime dos embargos do devedor invocavam - com derrogações específicas sempre no sentido de dar maiores garantias ao crédito público - a aplicação subsidiária do disposto no CPC/73 que tinha redação dúbia a respeito, admitindo diversas interpretações doutrinárias.
5. Desse modo, tanto a Lei n. 6.830/80 - LEF quanto o art. 53, §4º da Lei n. 8.212/91 não fizeram a opção por um ou outro regime, isto é, são compatíveis com a atribuição de efeito suspensivo ou não aos embargos do devedor. Por essa razão, não se incompatibilizam com o art. 739-A do CPC/73 (introduzido pela Lei 11.382/2006) que condiciona a atribuição de efeitos suspensivos aos embargos do devedor ao cumprimento de três requisitos: apresentação de garantia;
verificação pelo juiz da relevância da fundamentação (fumus boni juris) e perigo de dano irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora).
6. Em atenção ao princípio da especialidade da LEF, mantido com a reforma do CPC/73, a nova redação do art. 736, do CPC dada pela Lei n. 11.382/2006 - artigo que dispensa a garantia como condicionante dos embargos - não se aplica às execuções fiscais diante da presença de dispositivo específico, qual seja o art. 16, §1º da Lei n. 6.830/80, que exige expressamente a garantia para a apresentação dos embargos à execução fiscal.
7. Muito embora por fundamentos variados - ora fazendo uso da interpretação sistemática da LEF e do CPC/73, ora trilhando o inovador caminho da teoria do "Diálogo das Fontes", ora utilizando-se de interpretação histórica dos dispositivos (o que se faz agora) - essa conclusão tem sido a alcançada pela jurisprudência predominante, conforme ressoam os seguintes precedentes de ambas as Turmas deste Superior Tribunal de Justiça. Pela Primeira Turma: AgRg no Ag 1381229 / PR, Primeira Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, julgado em 15.12.2011; AgRg no REsp 1.225.406 / PR, Primeira Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, julgado em 15.02.2011; AgRg no REsp 1.150.534 / MG, Primeira Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 16.11.2010; AgRg no Ag 1.337.891 / SC, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 16.11.2010; AgRg no REsp 1.103.465 / RS, Primeira Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 07.05.2009. Pela Segunda Turma: AgRg nos EDcl no Ag n. 1.389.866/PR, Segunda Turma, Rei. Min. Humberto Martins, DJe de 21.9.2011; REsp, n. 1.195.977/RS, Segunda Turma, Rei. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 17/08/2010; AgRg no Ag n. 1.180.395/AL, Segunda Turma, Rei. Min. Castro Meira, DJe 26.2.2010; REsp, n, 1.127.353/SC, Segunda Turma, Rei. Min. Eliana Calmon, DJe 20.11.2009; REsp, 1.024.128/PR, Segunda Turma, Rei. Min. Herman Benjamin, DJe de 19.12.2008.
8. Superada a linha jurisprudencial em sentido contrário inaugurada pelo REsp. n. 1.178.883 - MG, Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 20.10.2011 e seguida pelo AgRg no REsp 1.283.416 / AL, Primeira Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 02.02.2012; e pelo REsp 1.291.923 / PR, Primeira Turma, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 01.12.2011.
9. Recurso especial provido. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C, do CPC, e da Resolução STJ n. 8/2008.
(STJ, 1ª Seção, REsp n. 1.272.827/PE, Tema Repetitivo nº 526, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, DJe de 31.05.2013) – grifos nossos.
Embora tenha o STJ sedimentado o entendimento sobre a matéria no sentido de que a concessão do efeito suspensivo aos embargos à execução fiscal não seja automática e que exige-se autorização judicial, a questão demanda análise mais apurada à luz da Constituição Federal.
Com razão alertam Hugo de Brito Machado Segundo e Raquel Cavalcanti Ramos Machado (2008, p. 62) que “a aplicação direta do art. 739-A do CPC à execução fiscal implica desprezo à lógica da evolução pela qual tem passado o Código, bem como à evolução específica do processo tributário. E isso pode levar a grave desequilíbrio entre o direito das partes no processo de execução fiscal.”
Apesar da revogação do CPC/73, o conteúdo do art. 739-A, §1º, do CPC/73 foi basicamente reproduzido no art. 919, §1º do Novo Código de Processo Civil (CPC/15). Portanto, mesmo estando o débito garantido pelo sujeito passivo da execução fiscal, a concessão do efeito suspensivo dos embargos dependerá do convencimento do magistrado quanto ao preenchimento das exigências descritas pela norma geral de processo civil.
Tal entendimento, contudo, nega ao sujeito passivo da execução fiscal o direito à jurisdição efetiva e faz tábula rasa dos direitos e princípios consagrados na Constituição Federal e absorvidos no CPC/15, como o do devido processo legal, o da segurança jurídica e o de paridade de armas entre as partes.
A APARENTE ANTINOMIA DAS NORMAS JURÍDICAS
Conforme disposição contida no 919, §1º, do CPC/15, aprovado pela Lei nº 13.105/15, a concessão do efeito suspensivo aos embargos à execução dependerá de expressa autorização judicial, caso preenchidos os requisitos descritos a seguir:
Art. 919. Os embargos à execução não terão efeito suspensivo.
§ 1º. O juiz poderá, a requerimento do embargante, atribuir efeito suspensivo aos embargos quando verificados os requisitos para a concessão da tutela provisória e desde que a execução já esteja garantida por penhora, depósito ou caução suficientes.[6]
A Lei nº 6.830/80, por sua vez, não realiza tal exigência, donde as diversas decisões jurisprudenciais e discussões doutrinárias acerca da (in)aplicabilidade da disposição do Código de Processo Civil às relações jurídicas processuais tributárias. Resta saber, portanto, como conciliar esse complexo sistema jurídico de normas vigentes e válidas.
Conforme importante observação de Rodrigo Dalcin Rodrigues (2008, p. 78), a Lei nº 6.830/80, enquanto lei especial, foi editada exclusivamente para a regulamentação do processo de execução fiscal, para reger as relações jurídicas processuais entre as pessoas jurídicas de direito público, na execução de seus créditos. A especialidade desse procedimento decorre tanto das partes envolvidas quanto da natureza do crédito executado, donde a aplicação das disposições do Código de Processo Civil às relações jurídicas processuais relacionadas à execução de créditos de maneira geral.
Nesse contexto, observa Hugo de Brito Machado (2008, p. 51) que diante da especialidade da Lei nº 6.830/80, isto é, excepcional em relação do Código de Processo Civil, que é norma geral em relação àquela, inexiste dúvidas sobre a prevalência da Lei das Execuções Fiscais sobre o Código de Processo Civil, na hipótese de alguma incompatibilidade.
Portanto, ainda que se considere que a vigência posterior do Código de Processo Civil, por expressa disposição do art. 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 4.657/42 (LINDB), a nova norma jurídica de caráter geral não possui o condão de revogar a lei especial anterior, nesse caso destinada a reger a execução das dívidas tributárias e não tributárias do interesse da Fazenda Pública.
Nesse aspecto, esclarece Hugo de Brito Machado (2014, p. 480) que:
Para bem entendermos essa questão basta a releitura do art. 2º, §2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que corporifica um critério universal de superação das antinomias no ordenamento jurídico, a dizer que “a lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
Ainda, a Lei Complementar nº 95/98, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e consolidação das leis, ressalta em seu art. 3º, III[7], no art. 9º[8] e no art. 12[9], II e III, que para o fim de se revogar norma jurídica anterior, a nova lei deverá fazê-lo de maneira expressa, o que evidentemente não ocorreu na hipótese.
Ainda que assim não fosse, conforme lição de Maria Helena Diniz (2004, p. 81), o princípio da justiça deve ser o critério dos critérios para se solucionar um conflito normativo. Evidentemente, que a ausência de efeito suspensivo automático aos embargos à execução fiscal poderá trazer ao contribuinte prejuízos irreparáveis, amesquinhando-se os objetivos fundamentais da Constituição Federal[10]. É ver:
Num caso extremo de falta de um critério que possa resolver a antinomia de segundo grau, o critério dos critérios para solucionar o conflito normativo seria o princípio supremo da justiça: entre duas normas incompatíveis dever-se-á escolher a mais justa. Isso é assim porque os referidos critérios não são axiomas, visto que gravitam na interpretação ao lado de considerações valorativas, fazendo com que a lei seja aplicada de acordo com a consciência jurídica popular e com os objetivos sociais. Portanto, o valor justum deve lograr entre duas normas incompatíveis.
Há que se ressaltar, que art. 1º[11], da Lei nº 6.830/80, expressamente admite a aplicação subsidiária das normas do CPC, nas hipóteses de lacuna ou de omissão legal sobre como reger pontualmente a relação processual tributária.
Não obstante, o fato de a Lei nº 6.830/80 não conter dispositivo legal que determine de forma expressa a suspensão da execução, não significa dizer que a norma jurídica seja lacunosa. Isso porque, com base nos ensinamentos de Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2007, p. 219), “a incompletude insatisfatória dentro da totalidade jurídica” configurará a lacuna da lei, conforme definição trazida por Engisch.
O Direito como resultado da criação humana constantemente passa por diversas modificações. Ainda assim, diante do dinamismo das relações sociais, a norma jurídica não detém meios de qualificar todos os comportamentos. Cuida-se, portanto, o Direito de um sistema normativo naturalmente lacunoso (FERRAZ JR., 2007, p. 218).
Nesse aspecto, observa Carlos Maximiliano (2011, p. 20) que:
A base de todo o trabalho do exegeta seria uma ficção: buscaria uma vontade possível, agente, ativa n passado e as conclusões logicamente decorrentes desse intento primitivo. Não se trata apenas dos tempos imediatamente posteriores à lei, quando é menos difícil estudar e compreender o meio, o ambiente em que foi o texto elaborado, as ideias dominantes, as divisões das assembleias, as vitórias parciais de um grupo, as transigências da maioria com este ou aquele pendor dos contrários. A tarefa, nesse caso, seria ainda mais pesada, porém em grande parte realizável. Entretanto a letra perdura e a vida continua; surgem novas ideias, aplicam-se os mesmos princípios a condições sociais diferentes; a lei enfrente imprevistas criações econômicas, aspirações triunfantes, generalizadas no país, ou no mundo civilizado [...]. Força é adaptar o Direito a esse mundo novo aos fenômenos sociais e econômicos em transformação constante, sob pena de não ser efetivamente justo.
A conclusão que se chega, portanto, é a de que nem tudo que seja incompleto também deverá ser insatisfatório (FERRAZ JR., 2007, p. 219). A interpretação sistemática dos dispositivos legais de determinada norma jurídica pode satisfatoriamente conduzir à vontade do legislador quando da sua edição, sem que seja necessário ao intérprete socorrer-se dos instrumentos de superação de antinomias das normas jurídicas.
Nesse aspecto, chama atenção a observação trazida por Tercio Sampaio Ferraz Jr. (2007, p. 220) quanto à classificação dos tipos de lacuna reportados a Zitelmann. Ressalta o autor que, se a Lei proporciona subsídios ao intérprete para extrair a finalidade da norma jurídica, ainda que a disposição não esteja expressamente contida em seu texto legal, inexistirá lacuna autêntica, mas sim uma “lacuna crítica” ou “lacuna de política”, porque nesse caso a inaplicabilidade da vontade do legislador se justificará em razão do seu resultado indesejável aos fins pretendidos pelo intérprete. É ver:
[...] Falamos aqui em lacunas autênticas e não autênticas (exte und unechte). Uma lacuna autêntica ocorre quando a lei não permite uma resposta, quando a partir dela uma decisão não pode ser encontrada. Uma lacuna não autêntica, por seu lado, dá-se quando u fato-tipo (Tatbestand) é previsto pela lei, mas a solução é considerada como indesejável. A doutrina costuma aceitar como lacuna propriamente dita apenas a da primeira espécie (de lege lata), sendo a segunda considerada uma lacuna crítica ou de política jurídica (de lege ferenda).
Dispõe o art. 19, da Lei nº 6.830/80 que, no caso de a garantia ter sido oferecida por terceiro, prosseguirá a execução apenas se não for ela embargada ou se forem rejeitados os embargos. Preveem, ainda, o art. 24, I, e o art. 32, §2º, ambos da Lei nº 6.830/80, que a Fazenda Pública somente poderá adjudicar dos bens penhorados, se a execução fiscal não for embargada ou se forem os embargos rejeitados, e que o depósito, monetariamente atualizado, será devolvido ao depositante ou entregue à Fazenda Pública, após o trânsito em julgado da decisão que pôr fim aos embargos à execução. É ver:
Art. 19 - Não sendo embargada a execução ou sendo rejeitados os embargos, no caso de garantia prestada por terceiro, será este intimado, sob pena de contra ele prosseguir a execução nos próprios autos, para, no prazo de 15 (quinze) dias:
I – remir o bem, se a garantia for real; ou
II – pagar o valor da dívida, juros e multa de mora e demais encargos, indicados na Certidão de Dívida Ativa pelos quais se obrigou se a garantia for fidejussória.[12]
Art. 24 - A Fazenda Pública poderá adjudicar os bens penhorados:
I – antes do leilão, pelo preço da avaliação, se a execução não for embargada ou se rejeitados os embargos. [...][13]
Art. 32 - Os depósitos judiciais em dinheiro serão obrigatoriamente feitos: [...]
§ 2º. Após o trânsito em julgado da decisão, o depósito, monetariamente atualizado, será devolvido ao depositante ou entregue à Fazenda Pública, mediante ordem do Juízo competente. [14]
Da leitura dos dispositivos legais transcritos da Lei nº 6.830/80, há nítida intenção do legislador em conceder efeito suspensivo automático aos embargos à execução fiscal, de modo que os bens oferecidos em garantia pelo sujeito passivo somente serão convertidos em favor do ente exequente na hipótese de os embargos não terem sido opostos ou então terem sido rejeitados pelo magistrado.
Nesse aspecto, conclui Hugo de Brito Machado (2014, p. 480) que:
A Lei de Execuções Fiscais, embora não o diga expressamente, contém dispositivos que apontam claramente o efeito suspensivo dos embargos (arts. 18, 19, 24, I e 32, §2º). Por isto, mesmo tornou-se pacífica na doutrina e na jurisprudência a ocorrência de efeitos suspensivo automático, mesmo quando no Código de Processo Civil não existia norma expressa prescrevendo esse efeito. Ele não decorreu da aplicação subsidiária de dispositivo do Código de Processo Civil.
Inexiste, portanto, qualquer lacuna ou omissão da Lei nº 6.830/80 que autorize a aplicação subsidiária do CPC, especialmente quanto ao efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal. Eis o que consignou Rodrigo Dalcin Rodrigues (2008, p. 80) sobre a questão:
Logo, se deve aplicar o CPC sempre que a Lei 6.830/80 for omissa, for lacunosa em reger a relação jurídica processual de execução de créditos da Fazenda Pública. Porém, a omissão ou lacuna não decorre da análise isolada de dispositivos legais, mas sim do contexto de toda a Lei 6.830/80, pois, se for possível construir norma a partir dela para reger o processo no ponto duvidoso, não haverá lacuna, e, consequentemente, não haverá possibilidade de aplicação subsidiária do CPC para reger a relação processual de execução fiscal.
E, por fim, é necessário reiterar: não é preciso que a Lei 6.830/80 disponha literal e individualmente sobre determinada regra. O que o direito requer é que, do conjunto do ordenamento (aqui em análise restrita da Lei 6.830/80), seja possível construir a norma, a conclusão sobre a conduta a ser observada, identificando a regra imposta pelo legislador.
Além disso, para a aplicação da norma geral de processo, pelo critério da especialidade, deverá estar em consonância com as disposições legais da especial. Caso contrário, prevalecerá esta em detrimento daquela, conforme os ensinamentos de Hugo de Brito Machado (2014, p. 479):
Em face de alterações introduzidas no Código de Processo Civil, tem sido questionada a subsistência do efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal, e várias decisões judiciais já afirmaram que os embargos já não produzem o efeito suspensivo automático. Essas decisões, todavia, albergam lamentável equívoco. O Código de Processo Civil aplica-se às execuções fiscais apenas subsidiariamente. As alterações nele introduzidas, portanto, em regra não se aplicam às execuções fiscais, que se regem por lei especial, ou excepcional.
Nesse aspecto, explica Carlos Maximiliano (2011, p. 110) que:
Não se presumem antinomias ou incompatibilidades nos repositórios jurídicos; se alguém alega a existência de disposições inconciliáveis, deve demonstrá-la até a evidência. [...]
Sempre que se descobre uma contradição, deve o hermeneuta desconfiar de si; presumir que não se compreendeu bem o sentido de cada um dos trechos ao parecer inconciliáveis, sobretudo se ambos se acham no mesmo repositório. Incumbe-lhe preliminarmente fazer tentativa para harmonizar os textos; a este esforço ou arte os Estatutos da Universidade de Coimbra, de 1772, denominavam Terapêutica Jurídica.
Inspire-se o intérprete em alguns preceitos diretores, formulados pela doutrina:
a) Tome como ponto de partida o fato de não ser lícito aplicar uma norma jurídica senão à ordem de coisas para a qual foi feita.
Se existe antinomia entre a regra geral e a peculiar, específica, esta, no caso particular, tem a supremacia. Preferem-se as disposições que se relacionam mais direta e especialmente com o assunto de que se trata. [...]
b) Verifique se os dois trechos se não referem a hipóteses diferentes, espécies diversas. Cessa, nesse caso, o conflito; porque tem cada um a sua esfera de ação especial, distinta, cujos limites o aplicador arguto fixará precisamente. [...]
Da simples leitura dos dispositivos do CPC/15 que regem as execuções em geral e dos que compõem a Lei nº 6.830/80, a incompatibilidade entre os dois procedimentos é salutar porque editados para finalidades diversas. Não há na hipótese em questão conflito entre as normas jurídicas, mas embaraço na aplicação de cada uma à conjectura para qual a sua edição foi destinada (MAXIMILIANO, 2011, p. 110).
O art. 16, §1º da Lei nº 6.830/80, por exemplo, exige a apresentação de garantia para que o interessado apresente defesa. Os arts. 914 e 919, ambos do CPC/15, por sua vez, admitem a apresentação dos embargos antes mesmo de garantida a execução.
Outra disparidade entre os dois diplomas legais, revela-se no prazo para a oposição dos embargos à execução. Enquanto na Lei nº 6.830/80, estabelece-se o prazo de 30 dias para que a parte avie os embargos após garantida a execução (art. 16, da LEF), o art. 915, do CPC/15, fixa prazo de 15 dias. Isso sem falar que, para os procedimentos sob a égide do Código de Processo Civil, os prazos são contados em dias úteis (art. 212, do CPC/15), diferentemente do regramento aplicável às execuções fiscais.
É necessário, portanto, que se observe os procedimentos dispostos por cada uma das normas jurídicas para as hipóteses específicas abrangidas por elas, porque editadas para finalidades diversas. Do contrário, haveria confusão entre os dois diplomas legais, que possuem razão específica de existirem separadamente. Daí a evidente incompatibilidade entre elas, que “há de ser resolvida pelo critério da especialidade, vale dizer, as disposições da lei especial seguem vigentes e não se há de cogitar da aplicação das disposições do Código de Processo Civil.” (MACHADO, 2008. p. 53)
O ASPECTO CONSTITUCIONAL DO EFEITO SUSPENSIVO DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL
Superados os aspectos infraconstitucionais que irradiam consequências para todo o sistema jurídico-tributário, há que se ressaltar a estreita relação existente entre o efeito suspensivo dos embargos à execução fiscal e a efetivação de princípios constitucionais como o do direito à propriedade, o da inafastabilidade do controle judicial, o do contraditório e da ampla defesa e o do direito à jurisdição, em favor do interesse meramente arrecadatório da Fazenda Pública.
Isto é, ainda que a Lei nº 6.830/80 não fizesse qualquer referência ao efeito suspensivo automático atribuído aos embargos à execução fiscal, a sua concessão se justificaria em razão da conformação unilateral do crédito tributário que, não raras vezes, é resultado da completa inadequação dos princípios do contraditório e da ampla defesa (MACHADO, 2014, p. 480).
Nas palavras de Igor Mauler Santiago e de Frederico Menezes Breyner (2009, p. 89-90):
É inadmissível que o sujeito passivo seja imediatamente privado dos seus bens em razão de suposta dívida que não reconheceu e que nem foi declarada pelo Estado-Juiz em processo contraditório regular. [...]
Ora, no processo tributário administrativo o Poder Executivo é a um tempo parte e julgador. Apesar de em princípio obrigado à imparcialidade, não deixa o órgão de ter interesse na manutenção do crédito tributário (o que se revela, nas instâncias de composição paritária, pela prevalência da posição do Fisco em caso de empate).
Imparcialidade total, garantida por vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsídios e dedicação exclusiva (CF, art. 95, I a III e parágrafo único), verifica-se apenas no Poder Judiciário.
Nesse aspecto, ainda, conclui Hugo de Brito Machado (2008, p. 56) que, por ser o crédito tributário constituído unilateralmente pela Fazenda Pública, a execução fiscal é o caminho para que se busque a satisfação do crédito, sendo os embargos, embora dotados de autonomia, uma fase da própria execução fiscal, quando é oportunizado ao contribuinte que deduza toda a matéria de defesa e produza prova para demonstrar a inexigibilidade do crédito tributário. É natural, portanto, que sejam os embargos à execução fiscal dotados de efeito suspensivo. Caso contrário, toda a atividade jurisdicional desempenhada no curso do processo, será considerada inútil ao final do julgamento dos embargos.
Há que se ressaltar, ainda, que garantida a execução fiscal e opostos os respectivos embargos, nas palavras de André Folloni (2010, p. 24) estará o cidadão contribuinte regular sob o ponto de vista tributário e, evidentemente, não poderá ser privado dos seus bens e da sua liberdade por interesses meramente arrecadatórios da Fazenda Pública. Não é por outra razão, que a legislação tributária prevê além das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário[15], outros instrumentos que evidenciam a mesma conclusão. É ver:
De modo que, todo aquele cidadão que faz depósito de garantia do crédito tributário e move medida judicial ou administrativa para discutir a dívida está regular sob o ponto de vista do Direito Tributário brasileiro. Esse ponto precisa ser destacado e a ele deve ser dada a maior atenção: depositando e discutindo, o cidadão contribuinte está regular sob o ponto de vista tributário. Não comete nenhuma ilicitude: está absolutamente regular em sua conduta. Não pode, evidentemente, ser privado nem de sua liberdade nem de sua propriedade nessa situação. Não pode ser sancionado como se fosse, em definitivo, devedor inadimplente.
Essa afirmação teórica encontra ampla corroboração no ordenamento jurídico brasileiro, ao contrário de uma pretensa e indemonstrada “teoria geral dos processos de execução” que fosse, na ordem das intenções, apta a alterar o regramento tributário. Se não bastassem os casos de suspensão da exigibilidade do crédito tributário previstos no Código Tributário Nacional, recorde-se o que o Direito Tributário brasileiro prescreve em relação à penhora na execução fiscal.
O Código Tributário Nacional, em seu art. 206, prescreve que o cidadão que tem contra si uma execução fiscal garantida por penhora está regular sob ponto de vista tributário. Tanto é assim que pode obter certidão positiva com efeitos de negativa, e praticar normalmente os atos que todo aquele contra o qual não há execução também pode; sem nenhum problema. Está regular.
Além disso, a Lei n. 10.522/2002, em seu art. 7º, I, prescreve que o ajuizamento de ação com o objetivo de discutir a natureza da obrigação ou o seu valor, com o oferecimento de garantia idônea e suficiente ao juízo, suspende o registro do suposto devedor no cadastro informativo de créditos não quitados do setor público federal -Cadin. Isso porque o ajuizamento de ação com oferecimento de garantia faz com que o cidadão esteja, novamente, regular sob ponto de vista tributário. Tanto é assim que pode obter suspensão do registro no Cadin, e praticar normalmente os atos que o não executado também pode, sem nenhum problema. Sendo os embargos à execução fiscal uma ação própria, como admite toda a doutrina, enquadram-se na moldura do art. 7º, I, da Lei n. 10.552/2002.
Isso sem falar na ausência de paridade dos instrumentos colocados à disposição da Fazenda Pública e dos contribuintes, desde a formação do título executivo extrajudicial (CDA) até devolução dos valores indevidamente cobrados, na hipótese de reconhecida a inconstitucionalidade ou a ilegalidade da exação, conforme pertinente colocação de Hugo de Brito Machado Segundo e de Raquel Cavalcanti Ramos Machado (2008, p. 61):
A propósito, quando se analisam os títulos executivos extrajudiciais, verifica-se que, em regra, são eles formados pela vontade do devedor. Afinal, é dele a assinatura no cheque, na nota promissória ou no contrato. Foi sua manifestação de vontade que fez nascer a relação jurídica obrigacional, e o título no qual está representada com força executiva. No caso da execução fiscal, não. O título é originado no âmbito da chamada autotutela vinculada de que a Administração Pública é dotada. Por outras palavras: a Administração constitui seus próprios títulos executivos, unilateralmente.
Por outro lado, se um credor privado age com excesso e recebe quantia superior à devida por seu devedor, este último poderá, com os mesmos instrumentos, obter o devido ressarcimento. Tem igualdade de instrumentos processuais. No caso da Fazenda Pública, não. Satisfeito o crédito tributário por meio de expedientes açodados, a posterior constatação de que o mesmo não era devido impõe ao contribuinte o manejo de ação de conhecimento, cuja efetividade submete-se aos seguintes óbices: (i) a execução da sentença somente pode ocorrer após o trânsito em julgado do processo de conhecimento; (ii) caso haja embargos à execução de sentença, a satisfação da parte embargada há de aguardar o trânsito em julgado da sentença de rejeição dos embargos (e não só a sentença de improcedência em primeira instância); (iii) depois de tudo isso, a satisfação do crédito ainda depende da sistemática deprecatórios, eventualmente submetida a emendas constitucionais que os parcelam em até 10 anos, ou a leis que condicionam o seu pagamento à apresentação de toda a sorte de certidões negativas de débito.
Está claro, nesse contexto, que eventual excesso na cobrança de um crédito tributário não é reparado da mesma forma que o excesso na cobrança de um crédito executado, por um particular contra outro, nos moldes do CPC. Isso recomenda, no primeiro caso, cautela ainda maior que no segundo, aspecto que se soma à já mencionada forma, também diferenciada, por meio da qual se dá a unilateral constituição do crédito tributário.
Diante da gravidade atribuída à realização de atos expropriatórios antes do julgamento dos embargos à execução fiscal, quando terá o sujeito passivo a oportunidade de produzir provas e deduzir a sua defesa em juízo, está revelado o seu caráter inconstitucional, haja vista a violação aos princípios constitucionais do devido processo legal (art. 5º, LIV), da ampla defesa (art. 5º, LV) e o do livre acesso ao Poder Judiciário (art. 5º, XXXV) e a submissão arbitrária do contribuinte à penosa prática do solve et repete[16].
CONCLUSÃO
Com base na análise dos dispositivos legais contidos na Lei nº 6.830/80, a conclusão que se chega é a de que, apresentada garantia na execução fiscal, os embargos possuem o efeito suspensivo, que somente deve ser desconstituído na hipótese de a defesa não ter sido apresentada pelo sujeito passivo da execução ou mesmo quando for rejeitada pelo Juízo, após a dilação probatória e a análise das razões para a desconstituição da exigência.
Apesar das reiteradas decisões do STJ em sentido contrário, a aplicação do art. 919, §1º, do CPC, de forma subsidiária à Lei de Execuções Fiscais, na verdade, contraria a sistemática do processo executivo no âmbito das execuções fiscais, cujo título extrajudicial no qual se baseia a exigência é formado unilateralmente pela Fazenda Pública, sendo dispensável nessa fase a participação do executado, de modo que a falta de concessão do efeito suspensivo automático aos embargos à execução fiscal torna a medida incompatível com os princípios consagrados na Constituição Federal e absorvidos por todo o sistema jurídico, como o do devido processo legal, o da segurança jurídica e o de paridade de armas entre as partes.
REFERÊNCIAS:
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DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão e dominação, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2007.
FOLLONI, André. Embargos à execução, necessidade de penhora e efeitos do recebimento: relações entre a Lei n. 11.382 e a Lei nº 6.830. In: Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT), nº 173, fevereiro, 2010.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014.
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RODRIGUES, Rodrigo Dalcin. Análise da Suspensão da Execução Fiscal sob o Prima dos Fatos, da Finalidade das Leis, da sua Aplicação Razoável e da Coerência do Ordenamento. In: Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT), nº 153, junho, 2008.
SANTIAGO, Igor Mauler; BREYNER, Frederico Menezes. Inaplicabilidade do artigo 739-A do Código de Processo Civil aos Embargos à Execução Fiscal. In: Revista da Faculdade de Direito da UFMG, nº 55, jul/dez, 2009.
[1] Mestranda em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Itu. MBA em Gestão Fiscal pela Trevisan Escola de Negócios. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Advogada no Soares de Melo Advogados. E-mail: [email protected]
[2] Como explica Hugo de Brito Machado: “Como não temos leis processuais específicas para a solução dos conflitos entre o Fisco e o contribuinte, o processo judicial tributário regula-se pelo Código de Processo Civil, salvo no que diz respeito à execução fiscal e à cautelar fiscal. O processo de conhecimento em matéria tributária é sempre de iniciativa do contribuinte, porque a decisão no processo administrativo é sempre do Fisco, inexistindo, razão para que este provoque o controle judicial da legalidade de tais decisões.” (MACHADO, 2014, p.473)
[3] BRASIL. Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980.
[4] BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.
[5] BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.
[6] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015.
[7] Art. 3º, da LC nº 95/98 – “A lei será estruturada em três partes básicas: [...]
III – parte final, compreendendo as disposições pertinentes às medidas necessárias à implementação das normas de conteúdo substantivo, às disposições transitórias, se for o caso, a cláusula de vigência e a cláusula de revogação, quando couber.”
[8] Art. 9º, da LC nº 95/98 – “A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas.”
[9] Art. 12, da LC nº 95/98 – “A alteração da lei será feita: [...]
II – mediante revogação parcial;
III – nos demais casos, por meio de substituição, no próprio texto, do dispositivo alterado, ou acréscimo de dispositivo novo, observadas as seguintes regras: [...]”
[10] Art. 3º, da Constituição Federal – “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...]”
[11] Art. 1º, da Lei nº 6.830/80 – “A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.”
[12] BRASIL. Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980.
[13] BRASIL. Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980.
[14] BRASIL. Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980.
[15] Art. 151, do Código Tributário Nacional – “Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: I - moratória; II - o depósito do seu montante integral; III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo; IV - a concessão de medida liminar em mandado de segurança; V – a concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em outras espécies de ação judicial; VI – o parcelamento.”
[16] Nesse sentido: Hugo de Brito Machado Segundo e de Raquel Cavalcanti Ramos Machado. A reforma no CPC e a suspensão da execução fiscal pela oposição dos embargos. In: Revista Dialética de Direito Tributário (RDDT), nº 151, abril, 2008, p. 61 e ss.
É graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduada (lato sensu) em Direito Tributário pela FGV/SP e mestranda do núcleo de pesquisa em Direito Constitucional e Processual Tributário na PUC/SP. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Tributário, especialmente em contencioso administrativo e judicial, assim como em processo civil. Atualmente, é advogada no escritório Mauler Advogados.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Graziela Mitsue Uemoto Maciel. O efeito suspensivo automático atribuído aos embargos à execução fiscal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 fev 2024, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/58964/o-efeito-suspensivo-automtico-atribudo-aos-embargos-execuo-fiscal. Acesso em: 22 nov 2024.
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