MARCO ANTÔNIO ALVES BEZERRA[1]
(orientador)
Resumo: Sabe-se que a aferição da causalidade física (relação de causa e efeito entre a conduta e o resultado naturalístico produzido) é indispensável ao estudo do fato típico, no que diz respeito aos delitos materiais. Nesse sentido, consagrou o Código Penal na segunda parte do art. 13 a chamada Teoria da Equivalência dos Antecedentes, que considera como causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Em que pese o esforço dos autores finalistas para adequarem essa teoria aos novos contornos da imputação, parcela da doutrina moderna, vinculada ao funcionalismo penal, entende pela insuficiência da sua análise da dimensão do tipo objetivo, ainda que acrescida de elementos subjetivos (dolo e culpa). Dessa forma, o presente artigo pretende explorar a evolução da relação de causalidade e a recepção da teoria da imputação objetiva na doutrina penal brasileira.
Palavras-chave: Causalidade. Imputação Objetiva. Resultado Naturalístico. Funcionalismo Penal. Finalismo Penal.
Keywords: Causality. Objective Imputation. End Result. Finalist Theory. Function of the Criminal Law.
Abstract: It is known that the examination of the physical causality (cause and effect relationship between conduct and end result) is indispensable for the verification of the criminal fact. On that subject, the brazilian penal code linked itself to the equivalence theory, which considers as the cause of the crime the action or omission without which the result would not have occurred. Despite the efforts of the finalist authors to adjust this theory to the advances of imputation, some modern authors, linked to the Claus Roxin’s theory, understands the insufficiency of his analysis of the dimension of the objective type, although added with subjective elements (deceit and guilt). Thus, the present article intends to analyze the evolution of the causality relationship and the reception of the objective imputation in brazilian penal doctrine.
Sumário: Materiais, métodos e proposta. Introdução. 1. Tipo Legal Finalista. 2. Teoria da Equivalência dos Antecedentes. 3. Causalidade Normativa. 4. Causalidade Normativa no Direito Privado. Apontamentos Finais. Referências.
Materiais, métodos e proposta
A ideia para este artigo surgiu durante os estudos de Teoria do Crime, notadamente da relação de causalidade. Foi percebido o quão controversas são as teorias que versam a respeito da imputação do resultado no âmbito dos delitos materiais e, diante disso, surgiu o interesse em discorrer acerca deste assunto. Fato é que vivemos em um momento de transição, não só no Direito Penal, mas em todo o ordenamento jurídico – o avanço da tecnologia tem tornado a sociedade cada vez mais complexa, o que vem exigindo novos tratos por parte do homo sapiens sapiens.
As relações humanas modernas devem ser analisadas com muita cautela, caso a caso, não se admitindo mais que o ser humano seja objeto de estudo, mas ponto de partida. Diante disso, verificamos no Direito um fenômeno de “desabstrativização”, isto é, tem-se retirado o foco do abstrato e direcionado ao caso concreto, às particularidades (há no Direito Penal, inclusive, inúmeras críticas acerca da permanência do uso do critério do “homem médio”, que não seria razoável no critério de imputação).
A proposta deste artigo é analisar a evolução da relação de causalidade ao longo do desenvolvimento do modelo tripartido de crime, bem como a recepção da teoria da imputação objetiva pela jurisprudência brasileira e pela doutrina nacional.
Para a confecção deste artigo, fez-se uso de ampla pesquisa doutrinária e jurisprudencial. Em um primeiro momento, foram separados livros e artigos jurídicos de relevância que fizessem referência ao tema proposto. Posteriormente, procedeu-se a um juízo de necessidade e adequação, a partir da absorção dos conteúdos e gerenciamento das informações para que fossem abalizadas conforme o exposto a seguir.
Introdução
A relação de causalidade pode ser compreendida como o vínculo existente entre a conduta e o resultado naturalístico, isto é, a ação ou inação que provoca um resultado apto a modificar o mundo exterior.
No atual contexto da Teoria do Delito, o estudo do resultado não costuma ocupar muitas páginas nos cursos e manuais de Direito Penal. Há, como ensina André Estefam (2018), duas teorias que debatem a sua conceituação para fins penais: a) teoria naturalística, segundo a qual o resultado é a modificação do mundo exterior provocada pela ação ou omissão; e b) teoria jurídica, que considera o resultado como sendo a lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal (ESTEFAM, 2018).
Fala-se, portanto, em duas espécies de resultado: naturalístico e jurídico. Nesse ponto, a doutrina costuma indagar acerca da possibilidade de existência de um crime sem resultado.
Com precisão, o supracitado autor responde que não há crime sem resultado jurídico. Isto é, a constatação do injusto depende de uma lesão ou de uma ameaça de lesão real a um bem jurídico. Ausente a mera probabilidade de dano ao bem jurídico tutelado, ainda que esteja preenchida a tipicidade formal, estaremos diante de um fato materialmente atípico.
Por outro lado, é possível que exista um crime sem resultado naturalístico, como é o caso dos delitos de simples atividade ou de mera conduta. Importante lembrar que o resultado naturalístico é previsto nos crimes materiais e formais, mas só condiciona a consumação daqueles.
Diferente do que ocorre com o resultado, a conduta costuma ganhar papel de destaque no estudo da teoria do delito, inaugurando o entendimento do fato típico. Assim, para compreender a relação de causalidade é indispensável que seja feita prévia análise do que se entende por conduta.
Juarez Cirino dos Santos (2014) leciona que, na linha do sistema tripartido de fato punível, a dogmática penal conhece três modelos sucessivos: clássico, neoclássico e finalista.
Para o modelo clássico, concebido principalmente por Franz von Liszt, Ernst von Beling e Gustav Radbruch, a conduta era entendida como o movimento corporal causador de um resultado no mundo exterior.
Adotava-se, conforme o magistério de ESTEFAM (2018), a teoria causal ou naturalista da ação, apresentando a ação como inervação muscular, produzida por energias de um impulso cerebral, que provoca modificações no mundo exterior.
Posteriormente, o modelo clássico, de base positivista e embasado na metodologia aplicada às ciências naturais, cedeu espaço ao modelo neoclássico, encampado por Reinhart Frank e Edmund Mezger.
Para os adeptos dessa corrente, como explica Juarez Cirino dos Santos (2014), a conduta deixa de ser naturalista (centrada exclusivamente na relação de causa e efeito) para assumir uma carga valorativa, sendo redefinida como comportamento humano voluntário.
O sistema neoclássico diverge do anterior, em primeiro lugar, por seu aporte filosófico. Enquanto os clássicos tinham inspiração no positivismo de Auguste Comte, os neoclássicos se viram grandemente influenciados pelo neokantismo e pela filosofia de valores.
O neokantismo, diferentemente do naturalismo (filosofia inspiradora do sistema clássico), procurou dar fundamento autônomo às ciências humanas (em vez de submetê-las ao ideal de exatidão das ciências naturais).
Para o neokantismo, a peculiaridade das ciências humanas reside em que a realidade deve ser referida com base nos valores supremos de cada ciência (ESTEFAM, 2018).
Por fim, em 1931, através da publicação do trabalho intitulado “Causalidade e Omissão”, Hans Welzel inaugura o modelo finalista, adotado pela Parte Geral do Código Penal brasileiro. Nesse momento, a conduta passa a ser compreendida como o agir finalístico.
A ação humana é exercício de atividade final ou, como objetivação da subjetividade, realização do propósito: o homem pode, em certos limites, por causa do saber causal, controlar os acontecimentos e dirigir a ação para determinados fins, conforme um plano. A ação final compreende a proposição do fim, a escolha dos meios de ação necessários e a realização da ação no mundo real (SANTOS, 2014).
Sobre o conceito de conduta no modelo finalista, Rogério Greco (2016) ensina que o homem, quando atua, seja fazendo ou deixando de fazer alguma coisa a que estava obrigado, dirige a sua conduta sempre à determinada finalidade, que pode ser lícita ou ilícita.
Quando o fim é ilícito e o agente tem vontade consciente, estamos diante do dolo; quando o fim é lícito e, por excesso ou descuido, sobrevém resultado lesivo, verificamos a culpa.
Do vínculo existente entre a conduta e o resultado naturalístico surge um dos temas que provoca acalorados debates acadêmicos em matéria de ciências criminais, que é objeto desse trabalho: a relação de causalidade.
1. Tipo legal finalista
Superada a análise do conceito de conduta nos três modelos de fato punível, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, faz-se necessário à compreensão da evolução da causalidade que se entenda o conceito de tipo.
Com o brilhantismo que lhe é peculiar, Cleber Masson (2020) explica que tipo penal é o modelo genérico e abstrato, formulado pela lei penal, descritivo da conduta criminosa ou da conduta permitida. O tipo penal, ele ressalva, não é somente incriminador, mas também permissivo.
Juarez Cirino dos Santos (2014) afirma que o conceito de tipo foi introduzido na dogmática penal por Ludwig von Beling, e se subdivide em três espécies:
a) tipo legal, descritivo da conduta proibida;
b) tipo de injusto, compreende a ação não justificada; e
c) tipo de garantia, que realiza funções político-criminais.
Ensina o supramencionado autor que, no seu surgimento, o tipo não trouxe qualquer carga valorativa, era puramente objetivo (tipo objetivo). Posteriormente, FISCHER e MAYER descobrem elementos subjetivos e demonstram que o tipo legal pode depender do psiquismo do autor.
André Estefam (2018) aponta que Jimenez de Asúa defendia que os tipos penais deveriam ser, em regra, objetivos, razão por que os chamava de tipos normais. Os tipos penais que possuíam apenas elementos objetivos eram chamados de tipos normais, ao passo que aqueles que descreviam elementos subjetivos (como o fim especial de agir), eram tidos como anormais.
É de ver, contudo, que é criticável a classificação de Asúa, porquanto todo tipo de crime doloso possui um elemento subjetivo implícito: o dolo e, nos crimes culposos, um elemento normativo tácito: a culpa.
Pelo critério do autor, então, não existiriam tipos normais, senão anormais, já que dolo e culpa (diante da negação da responsabilidade penal objetiva) encontram-se presentes em todas as construções típicas do Direito Penal (ESTEFAM, 2018).
Com o advento do finalismo, tornou-se impossível sustentar a existência de um tipo puramente objetivo. Como a principal contribuição do finalismo, na esteira do que nos ensina Juarez Tavares (2018), foi a transferência do dolo e da culpa, antes situados na culpabilidade, para o interior da conduta, integrando o fato típico, já não é mais possível conceber o fato típico desprovido do dolo natural, que passou a ser elemento subjetivo do tipo.
Para os finalistas, portanto, todo tipo penal é anormal, tornando despicienda essa classificação.
2. Teoria da Equivalência dos Antecedentes
Pela teoria da equivalência dos antecedentes causais, de von Buri, adotada pelo nosso Código Penal, considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
Isso significa que todos os fatos que antecedem o resultado se equivalem, desde que indispensáveis à sua ocorrência. Verifica-se se o fato antecedente é causa do resultado por meio de uma eliminação hipotética.
Se, suprimindo mentalmente o fato, vier a ocorrer uma modificação no resultado, é sinal de que aquele é causa deste último (GRECO, 2016).
A expressão dessa teoria foi consagrada pelo Código Penal brasileiro no seu art. 13. Parcela da doutrina questiona se o vocábulo “resultado” se refere ao resultado jurídico ou ao naturalístico.
Ronaldo Tanus Madeira apud Rogério Greco leciona que, por ser limitado aos delitos materiais, o nexo causal não tem sentido em relação aos delitos de simples atividade, bem como aos omissivos próprios.
Assim, o vocábulo em comento refere-se apenas ao resultado naturalístico, entendido como aquele que modifica o mundo exterior.
Como consta do magistério de Cleber Masson (2020), contra essa teoria foram endereçadas algumas críticas. A principal delas consistiria na circunstância de ser uma teoria cega, porque possibilitaria uma regressão ao infinito (regressus ad infinitum).
Como todo antecedente se equivale, poderiam até mesmo os pais do agente serem responsabilizados pelo seu comportamento desviado.
Respondendo às críticas, os adeptos do finalismo penal argumentam que o ingresso do acontecimento na relação de causalidade não se sujeita apenas a uma mera dependência física.
Não basta a relação de causa e efeito. Exige-se ainda, além da causalidade física, o causalismo psíquico. Ou seja, reclama-se a presença do dolo ou da culpa por parte do agente em relação ao resultado. Isso porque no finalismo a ausência de dolo ou culpa torna o fato atípico (MASSON, 2020).
Para o modelo clássico, no conceito causal de ação, aquele que, durante o sono, movimenta o seu braço inconscientemente e atinge o rosto de terceiro, causando lesão corporal leve, pratica uma conduta relevante para o Direito Penal.
Na visão finalista, por sua vez, ausente o dolo e a culpa no desempenho da ação, não se pode falar em conduta relevante. Tem-se, portanto, um fato atípico.
Para o finalismo penal, não basta que o movimento corporal do agente tenha contribuído para causar um resultado naturalístico. Exige-se que esse movimento tenha se dirigido a um fim, lícito ou ilícito. Se a ação não foi querida, involuntária, não se enquadra no conceito de conduta.
Quem bem define a causa, de acordo com o finalismo penal, é Heleno Claúdio Fragoso apud Rogério Greco: “causa é todo antecedente que não pode ser suprimido in mente, sem afetar o resultado”.
3. Causalidade normativa
Nas lições de Cleber Masson (2020), no modelo clássico, como já foi assinalado, o tipo possuía apenas elementos objetivos, representados pela relação de causalidade.
Visando solucionar o problema proporcionado pela teoria da equivalência, que dificultava a aferição da causa por permitir o regresso ao infinito, os funcionalistas propuseram a limitação pelos elementos subjetivos.
Assim, a cadeia causal deveria ser interrompida no instante em que não houvesse mais dolo ou culpa por parte do agente. Surge, assim, o tipo subjetivo.
O tipo penal, que era puramente objetivo no modelo clássico, tornou-se complexo, pois passou a conjugar elementos objetivos e subjetivos.
Além do especial fim de agir contido nas descrições típicas, todo tipo penal passou a trazer em seu bojo um elemento subjetivo relacionado à conduta (dolo ou culpa).
Com o surgimento do funcionalismo penal, os adeptos dessa corrente, animados pela teoria da imputação objetiva, argumentaram que o finalismo, ao limitar o tipo objetivo à relação de causalidade, de acordo com a teoria da equivalência dos antecedentes causais, não resolve todos os problemas inerentes à imputação (MASSON, 2020).
Com o intuito de espancar qualquer dúvida, Cléber Masson (2020) nos traz o exemplo elaborado por Claus Roxin:
“Imaginemos que ‘A’ venda heroína a ‘B’. Os dois sabem que a injeção de certa quantidade de tóxico gera perigo de vida, mas assumem o risco de que a morte ocorra. ‘A’ o faz porque o que lhe interessa é principalmente o dinheiro, e ‘B’, por considerar sua vida já estragada e só suportável sob o estado de entorpecimento. Deve ‘A’ ser punido por homicídio cometido com dolo eventual, na hipótese de ‘B’ realmente injetar em si o tóxico e, em decorrência disso, morrer? A causalidade de ‘A’ para a morte de ‘B’, bem como seu dolo eventual, encontra-se fora de dúvida. Se considerarmos a causalidade suficiente para a realização do tipo objetivo, teremos que concluir pela punição”.
Dessarte, para resolver o caso narrado, entre outros sem solução possível pelo modelo finalista, a teoria da imputação objetiva insere duas novas elementares no tipo objetivo, que deixa de ser só causalidade (MASSON, 2020).
O tipo objetivo, que para o finalismo se limita à relação de causalidade, complementado pelo tipo subjetivo (dolo e culpa), passa a conter, além da causalidade, a criação de um risco proibido e a realização do risco no resultado.
Com o surgimento da teoria da imputação objetiva, a preocupação não é, à primeira vista, saber se o agente atuou efetivamente com dolo ou culpa no caso concreto.
O problema se coloca antes dessa aferição, ou seja, se o resultado previsto na parte objetiva do tipo pode ou não ser imputado ao agente.
O estudo da imputação objetiva, dentro do tipo penal complexo, acontece antes mesmo da análise dos seus elementos subjetivos (dolo e culpa), pois, segundo Roxin, “a tarefa primária da imputação ao tipo objetivo é fornecer as circunstâncias que fazem de uma causação (como o limite máximo da possível imputação) uma ação típica, ou seja, que transformam, por exemplo, a causação de uma morte em homicídio; se uma tal ação de matar também deve ser imputada ao tipo subjetivo, considerando-se dolosa, isto será examinado mais adiante” (GRECO, 2016).
Rogério Greco ainda afirma que essa teoria surge com a finalidade de limitar o alcance da chamada teoria da equivalência dos antecedentes causais, sem, contudo, abrir mão desta última.
Por intermédio dela, deixa-se de lado a observação de uma relação de causalidade puramente material, para se valorar outra, de natureza jurídica, normativa.
A causalidade, que em um primeiro momento foi puramente natural (relação causa e efeito), ganhou um caráter subjetivo com o finalismo e desenvolveu-se ao ponto de adquirir feição normativa; esta, diferentemente daquela, não é adida ao tipo objetivo, mas o integra.
Paulo Queiroz, apud Rogério Greco, arremata que a teoria da imputação objetiva não consiste propriamente em imputar o resultado, e sim em delimitar o alcance do tipo objetivo, constituindo, na verdade, mais uma teoria da “não imputação” do que “da imputação”.
Funcionaria, no seu escólio, mais como um corretivo aplicado ao modo como a relação de causalidade vem sendo tratada pelo finalismo penal, bem como uma exigência geral da realização típica, com a adoção de critérios essencialmente normativos.
No magistério de Cléber Masson (2020), a imputação do resultado na perspectiva de aplicação da teoria da imputação objetiva deve observar a criação ou o aumento de um risco proibido pelo direito que se realiza no resultado.
Com a sua conduta, deve o agente ter criado ou contribuído para o aumento de um risco real, razão por que, como a doutrina sempre exemplifica, e é o exemplo que nos traz CAPEZ (2020), o genro que compra uma passagem de avião para a sogra e torce para que o avião caia, e ele realmente cai, não pode ter a ele imputado o resultado ocorrido, a menos que soubesse que a situação efetivamente ocorreria.
Ao comprar uma passagem aérea, não se cria um risco relevante, pois ainda que a viagem submeta os passageiros a uma situação de risco, este não é considerado proibido pelo direito, sendo, portanto, um risco tolerado.
Com a expertise que lhe é comum, Juarez Cirino dos Santos (2014):
“A imputação objetiva do resultado consiste na atribuição do resultado de lesão do bem jurídico ao autor, como obra dele. A imputação (objetiva) do resultado é analisada em dois momentos: primeiro, a criação de risco para o bem jurídico pela ação do autor; segundo, a realização do risco criado pela ação do autor no resultado de lesão do bem jurídico. Em regra, a relação de causalidade entre ação e resultado representa realização do risco criado pela ação do autor e constitui fundamento suficiente para atribuir o resultado ao autor, como obra dele; o resultado também é atribuído ao autor na hipótese de desvios causais acidentais que, na verdade, ampliam o risco de lesão do bem jurídico”.
4. Causalidade Normativa no Direito Privado
É sabido que o Direito Civil é berço dos principais conceitos utilizados no ordenamento jurídico. Como leciona Gabriel Habib (2018), o segredo para uma boa compreensão do Direito Penal é, antes de tudo, uma boa compreensão do Direito Civil – vez que ele é a regra, pois o Direito Penal funciona como o executor de reserva para quando existe a necessidade de uma proteção mais ostensiva do bem jurídico.
Reputa-se relevante traçar as distinções e semelhanças no trato da responsabilidade em matéria civil e criminal.
Em seu magistério, Daniel Carnacchioni (2021) explica que, no período clássico, a responsabilidade civil muito se assemelhou à criminal. Hoje objetivada e de cariz reparatório, a responsabilidade privada já acolheu o subjetivismo e deu ênfase à punição do ofensor (punitive damage).
A distinção começa com a tendência de objetivação da responsabilidade no campo cível. A partir do seu desenvolvimento, a responsabilidade extracontratual, aquela que decorre da violação de um dever genérico a todos imposto (dever objetivo de cuidado – neminem laedere), passou a ter origem na lei e no risco.
Os casos em que a lei prevê a responsabilidade independentemente da aferição de qualquer elemento subjetivo estão nos arts. 924 a 954 do Diploma cível. Essas situações eram anteriormente trabalhadas pela doutrina como típicos casos de culpa presumida, o que no Direito Penal seria o equivalente aos crimes omissivos impróprios.
Entretanto, com a crescente objetivação da responsabilidade e com o surgimento da Teoria do Risco, entendemos pela superação desse modelo – todos os casos previstos no Código e que tenham origem na Teoria do Risco serão resolvidos no regime jurídico da responsabilidade civil objetiva (CARNACCHIONI, 2021).
Pelo prisma da Teoria do Risco, entende-se que o exercício de uma determinada atividade requer continuidade e organização, devendo ser lícita (normal) e adequada à ordem econômica. Deve haver essencial alocação de riscos, ou seja, risco próprio da atividade e que produz danos em escala anormal se comparado com as demais atividades.
É nessa toada que se entende que a noção de causalidade na teoria do risco é normativa, no sentido de que dispensa a análise da relação de causa e efeito e do subjetivismo do autor.
Dentro dessa teoria, o foco é a vítima e o reequilíbrio do seu patrimônio.
Explica Daniel Carnacchioni (2021) que foi adotada pelo Código Civil a teoria do risco criado, não havendo simpatia pela teoria do risco proveito. Entende-se que é suficiente que a atividade desempenhada crie um risco maior que outras. Em razão da criação desse risco elevado, qualquer resultado daí decorrente deve ser imputado ao causador, independentemente de dolo ou culpa, em benefício da reparação econômica da vítima, observando o princípio da reparação integral.
Na teoria do risco proveito, proposta por Raymond Saleilles, a imputação do resultado depende da verificação da vantagem ou proveito extraído por quem explora uma atividade de risco. Dessa forma, o ônus do proveito auferido é suportar a responsabilidade pelos danos decorrentes dessa atividade de risco.
Por outro lado, na teoria do risco criado, apresentada por Louis Josserand, entende-se por risco criado aquele que dispensa a ideia de proveito ou vantagem. Basta que se desenvolva uma atividade capaz de causar elevado perigo de dano, além do razoável, para que se atribua responsabilidade objetiva no caso de dano eventual. (CAVALIERI FILHO, 2003).
Na teoria do risco criado, o que caracteriza o risco é a natureza da atividade. Conforme leciona Louis Josserand, basta que a atividade de algum modo crie um risco para alguém.
No que diz respeito às excludentes do nexo de causalidade, que se diferem das excludentes de ilicitude, há celeuma doutrinária. Prevalece que a teoria do risco integral, acolhida com cautela e ressalvas, não admite qualquer tipo de excludente, tratando-se de típico de caso de causalidade normativa. Quanto à versão da teoria do risco acolhida, relevante parcela da doutrina civilista entende pelo acolhimento das excludentes de nexo causal, notadamente: fato exclusivo da vítima, fato de terceiro e fortuito externo. (CARNACCHIONI, 2021),
Apontamentos finais
O presente trabalho teve por objetivo analisar a evolução da relação de causalidade até o conceito de causalidade normativa, atribuído pela Teoria da Imputação Objetiva.
Inicialmente foi feita uma análise dos conceitos de conduta e resultado, de cuja ligação se extrai o nexo de causalidade dos crimes de resultado, bem como foi feito breve estudo do tipo penal e das teorias que buscam explicar o fenômeno da imputação.
Nos informa Rogério Greco que a adoção da causalidade normativa enquanto técnica de resolução de problemas no âmbito do fato típico que, à luz das demais teorias, só se resolvem conforme a análise de antijuridicidade e culpabilidade, encontra resistências, embora muito atraente aos seus estudiosos. Isso porque algumas de suas soluções podem e continuam a ser dadas por outros segmentos teóricos.
Entendemos como medida mais justa a sua vinculação ao ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que diversas situações do cotidiano poderiam ser consideradas atípicas, sem a necessidade de análise da culpabilidade do agente.
Não deve ser possível que o agente, no desempenho do seu papel social, seja imputado por fato ilícito alheio que com ele tenha conexão, por exemplo. É o caso daquele sujeito que toma um taxi para assaltar um banco. Durante a viagem, informa ao motorista o seu projeto criminoso. Se o taxista continuar a dirigir rumo ao local, deixando lá o pretenso agente e a ação realmente ocorrer, seria possível responsabilizá-lo pela participação? Considerando, sobretudo, que não há a mínima possibilidade de ocorrer participação culposa em crime doloso.
Do mesmo modo, o padeiro que vende pães para um sujeito que lhe informou que os envenenaria para matar alguém, pode ser considerado partícipe pelo simples ato de vender os pães? O fato de ter conhecimento da intenção criminosa de alguma forma modificaria o seu modo de agir se não a conhecesse?
Fernando Capez (2020) informa que, segundo Wolfgang Frisch, a teoria da imputação objetiva empreendeu uma marcha triunfal sem precedentes na teoria do direito penal da Alemanha, Áustria e Suíça. Tal não ocorre, infelizmente, na América Latina, onde é pouco conhecida.
Em tempo, vivemos hoje no que Ulrich Beck (2011) chama de “sociedade do risco”. A sociedade moderna possui um estilo de vida permeado de riscos. Carros, motocicletas, eletrônicos, alimentação, arranha-céus, aviões, esportes radicais. Tais riscos figuram entre aqueles considerados permitidos, essenciais à sociedade.
Dirigir um veículo em uma velocidade de 80km/h é uma atividade de risco, porém necessária à mobilidade urbana. Todavia, o direito de dirigi-lo não significa discricionariedade absoluta por parte do motorista, que se sujeita a determinadas regras de trânsito, podendo vir a ser punido caso venha a infringi-las. A enorme quantidade de riscos da vida cotidiana fundamentou a criação dos chamados tipos de perigo abstrato (MASSON, 2020).
Fato é que mais do que a análise da causalidade física e do psiquismo do agente, é necessário transcender sobre o tipo objetivo finalista (meramente causalista) e partir para uma análise normativa. Se mesmo a aferição da tipicidade hoje goza de valoração normativa, considerando atípica a conduta que ofende de modo insignificante um bem jurídico segundo alguns critérios: a) mínima ofensividade da conduta; b) ausência de periculosidade social; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão provocada; por que não pode a relação de causalidade ser analisada pela limitação do alcance do tipo?
O Direito Penal vive de transformações. Houve uma época em que a maioria doutrinária defendia a permanência dos elementos subjetivos na culpabilidade, conservando o dolo como normativo, trazendo em si a consciência da ilicitude, e a análise do fato típico como uma mera fotografia, o que, como assinala Cleber Masson (2020), não significava dizer que havia acolhimento da responsabilidade objetiva, já que o juízo de culpabilidade era feito em ato contínuo. Houve também – como vimos com Jimenez de Asúa – quem defendesse um tipo puramente objetivo, sem qualquer preocupação com o agir finalístico.
Dessa forma, esse trabalho conclui pela esperança de expansão do estudo da teoria da imputação objetiva no Brasil e do seu reiterado acolhimento pela jurisprudência das cortes superiores.
Recepcionar a causalidade normativa no tipo objetivo não significa deixar de lado a análise da relação de causa e efeito, e sim complementá-la além do psiquismo do autor (dolo e culpa). O que defendemos é, em síntese, o aprimoramento da verificação do nexo de causalidade, restringindo o âmbito de aplicação da norma para situações que, de fato, lesem ou exponham a perigo de lesão bens jurídicos penalmente tutelados.
Referências
ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral. 9ª ed. Vol. 1. São Paulo: Editora Saraiva Jur, 2020.
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 6ª ed. Paraná: Instituto de Criminologia e Política Criminal, 2014.
TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 2ª ed. Santa Catarina, Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 18ª ed. Rio de Janeiro, Editora Impetus, 2016.
MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral. 14ª ed. São Paulo: Editora Método, Selo Gen Jurídico, 2020.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direto Penal: Parte Geral. 24ª edição. São Paulo, Editora Saraiva Jur, 2020
HABIB, Gabriel. Leis Penais Especiais: Volume Único. 11ª edição. Salvador: Juspodivm, 2019.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Responsabilidade Civil no Novo Código Civil. Revista EMERJ, TJRJ, 2003.
CARNACCHIONI, Daniel. Curso de Direito Civil: Volume Único. 4ª edição. Salvador: Juspodivm, 2021.
BECK, Ulrich. Sociedade do Risco: Rumo a uma outra modernidade. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2011.
[1] Procurador de Justiça do MPTO. Mestre em Direito Público pela UFRGS. Professor de Direito Penal na Universidade de Gurupi (UnirG).
Bacharelando em Direito pela Universidade de Gurupi (UnirG).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASTRO, Igor César Sampaio de. Causalidade normativa: a imputação do resultado naturalístico em um contexto de suposta superação do tipo objetivo finalista Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 fev 2024, 04:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59067/causalidade-normativa-a-imputao-do-resultado-naturalstico-em-um-contexto-de-suposta-superao-do-tipo-objetivo-finalista. Acesso em: 03 jul 2024.
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