RESUMO: Este trabalho apresenta estudo acerca da prisão em flagrante no Crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência previsto no Art. 24-A da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.
Palavras-chave: Prisão em flagrante. Descumprimento de Medida Protetiva de Urgência. Maria da Penha.
1 – INTRODUÇÃO
A Lei 13.641/2018 inseriu o art. 24-A na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para tipificar o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência.
A alteração legislativa teve sua razão de ser pela ausência de efetividade das medidas protetivas judiciais decretadas anteriormente no âmbito de proteção da Lei Maria da Penha, tendo em vista que a desobediência à ordem judicial não permitia, antes da alteração legislativa, a prisão em flagrante pela autoridade policial dado entendimento de atipicidade da conduta pelos tribunais superiores.
Dessa forma, o presente artigo, tem por finalidade esclarecer a atual possibilidade jurídica da prisão em flagrante pela autoridade policial decorrente do descumprimento de decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência no âmbito da Lei Maria da Penha, afastando a incidência da Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019 (abuso de autoridade) quando do ato de captura e condução coercitiva ausentes a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.
2 – DESENVOLVIMENTO
Primeiramente, a expressão ‘flagrante’ deriva do latim ‘flagrare’ (queimar), que, no léxico, significa visível. Em linguagem jurídica, flagrante seria uma característica do delito, é a infração que está queimando, ou seja, que está sendo cometida ou acabou de sê-lo, autorizando-se a prisão do agente mesmo sem autorização judicial em virtude da certeza visual do crime.
Prisão em flagrante é uma medida de autodefesa da sociedade, consubstanciada na privação da liberdade de locomoção daquele que é surpreendido em situação de flagrância, a ser executada independentemente de prévia autorização judicial (CF, art. 5º, LXI). A expressão ‘delito’ abrange não só a prática de crime, como também a de contravenção. Cabendo lembrar, que na hipótese de infração de menor potencial ofensivo, não se procede à lavratura de Auto de Prisão em Flagrante, mas sim de Termo Circunstanciado de Ocorrência, caso o agente assuma o compromisso de comparecer ao Juizado ou a ele compareça imediatamente (Lei nº 9.099/95, art. 69, parágrafo único).
Conforme ensina Renato Brasileiro, "funciona como mero ato administrativo, dispensando-se autorização judicial" sendo necessário "apenas a aparência da tipicidade, não se exigindo nenhuma valoração sobre a ilicitude e a culpabilidade". Na sistemática do CPP, o flagrante se divide em quatro momentos distintos: captura, condução coercitiva, lavratura do auto de prisão em flagrante e recolhimento à prisão (LIMA, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, pg. 1028):
a) 1ª etapa - captura: O agente encontrado em situação de flagrância (CPP, art. 302) é capturado, de forma a evitar que continue a praticar o ato delituoso, tem por função precípua resguardar a ordem pública, fazendo cessar a lesão que estava sendo cometida ao bem jurídico pelo impedimento da conduta ilícita.
b) 2ª etapa - condução coercitiva: O agente será conduzido coercitivamente à presença da autoridade policial para que sejam adotadas as providências legais;
c) 3ª etapa - lavratura do auto de prisão em flagrante: é a elaboração do auto de prisão em flagrante, no qual são documentados os elementos sensíveis existentes no momento da infração. Este ato tem como objetivo precípuo auxiliar na manutenção dos elementos de prova da infração que se acabou de cometer.
d) 4ª etapa - detenção: manutenção do agente no cárcere, que não será necessária nas hipóteses em que for cabível a concessão de fiança pela autoridade policial, ou seja, infrações penais cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos (CPP, art. 322, com redação dada pela Lei nº 12.403/11). Ao preso, depois, deve ser entregue nota de culpa, em até 24 (vinte e quatro) horas após a captura.
A prisão em flagrante apenas converte-se em ato judicial, a partir do momento em que a autoridade judiciária é comunicada da detenção do agente, a fim de analisar sua legalidade, para fins de relaxamento, necessidade de conversão em prisão preventiva, ou acerca do cabimento de liberdade provisória, com ou sem fiança.
Também se extrai do art. 301 do CPP que as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito. A autoridade policial e seus agentes têm, portanto, o dever de efetuar a prisão em flagrante, não tendo discricionariedade sobre a conveniência ou não de efetivá-la. A prisão em flagrante, para as autoridades policiais e seus agentes, configura estrito cumprimento do dever legal. Nesse sentido preconiza os ensinamentos de Fernando Capez:
“(...) O policial desempenha função de permanente vigilância e combate à criminalidade, tendo, nos termos do art. 301 do Código de Processo Penal o dever de efetuar a prisão a qualquer momento do dia ou noite, de quem quer que seja encontrado em flagrante delito (flagrante compulsório), ainda que não estando em serviço.” (CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.)
Deve a autoridade policial efetuar a prisão durante as 24 horas do dia, a situação de trabalho do policial o remete ao porte permanente de arma, já que considerado por lei constantemente atrelado aos seus deveres funcionais (Lima, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020, pg. 1032).
O art. 301 do CPP não faz qualquer distinção entre polícia ostensiva e polícia judiciária, razão pela qual se aplica a ambas o dever de efetuar a prisão em flagrante. Tendo a autoridade policial o dever de agir, sua omissão pode inclusive estabelecer responsabilidade criminal, seja pelo delito de prevaricação – desde que comprovado que assim agiu para satisfazer interesse ou sentimento pessoal, seja pelo próprio delito praticado pelo agente em situação de flagrância, se podia agir para evitar sua consumação (CP, art. 13, § 2º, “a”). Vejamos:
Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.
Em que pese a Lei 12.830/2013, atribuir ao delegado de polícia, no que se refere ao indiciamento, a análise técnico-jurídica do fato, ao policial caberá efetivar o ato administrativo de captura e condução coercitiva (1ª e 2ª etapas), visto que lhe basta a aparência de tipicidade e não pode auferir exame de ilicitude e culpabilidade, sob pena da omissão ensejar eventualmente a responsabilidade criminal pelo delito de prevaricação. Sobre o juízo de tipicidade pela autoridade policial no ato de prisão em flagrante já decidiu o Superior Tribunal de Justiça :
Informativo 441 do STJ:
A Turma concedeu parcialmente a ordem de habeas corpus a paciente condenado pelos delitos de furto e de resistência, reconhecendo a aplicabilidade do princípio da insignificância somente em relação à conduta enquadrada no art. 155, caput, do CP (subtração de dois sacos de cimento de 50 kg, avaliados em R$ 45). Asseverou-se, no entanto, ser impossível acolher o argumento de que a referida declaração de atipicidade teria o condão de descaracterizar a legalidade da ordem de prisão em flagrante, ato a cuja execução o apenado se opôs de forma violenta. Segundo o Min. Relator, no momento em que toma conhecimento de um delito, surge para a autoridade policial o dever legal de agir e efetuar o ato prisional. O juízo acerca da incidência do princípio da insignificância é realizado apenas em momento posterior pelo Poder Judiciário, de acordo com as circunstâncias atinentes ao caso concreto. Logo, configurada a conduta típica descrita no art. 329 do CP, não há de se falar em consequente absolvição nesse ponto, mormente pelo fato de que ambos os delitos imputados ao paciente são autônomos e tutelam bens jurídicos diversos. HC 154.949-MG, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 3/8/2010.
As hipóteses que autorizam a prisão em flagrante de determinada pessoa estão previstas nos incisos I, II, III e IV do art. 302 do Código de Processo Penal:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
- está cometendo a infração penal;
- acaba de cometê-la;
- é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
- é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
Art. 303. Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.
Quanto à possibilidade de eventual responsabilização do policial condutor do auto de prisão, deve-se ter em mente que o rol acima é taxativo, modelando e qualificando situações de flagrância, de modo a afastar eventual violência ao direito constitucional de locomoção. Esse rol, por conseguinte, não comporta o emprego de analogia, nem tampouco de interpretação extensiva, evidenciando-se constrangimento ilegal à liberdade de locomoção caso o agente se veja preso em flagrante em situação fática que não se amolde às hipóteses previstas no art. 302, quando, então, será cabível o relaxamento da prisão (CF, art. 5º, LXV).
No que tange a dúvida da ação do policial ao emitir a ordem de prisão em flagrante ser ato capaz de incidir a Lei de crimes de abuso de autoridade 13.869/2019 (lei de abuso de autoridade), cabem os seguintes apontamentos.
O Art. 9° tipifica a conduta de "decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais", acontece que nessa hipótese exige-se fim específico de agir previsto no art. 1 º, §1 º, da Lei n. 13.869/19, ou seja, a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal, exigindo se também que a ordem seja manifestamente ilegal (LIMA, Renato Brasileiro. Legislação Penal Especial Comentada, 8a edição. Juspodivm, 2020, pg. 82):
"É fora de dúvida que todo e qualquer agente público, pelo menos em tese, pode decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais. Basta imaginar que um Promotor de Justiça, teratologicamente, decrete a prisão temporária de alguém, ou que um Delegado de Polícia determine a prisão em flagrante de uma pessoa que não esteja em situação de flagrante delito (CPP, art. 302, I, II, III e IV). Ora, em tais hipóteses, parece não haver qualquer dúvida quanto à possibilidade de tipificação do crime do art. 9°, caput, desde que presente o especial fim de agir do art. 1 º, §1 º, da Lei n. 13.869/19
(...)
Levando-se em consideração a vedação do crime de hermenêutica constante do art. 1°, §2°, o ideal é concluir que eventual divergência na interpretação da lei ou na avaliação de fatos e provas JAMAIS terá o condão de caracterizar o crime do art. 9°, caput é indispensável que a medida decretada seja teratológica, ou seja, que se trate de uma ilegalidade chapada, manifesta, flagrante.
Pune-se o crime a título de dolo. Exige-se, ademais, a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro; ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal (art. 1 º, §1 °), sendo certo que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade (art. 1 º, §2°). Não se admite a modalidade culposa."
No intuito de se evitar que a conduta de captura e condução venham a ser tipificadas nos crimes referidos acima, passa-se a esclarecer as situações de flagrante.
Entende-se em flagrante próprio, perfeito, real ou verdadeiro, o agente que é surpreendido cometendo uma infração penal ou quando acaba de cometê-la (CPP, art. 302, incisos I e II). Assim, caso o agente seja surpreendido no momento em que está praticando o verbo núcleo do tipo penal (ex: subtraindo coisa alheia móvel), sua prisão em flagrante poderá ser efetuada. Ainda que, posteriormente, seja reconhecida a atipicidade material de sua conduta (v.g., por força do princípio da insignificância), isso não tem o condão de afastar a legalidade da ordem de prisão em flagrante, porquanto a análise que se faz, no momento da captura do agente, restringe-se à análise da tipicidade formal (STJ, 5ª Turma, HC 154.949/MG, Rel. Min. Felix Fischer, j. 03/08/2010, DJe 23/08/2010.)
O flagrante impróprio, também chamado de imperfeito, irreal ou quase-flagrante, ocorre quando o agente é perseguido logo após cometer a infração penal, em situação que faça presumir ser ele o autor do ilícito (CPP, art. 302, inciso III). Exige o flagrante impróprio a conjugação de 3 (três) fatores: a) perseguição (requisito de atividade); b) logo após o cometimento da infração penal (requisito temporal); c) situação que faça presumir a autoria (requisito circunstancial). Impõe-se, inicialmente, verificar o significado da expressão logo após. Por logo após compreende-se o lapso temporal que permeia entre o acionamento da autoridade policial, seu comparecimento ao local e colheita de elementos necessários para que dê início à perseguição do autor. Por isso, tem-se entendido que não importa se a perseguição é iniciada por pessoas que estavam no local ou pela polícia, acionada por meio de ligação telefônica. (STJ, 5ª Turma, HC 83.895/CE, Relatora Ministra Jane Silva, Desembargadora convocada do TJ/MG, DJ 05/11/2007 p. 328; STJ, 5ª Turma, HC 24.510/MG, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 02/06/2003 p. 310; STJ, 5ª Turma, HC 8.303/ SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, DJ 16/08/99 p. 78)
Nessa esteira, como se pronunciou o STJ, “a sequência cronológica dos fatos demonstram a ocorrência da hipótese de prisão em flagrante prevista no art. 302, inciso III, do Código de Processo Penal, denominada pela doutrina e jurisprudência de flagrante impróprio, ou quase-flagrante. Hipótese em que a polícia foi acionada às 05:00 horas, logo após a prática, em tese, do delito, saindo à procura do veículo utilizado pelo paciente, de propriedade de seu irmão, logrando êxito em localizá-lo por volta das 07:00 horas do mesmo dia, em frente à casa de sua mãe, onde o paciente se encontrava dormindo. Do momento em que fora acionada até a efetiva localização do paciente, a Polícia levou cerca de 02 (duas) horas, não havendo dúvidas de que a situação flagrancial se encontra caracterizada, notadamente porque foram encontrados os brincos da vítima o interior do veículo utilizado para a prática da suposta infração penal, fazendo presumir que, se infração houve, o paciente seria o autor” (STJ, 5ª Turma, HC 55.559/GO, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ 29/05/2006 p. 284. Com entendimento semelhante: STJ, 5ª Turma, HC 126.980/GO, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 06/08/2009, DJe 08/09/2009).
O que importa é que a perseguição tenha início logo após o cometimento do fato delituoso, podendo perdurar por várias horas, desde que seja ininterrupta e contínua, sem qualquer solução de continuidade. Carece de fundamento legal, portanto, a regra popular segundo a qual a prisão em flagrante só pode ser levada a efeito em até 24 (vinte e quatro) horas após o cometimento do crime. Isso porque, nos casos de flagrante impróprio, desde que a perseguição seja ininterrupta e tenha tido início logo após a prática do delito, é cabível a prisão em flagrante mesmo após o decurso desse lapso temporal. O entendimento na Corte Cidadã se encontra pacificado:
"AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. ROUBO CIRCUNSTANCIADO E FORMAÇÃO DE QUADRILHA. FLAGRANTE IMPRÓPRIO. PRISÃO PREVENTIVA. GRAVIDADE CONCRETA. PERICULOSIDADE SOCIAL. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. IRRELEVÂNCIA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
1. O habeas corpus não pode ser utilizado como substitutivo de recurso próprio, a fim de que não se desvirtue a finalidade dessa garantia constitucional, com a exceção de quando a ilegalidade apontada é flagrante, hipótese em que se concede a ordem de ofício.
2. Nos casos de flagrante impróprio, desde que a perseguição seja ininterrupta e tenha início logo após a prática do delito, é permitida a prisão em flagrante mesmo após o decurso do prazo definido popularmente de 24 horas. No caso, o Tribunal de origem consignou que "ele foi perseguido pela vítima, logo após o delito, bem como foi preso em flagrante na posse de parte do produto roubado" (e-STJ fl. 85). Eventual desconstituição desse entendimento depende de exame aprofundado de fatos e provas, providência incompatível com os estreitos limites cognitivos do habeas corpus.
3. Além disso, esta Corte tem entendimento reiterado segundo o qual a discussão acerca de nulidade da prisão em flagrante fica superada com a conversão do flagrante em prisão preventiva, haja vista a formação de novo título a embasar a custódia cautelar" (AgRg no HC 608.468/MG, Quinta Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 15/03/2021)"
"AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. INDEFERIMENTO LIMINAR. IMPETRAÇÃO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO CABÍVEL. UTILIZAÇÃO INDEVIDA DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. VIOLAÇÃO AO SISTEMA RECURSAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO. ACUSADO PERSEGUIDO LOGO APÓS A PRÁTICA CRIMINOSA. FLAGRANTE IMPRÓPRIO.COAÇÃO ILEGAL NÃO CONFIGURADA.
1. A via eleita revela-se inadequada para a insurgência contra o ato apontado como coator, pois o ordenamento jurídico prevê recurso específico para tal fim, circunstância que impede o seu formal conhecimento.
2. O artigo 302 do Código de Processo Penal estabelece as hipóteses de flagrante delito, sendo que nos casos dos incisos I e II, tem-se o chamado flagrante próprio, em que o agente está cometendo o crime ou acabou de praticá-lo, ao passo que nos incisos III e IV presume-se a autoria em razão das circunstâncias que o agente se encontra, tratando-se dos chamados flagrantes impróprio (inciso III) ou presumido (inciso IV). Doutrina.
3. No caso dos autos, os policiais iniciaram a perseguição aos suspeitos logo após a prática criminosa, logrando encontrar o paciente após a esposa da vítima haver informado que o ofendido, seria um dos autores do delito, estando-se diante de flagrante impróprio." (AgRg no HC 601.797/RS, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 09/09/2020)"
Por fim, o flagrante presumido, ficto ou assimilado, é aquele em que o agente é preso logo depois de cometer a infração, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração (CPP, art. 302, IV). Nesse caso, a lei não exige que haja perseguição, bastando que a pessoa seja encontrada logo depois da prática do ilícito com coisas que traduzam um veemente indício da autoria ou participação no crime.
Uma vez fixadas as premissas sobre a situação flagrancial, passamos a analisar se o descumprimento de medidas protetivas de urgência de decisões judiciais baseadas na Lei 11.340/06 daria lastro para prisão em flagrante e registro em ocorrência policial.
Cabe salientar que a Lei 13.641/2018 inseriu o art. 24-A na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para tipificar o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência. Para entender a mens legis, essencial remontar a normogenética da alteração legislativa exposta na justificação do projeto de Lei nº 173, de 2015, disponibilizada no Diário da Câmara dos Deputados n. 023 de 24/02/2015, na qual é possível perceber que o legislador se ressentia da ausência de efetividade nos casos envolvendo violência doméstica ante ao entendimento judicial adotado à época de atipicidade, o que impedia a prisão em flagrante:
"Esse entendimento esvaziou muito da efetividade da Lei Maria da Penha, pois no caso de flagrante de desobediência à ordem judicial a autoridade policial não poderá realizar a prisão em flagrante, pois se trata de fato atípico, cabendo-lhe tão somente documentar a situação e representar pela posterior prisão preventiva, o que usualmente demorará vários dias, deixando a mulher em situação de absoluta desproteção. Nesse contexto, torna-se imperiosa a tipificação específica da conduta de descumprimento da ordem judicial que defere medidas protetivas de urgência."
O Parecer n. 111/2017 da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal sobre o Projeto de Lei da Câmara nº 4, de 2016 (Projeto de Lei nº 173, de 2015, na Casa de origem) se manteve no mesmo sentido:
“A proteção da mulher em situação de violência doméstica e familiar, todavia, deve estar imune às vicissitudes da justiça. É exatamente essa preocupação que se extrai do PLC nº 4, de 2016. Ao tipificar como crime a desobediência à ordem que impõe medida protetiva, a proposição PERMITE A PRISÃO EM FLAGRANTE DO AGRESSOR, aumentando, assim, o campo de proteção da mulher. E ainda o faz na medida certa, pois comina pena similar a do crime de desobediência à decisão judicial sobre perda e suspensão de direito, previsto no art. 359 do Código Penal.”
A preocupação do legislador culminou na inserção do § 2º, art. 24-A na Lei Maria da Penha (11.340/2006) por meio Lei nº 13.641/2018, tornando plenamente possível a prisão em flagrante decorrente do descumprimento de decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência restrita às hipóteses naquela lei, não restando dúvidas acerca de sua necessidade e do respectivo registro em ocorrência policial:
Do Crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência
Art. 24-A. Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.
§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu as medidas.
§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.
§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.”
Cabe salientar, que de acordo do Superior Tribunal de Justiça, não incide o art. 24-A da Lei Maria da Penha aos fatos anteriores à publicação da Lei 13.641/18, assim como a inocorrência do crime de desobediência:
Novatio legis in pejus – tipo penal específico para conduta de desobediência de medida protetiva – irretroatividade - STJ
“(...) 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que o descumprimento de medidas protetivas impostas nos termos a Lei 11.340/06 não configura o delito do art. 359 do Código Penal.
2. Em se tratando de novatio legis in pejus, cuja irretroatividade se impõe, conforme os arts. 5º, XL, da CF e 1º do CP, não incide o art. 24-A da Lei Maria da Penha aos fatos anteriores à publicação da Lei 13.641/18, que criou tipo penal específico para a conduta de desobedecer decisões judiciais que impõem medidas protetivas.
3. Agravo regimental improvido”. (grifos no original) AgRg no AREsp 1216126/MG
Descumprimento de medida protetiva antes da Lei 13.641/2018 – inocorrência do crime de desobediência
“(...)
1. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o crime de desobediência é subsidiário, configurando-se apenas quando, desrespeitada ordem judicial, não existir sanção específica ou não houver ressalva expressa no sentido da aplicação cumulativa do Código Penal.
2. Considerando-se a existência de medidas próprias na Lei n.º 11.340/2006 e a cominação específica do art. 313, inciso III, do Código de Processo Penal, o descumprimento de medidas protetivas de urgência não configura o crime de desobediência.
3. Agravo regimental desprovido. Ordem concedida de ofício para absolver o acusado pela imputação do artigo 359 do Código Penal, por atipicidade da conduta”.
AgRg no AREsp 539.828/MG
Em que pese prima facie a conduta de descumprimento de outras medidas de proteção configurar supostamente o crime de desobediência, a supramencionada Corte "firmou o entendimento de que para a caracterização do crime de desobediência não é suficiente o simples descumprimento de decisão judicial, sendo necessário que não exista cominação de sanção específica" (STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 1.477.671 - DF, Relator Min. JORGE MUSSI, julgado em 18 de dezembro de 2014).
O novo crime apenas é aplicável para o descumprimento de MPU prevista na LMP, conforme previsão expressa do art. 24-A, caput. Portanto, diante do princípio da taxatividade penal e a proibição de analogia in malam partam, não configura crime o descumprimento de outras medidas de proteção previstas no Estatuto da Criança e Adolescente, Estatuto do Idoso, Estatuto do Deficiente, ou outras legislações, ou ainda o descumprimento das cautelares criminais previstas no art. 319 do CPP para crimes não abrangidos pela LMP.
3 – CONCLUSÃO
Conforme visto, apesar de antes da alteração legislativa ocasionada pela Lei 13.641/2018, o flagrante de desobediência à ordem judicial decorrente do Crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência no âmbito de proteção da Lei Maria da Penha não permitir, à época, a prisão ante a atipicidade da conduta, não mais subsiste tal entendimento.
Atualmente, o art. 24-A na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), tipifica expressamente o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, autorizando a prisão em flagrante pela autoridade policial, sem que o ato de captura e condução coercitiva enseje conduta tipificada no art. 9º na Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019 (abuso de autoridade) caso ausente a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal na forma do art. 1º, §1 º da mesma lei.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 27 de maio de 2024.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em 27 de maio de 2024.
LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 27 de maio de 2024.
LEI Nº 13.641, DE 3 DE ABRIL DE 2018.. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13641.htm#art2. Acesso em 27 de maio de 2024.
LIMA, Renato Brasileiro de Manual de processo penal: volume único – 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1417736. Acesso em 27 de maio de 2024.
https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7218060&disposition=inline. Acesso em 27 de maio de 2024.
Policial Penal do Distrito Federal. Bacharel em direito pelo Centro Universitário de Brasília e Pós graduado em Gestão Estratégica da Segurança Pública. Ex-Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COELHO, Thiago de Oliveira Andrade. A prisão em flagrante no Crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência previsto no Art. 24-A da Lei nº 11.340/2006 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 jun 2024, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/65608/a-priso-em-flagrante-no-crime-de-descumprimento-de-medidas-protetivas-de-urgncia-previsto-no-art-24-a-da-lei-n-11-340-2006. Acesso em: 23 nov 2024.
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