ARISSON CARNEIRO FRANCO[1]
(orientador)
RESUMO: O trabalho de cuidado envolve, além do cuidado de pessoas, o cuidado do lar e os afazeres domésticos, exercido majoritariamente por mulheres que dedicam um tempo significativo de sua rotina à essas atividades. Apesar de ser um serviço extremamente importante para a sociedade e economia, ainda existem diversos entraves jurídicos acerca do seu reconhecimento no sistema previdenciário. Em virtude disso, o presente artigo científico possui o objetivo de analisar a possibilidade do reconhecimento do trabalho de cuidado não remunerado, exercido em dupla jornada pelas mulheres, para fins previdenciários no Brasil, considerando que, atualmente, apenas se reconhece legalmente o exercido em regime de exclusividade. A metodologia empregada para tanto, trata-se da abordagem qualitativa, exploratória e bibliográfica, por ter sido fundamentada na legislação vigente, livros e artigos científicos encontrados em base de dados como o Google Scholar, Scielo e Capes. Diante disso, ao longo do estudo, foi possível concluir que a maneira mais viável de reconhecer o trabalho de cuidado exercido em dupla jornada, seria por meio da criação de uma norma legal que supra a lacuna existente no ordenamento jurídico atual, considerando a realidade de diversas mulheres.
Palavras-Chave: Trabalho de cuidado. Desigualdade de gênero. Precarização. Seguridade Social.
Abstract: Care work involves, in addition to caring for people, caring for the home and household chores, performed mostly by women who dedicate a significant amount of time in their routine to these activities. Despite being an extremely important service for society and the economy, there are still several legal obstacles regarding its recognition in the social security system. As a result, this scientific article aims to analyze the possibility of recognizing unpaid care work, performed on a double shift by women, for social security purposes in Brazil, considering that, currently, it is only legally recognized that performed under of exclusivity. The methodology used for this is a qualitative, exploratory and bibliographic approach, as it was based on current legislation, books and scientific articles found in databases such as Google Scholar, Scielo and Capes. Therefore, throughout the study, it was possible to conclude that the most viable way to recognize the care work performed in double shifts would be through the creation of a legal norm that fills the gap in the current legal system, considering the reality of several women.
Keywords: Care work. Gender inequality. precariousness. Social Security.
1 INTRODUÇÃO
O trabalho de cuidado trata-se, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE) de atividades que envolvem além do cuidado de pessoas, os afazeres domésticos, como preparar ou servir alimentos, arrumar a mesa ou lavar louça; cuidar da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos; fazer pequenos reparos ou manutenção do domicílio, do automóvel, de eletrodomésticos ou outros equipamentos; limpar ou arrumar o domicílio, a garagem, o quintal ou o jardim; cuidar da organização do domicílio (pagar contas, contratar serviços, orientar empregados); fazer compras ou pesquisar preços de bens para o domicílio; cuidar dos animais domésticos; entre outras tarefas (IBGE, 2019).
De maneira semelhante, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) define o trabalho de cuidado ou doméstico como o trabalho não remunerado que produz bens e serviços para o consumo doméstico, “incluindo a arrecadação de lenha e combustível, buscar água, cozinhar, limpar, cuidar de crianças, idosos e outros dependentes” (ILO, 2016). Diante disso, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual (PNAD) realizada pelo IBGE em 2019, as mulheres brasileiras dedicam uma médida de 21,4 horas aos afazeres domésticos e/ou cuidado de pessoas, especialmente aos filhos e idosos, sendo que aquelas que não possuem nenhuma ocupação profissional dedicam em média de 24 horas semanais, 11,9 horas a mais que os homens; enquanto que as que possuem ocupação profissional diversa, ainda dedicam 18,5 horas semanais, 8,1 horas a mais que os homens (IBGE, 2019).
Apesar das jornadas de trabalho serem devidamente positivadas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e estarem inclusas no conceito de trabalho, o trabalho de cuidado exercido majoritariamente por mulheres em dupla jornada ainda é invisibilizado e desvalorizado no Brasil, tendo em vista a ausência do reconhecimento previdenciário e trabalhista nesta seara, seja para acrescer o tempo de contribuição ou mesmo para aumentar o valor efetivamente pago pela previdência social quando as mesmas decidem se aposentar, ainda que suas atividades gerem valor social e econômico para o país, evidencia-se que embora o trabalho de cuidado tenha uma relevância expressiva para a sociedade e economia, ainda há diversos entraves sociais e jurídicos para caracteriza-lo como um trabalho, de fato, produtivo.
Diante disso, o presente trabalho possui o objetivo de investigar a possibilidade do reconhecimento previdenciário deste labor exercido em dupla jornada pelas mulheres, que são muitas vezes, discriminadas em razão do seu gênero, raça e etnia. Isso acontece justamente por não haver qualquer valorização socioecnômica do trabalho, acentuando sua invisibilidade no cenário trabalhista e a pobreza feminina. A proposta metodológica empregada para tanto, trata-se da abordagem qualitativa, visto que os dados obtidos ao longo da pesquisa foram interpretados de maneira subjetiva. Em relação aos objetivos, caracteriza-se como uma pesquisa exploratória, que possui a finalidade de proporcionar uma familiaridade maior com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito, uma vez que já existem diversos estudos sobre o trabalho de cuidado, tanto no âmbito jurídico como em outras áreas da sáude. A sustentação teórica do trabalho denomina-se bibliográfica, por ter sido desenvolvida com base em materiais elaborados previamente, como livros e artigos científicos, encontrados em bases de dados como o Google Scholar, Scielo e Capes.
Inicialmente, o trabalho versará sobre o contexto histórico-juridico da (des)igualdade de gênero, a fim de compreender a conjuntura estrutural e o valor do trabalho na sociedade brasileira, em seguida, torna-se oportuno tecer considerações gerais acerca do trabalho de cuidado e a sua relação com a seguridade social, e por fim, discute-se sobre os entraves para o reconhecimento previdenciário do trabalho de cuidado. Assim, espera-se que a pretensa pesquisa agregue conhecimento à comunidade jurídica sobre o trabalho de cuidado e suas implicações sociais e jurídicas.
2 A (DES)IGUALDADE DE GÊNERO NA SOCIEDADE BRASILEIRA: A CONJUNTURA ESTRUTURAL E O VALOR DO TRABALHO
Todos os seres humanos são iguais em sua essência, entretanto, as características biológicas que nos unem, também são as mesmas que nos separam. Homens e mulheres encaram o mundo de maneira completamente diferente desde o nascimento. Os reflexos da desigualdade surgem desde a infância, já que ao nascermos já somos tratados de maneira distinta. Apesar desse fato não ser novidade para ninguém, é a partir disso que as crianças começam a aprender e a normalizar as diferenças entre os gêneros, enquanto os meninos são educados para serem fortes e destemidos, as meninas crescem ouvindo que devem se casar e serem mães (JESUS, 2012).
As relações entre ambos os sexos representam uma construção social e cultural que fazem parte de um ciclo contínuo da perpetuação do poder de homens e subjugação de mulheres nas mais diversas culturas. Consequentemente, observa-se que as diferenças de gênero se refletem de forma mais intensa nas relações de trabalho. Culturalmente, perdura a percepção de que há uma suposta incapacidade feminina para assumir empregos formais, sendo apenas consideradas úteis para serem mães e esposas, tornando-se suscetíveis a mão-de-obra desvalorizadas e precárias, com poucos direitos e salários desiguais. Assim, a pauta sobre a desigualdade entre homens e mulheres é uma questão muito antiga, que não está presente apenas na sociedade brasileira, mas no mundo inteiro. Diante disso, compreende-se que os reflexos da cultura patriarcal impactam diretamente na inserção e permanência da mulher no mercado de trabalho, tornando mais difícil, a ruptura dos papéis de gênero na sociedade. A divisão sexual do trabalho é reflexo da distinção entre os sexos.
As mulheres estão mais presentes em ambientes cujo cuidado é o objetivo principal, como por exemplo a saúde, educação e atividades domésticas. Por outro lado, em sua maioria, os homens possuem cargos relacionados à ciência e tecnologia. Assim, a divisão sexual assume:
(...) a forma de divisão do trabalho social derivada das relações de gênero e sexo, e como máxima fundamental destina prioritariamente aos homens a esfera produtiva e às mulheres a esfera reprodutiva e, além disso, estabelece que os homens ocupem as funções de forte valor social agregado, como o espaço público, político, militar, religioso e jurídico (KERGOAT, 2010, p. 43).
Há, dessa maneira, uma ligação intrínseca entre a mulher e tarefas do lar, escancarando uma divisão clara e sexual do trabalho em escala mundial. Vê-se que a desigualdade no âmbito laboral possui dois estigmas centralizadores: o princípio da separação, no qual tem-se a percepção de que há trabalhos próprios para homens e mulheres e o princípio da hierarquização, que estabelece que um trabalho desempenhado por um homem “vale” mais do que um trabalho desempenhado por uma mulher. Tais entendimentos são aplicados mediante legitimações ideológicas biologizantes que reduzem o trabalho à papéis sociais sexuados, que remetem ao destino natural da espécie (KERGOAT, 2010). As profissões consideradas historicamente como masculinas são mais valorizadas se comparadas com profissões consideradas femininas como, por exemplo, dançarina, enfermeira, cozinheira, dentre outras (CHIES, 2010). Somado a isso, a força de trabalho feminina é, por muitas vezes, inferiorizada a partir do momento que mulheres ocupam cargos em profissões tidas como masculinas, devido a construção social que relaciona atividades que necessitam de força, resistência e liderança apenas a homens. Chies (2010) reforça ainda que, o cenário de dualidade que inferioriza o papel da mulher na sociedade é constituído por um ciclo que perpetua e normaliza tal ideologia.
Dessa forma, a desigualdade é vista como uma condição inerente ao ser humano e não como um processo histórico-cultural passível de transformação. Ao longo dos anos, o cenário melhorou: mais oportunidades, salários mais igualitários, mais incentivo. Cada dia mais as empresas passam a entender a importância do papel feminino na sociedade, tanto como reprodutora, quanto profissional. Entretanto, diversos dados demonstram que ainda estamos longe do cenário ideal e que há um longo caminho a ser percorrido. Atualmente, as mulheres representam 53,2% da população em idade ativa (PIA) – população com 14 anos ou mais de idade – de acordo com o Boletim Mulheres no Mercado de Trabalho (MMT). A referida pesquisa realiza um compilado de dados trimestrais da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar Contínua (PNAD Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com foco na participação feminina no mercado de trabalho. Mesmo sendo maioria na PIA, são as mulheres que representam grande parte das pessoas fora da força de trabalho, isto é, 64,2% (IBGE, 2021).
Em conformidade com a pesquisa, os homens representam a maior parte da força de trabalho brasileira. Dentre as pessoas com 15 ou mais de idade, 73,7% dos homens estão inseridos no mercado de trabalho. Todavia, apenas um pouco mais da metade das mulheres da mesma faixa etária, independe da raça, possui uma ocupação formal. Além disso, omite-se ainda, a informação de que:
As mulheres realmente laboram mais tempo que os homens: considerando-se que as mulheres trabalham em casa cerca de 7,5 horas a mais que os homens por semana, terão laborado cerca de 5,4 anos a mais do que os homens durante os cerca de 30 anos de vida laboral (IPEA, 2021, online).
É fato que hoje as mulheres representam, em número, a maior parcela dos beneficiários da Previdência (55,8% de mulheres e 44,2% de homens), no entanto recebem parcelas significativamente menores do que os homens. Em relação à contribuição, isto é, ao pagamento da previdência social, a participação das mulheres foi de 55,7% na quantidade e 50,9% no valor das contribuições, entretanto, o valor médio da contribuição dos homens (R$ 1.266,07) foi 21,1% maior do que o das mulheres (R$ 1.045,59) (BRASIL/MF/DATAPREV, 2015). Quanto ao valor do benefício recebido pelas mulheres, a diferença se acentua. O “valor médio dos créditos urbanos emitidos aos homens foi 24,6% maior que o das mulheres (respectivamente R$ 1.255,68 e R$ 1007,83)”. Já aos trabalhadores e trabalhadoras rurais, o “valor médio dos créditos emitidos para os homens (R$ 704,84) foi pouco superior que o das mulheres (R$ 704,10)” (BRASIL/MF/DATAPREV, 2015).
Para reforçar ainda mais o cenário da desigualdade entre os gêneros no Brasil a pesquisa do IBGE 2021 demonstra que os homens ocupam a maioria dos cargos de gerência no país. No Brasil, 62,6% dos cargos gerenciais eram ocupados por homens e 37,4% pelas mulheres, em 2019 (IBGE, 2021). As empresas muitas vezes creem que as mulheres não são capazes de conciliar a vida familiar e do trabalho, entretanto, isso ocorre porque, além do trabalho externo, também realizam tarefas domésticas, sem ou com pouca participação masculina, não restando tempo de descanso indispensável para a manutenção da saúde. Dessa forma, estas são exploradas duplamente pelo capital. As mulheres de classes mais altas que podem abdicar deste trabalho, não o fazem em razão de uma divisão igualitária com seu cônjuge ou familiares, e sim por causa da contratação de uma outra mulher, que é, na maioria das vezes, negra. Assim, depreende-se que a análise dos dados expostos torna evidente que há uma reiteração dos estereótipos de gênero nas relações de trabalho e uma desigualdade histórica de difícil reparação.
3 TRABALHO DO CUIDADO E A SEGURIDADE SOCIAL: MECANISMOS DE EFETIVIDADE DOS DIREITOS
O trabalho de cuidado ou também conhecido pelo termo care ou care work, é um exemplar das desigualdades imbricadas de gênero, classe e raça que demonstram que a história social do trabalho doméstico no Brasil e no mundo possuem uma abordagem insuficiente, por ser exclusivamente relacionada às dicotomias do trabalho masculino e feminino, produtivo e improdutivo, público e privado, afetuoso e não afetuoso que não correspondem com a magnitude do ato que é cuidar de alguém (HIRATA, 2016). Isso se dá, principalmente pelo fato de ser visto historicamente como um trabalho destinado às mulheres, majoritariamente negras e pobres, exercido no interior do espaço doméstico e na esfera privada, de forma gratuita e realizada por amor. Forma-se, dessa maneira, em seu conceito geral, por uma série de atividades que garantem a reprodução social do sistema e envolve tarefas relacionadas ao cuidado de crianças, atividades domésticas e do cuidado com idosos ou deficientes físicos e mentais (GELINSKI; PEREIRA, 2011).
No Brasil, estudos relacionados ao trabalho de cuidado são relativamente novos e atrelam-se mais a temas voltados para o envelhecimento da população e a necessidade de cuidados para essas pessoas, fenômeno que se denomina por “crise do cuidado” que cresce não somente no Brasil como também em países como Japão e a Itália (HIRATA, 2016). Ainda assim, as noções que o termo carrega historicamente se perpetuam no país de diversas formas:
(...) se é certo que cuidado, ou atividade do cuidado, ou mesmo ocupações relacionadas ao cuidado, como substantivos, foram introduzidos mais recentemente na língua correspondente, as noções de ‘cuidar’ ou de ‘tomar conta’ têm vários significados, sendo expressões de uso cotidiano. (...) O ‘cuidar da casa’ (ou ‘tomar conta da casa’), assim como o ‘cuidar das crianças’ (ou ‘tomar conta das crianças’) ou até mesmo o ‘cuidar do marido’, ou ‘dos pais’, têm sido tarefas exercidas por agentes subalternos e femininos, os quais (talvez por isso mesmo) no léxico brasileiro têm estado associados com a submissão, seja dos escravos (inicialmente), seja das mulheres, brancas ou negras (posteriormente) (GUIMARÃES; HIRATA; SUGITA, 2012, p. 82).
Apesar da compreensão mais comum de que o cuidado se relaciona às necessidades e vulnerabilidades de determinados grupos (crianças e idosos), o conceito de cuidado vai além, por se relacionar a concepção de dependência para os seres humanos de maneira geral. Esse é o motivo pelo qual faz-se necessário frisar que essa atribuição gerada às mulheres surge de um contexto histórico de desigualdade de gênero e raça. Assim, o cuidado da casa e da família é predominantemente considerada como uma função feminina, pouco ou nada valorizada, e por mais que os avanços tecnológicos e o desenvolvimento social tenham surgido desde a época da revolução industrial, até o presente momento, as divisões sexuais do trabalho doméstico e atribuição deste às mulheres, em realidade, continua intacta (HIRATA, 2016).
Diante de uma perspectiva progressista em direção à igualdade de gênero, compreende-se que o fato da mulher realizar a maior parte do trabalho não remunerado durante todos esses anos, não é normal e nem natural de uma sociedade que depende disso, visto que, se não houvesse ninguém para se dedicar a isto, comunidades, locais de trabalho e economia inteiras estariam estagnadas. O trabalho doméstico constitui-se, portanto, em um dos pilares em que o sistema econômico atual se apoia e sem ele seria derrubado (PICCHIO, 2018).
Por todo exposto, compreende-se que o trabalho de cuidado é uma atividade de gênero atribuída as mulheres, entendida como biologicamente natural e historicamente desenvolvida da relação entre patriarcado e capitalismo. Essa atribuição do trabalho reprodutivo doméstico não remunerado às mulheres permite constatar que a marginalização das mulheres e seu funcionamento como força de trabalho secundário é uma das formas de opressão de gênero utilizadas pelo sistema e responsável pela sua manutenção.
Sabe-se que a previdência social se fundamenta sobre os princípios da universalidade, solidariedade e de distributividade, e possui, portanto, o condão de garantir a segurança social às/aos trabalhadoras/es diante das fatalidades inerentes ao mundo do trabalho capitalista, calcado na exploração. Visando, minimamente, proteger as/os trabalhadoras/es em algumas hipóteses de cessação do salário ou remuneração – como em caso de doença, morte, dependência, desemprego, velhice. Assim, é ligada diretamente à conjuntura do mercado, à exploração laboral e ao esgotamento da força de trabalho, refletindo também as especificidades da discriminação de gênero que marcam o capitalismo patriarcal brasileiro. Entretanto, o que se observa quando se discute o trabalho de cuidado é o contrário disso, tendo em vista que as mulheres possuem menores salários, maior carga/tempo de trabalho, ocupam postos de trabalho precário e rotativos, são atingidas em maior escala pelo desemprego e informalidade, não possuem qualquer proteção diante das condições desgastantes de trabalho as quais muitas se submetem, dentre muitos outros fatores a serem discutidos no tópico seguinte.
4 OS ENTRAVES PARA O RECONHECIMENTO PREVIDENCIÁRIO DO TRABALHO DE CUIDADO
As discussões acerca do reconhecimento do cuidado como trabalho no Brasil, ganharam relevância a partir dos estudos elaborados por Helena Hirata. Em sua pesquisa, a autora compara o trabalho de cuidado realizados no Brasil, França e Japão por meio da análise da divisão sexual e internacional do trabalho e das desigualdades e discriminação que influenciam o trabalho de cuidado nesses países.
A linha de pensamento que abarca o cuidado como trabalho iniciou-se em 1970 e 1980, por meio de estudos feministas que introduziram as “categorias do sexo e das relações sociais de sexo no âmago da análise das relações de trabalho, assalariado e doméstico” de maneira a contribuir para os “conhecimentos renovados sobre o trabalho” (HIRATA; KERGOAT, 2008).
O exercício da força de trabalho para o mercado externo ao ambiente doméstico passou a ser visto como atividade produtora de lucros à economia no sistema capitalista, sendo o trabalho doméstico considerado como um trabalho efetivo apenas quando realizado em prol de terceiros; enquanto que aquele que é praticado no próprio lar, foi considerado ao longo dos anos, em razão desse cenário de desigualdades, como uma mera atividade invisibilizada aos olhos econômicos, tendo em vista sua função inerente e obrigatória a mulher.
Até os dias atuais ainda há uma baixa percepção do trabalho doméstico não remunerado como trabalho que requer tempo despendido em favor de outrem, que gera valor tanto econômico como social, ainda que não haja remuneração em retorno à trabalhadora, impedindo avanços legislativos nesse sentido. Essa constatação também parte da dificuldade de mensurar o valor do labor prestado diariamente. Nesse raciocínio, Helena Hirata destaca duas causas inicias da invisibilidade do trabalho de cuidado na sociedade:
[..] para todas as correntes de pensamento, a família nos anos 60 é definida como um lugar de consumo; com a industrialização, ela teria perdido toda função ou papel produtivo. O segundo fator decorre de que as diferenças de funções e atividades entre mulheres e homens são percebidas antes de tudo como “naturais”. Fala-se de responsabilidades familiares sem aprofundar o questionamento (HIRATA, 2009, p. 257).
Diante da ausência do salário no mercado formal, as mulheres não foram vistas em tais condições, como trabalhadoras, o que intensificou o processo que se denomina atualmente como “feminização da pobreza” de modo a se tornar, em alguns casos, dependente de terceiros ao voltar-se exclusivamente ao trabalho de cuidado. Essa situação, ainda em conformidade com a autora, nomeia-se por “patriarcado do salário” o qual desvaloriza não somente a atuação da mulher no mercado de trabalho como também o próprio valor da força de trabalho como um todo (FEDERICI; HIRATA, 2017).
Em conformidade com as estatísticas sociais do IBGE realizadas no ano de 2019, as mulheres recebem apenas cerca de 77,7% do rendimento recebido pelos homens (IBGE, 2019). Isso denota uma desigualdade brutal no mercado de trabalho motivada pela discriminação de gênero e implica no menor valor médio de arrecadação pelas mulheres e, consequentemente, valores menores de benefícios recebidos. Semanalmente, são 21,4 horas gastas por mulheres, enquanto os homens dedicam apenas 11 horas do tempo para tarefas de casa (GUEDES, 2021).
Percebe-se então, a naturalização dos papéis femininos e masculinos, reforçados por uma sociedade burguesa que se preocupa apenas em atender os interesses do capital e entende que o trabalho inerente à mulher se trata apenas do ambiente doméstico, no âmbito privado e por isso:
(...) os salários (quando pagos) devem ser concedidos de modo desigual ainda que a tarefa exercida seja em posição semelhante aos homens; que o exercício do trabalho doméstico e de cuidado de pessoas é realizado de forma não remunerada; e que é realizado o pagamento de benefícios previdenciários menores; evidencia-se a ampliação de lucros estatais, diminuindo os custos da reprodução da força de trabalho, e da assistência social a qual lhe incumbe (RODRIGUES, 2017, p. 72).
Para o autor, o principal garantidor da mercadoria essencial do modo de produção capitalista é o trabalho de cuidado exercido em sua grande maioria por mulheres, pobres e negras, visto que este viabiliza a existência da força de trabalho exercida formalmente e, por conseguinte, a produção de riqueza. Segue-se, portanto, a tendência de que a acumulação do capital gere em grande parte das situações o agravamento da situação do trabalhador e da trabalhadora (BARRETO, 2019).
Afirma-se que é menos oneroso ao Estado reconhecer às mulheres que exercem exclusivamente o trabalho de cuidado o acesso à seguridade social, por meio do pagamento de contribuição, em um sistema patriarcal e capitalista que se apropria do tempo e da força de trabalho feminino; do que ampliar serviços sociais públicos de reprodução social, especialmente nos bairros periféricos, onde se concentram grande parte das mulheres pobres, para “libertá-las da servidão doméstica” (BARRETO, 2019). Ainda que as mulheres representem uma quantidade significativa dos segurados da previdência social principalmente na condição de dependência econômica dos companheiros (RODRIGUES, 2017, p. 26), o Boletim Estatístico da Previdência Social de novembro de 2021, publicado mensalmente pela Secretaria de Políticas de Previdência Social do Ministério da Economia, revela que, o valor médio de aposentadoria por tempo de contribuição, por exemplo, paga aos homens no Brasil a média de R$ 2.606,22 (dois mil, seiscentos e seis reais e vinte e dois centavos), enquanto que para as mulheres, é de R$ 2.024,98 (dois mil e vinte e quatro reais e noventa e oito centavos) (BRASIL, 2021).
Significa dizer, portanto, que as mulheres que ainda conseguem acessar o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) como beneficiárias diretas não dependentes, recebem um montante 28,7% (vinte e oito ponto sete por cento) menor que aquele auferido pelos homens. Isso torna mais evidente que a permanência do exercício do trabalho de cuidado, exercido muitas vezes em dupla jornada, sem qualquer reconhecimento no âmbito da previdência social, é lucrativo ao Estado, visto que:
Além deste não investir quaisquer políticas públicas em larga escala contra a desigualdade de gênero para promover a autonomia da mulher, acabam por pagar valores inferiores no momento de sua aposentadoria que não representam a totalidade do trabalho exercido durante sua vida, já que alocadas em funções precárias e mal pagas, continuarão a ter capacidade contributiva reduzida, e o trabalho não remunerado exercido de forma concomitante nada acrescentará (OLIVEIRA, 2021, p. 56).
Reitera-se que grande parte das mulheres que compõem o alto quantitativo no sistema previdenciário, auferem benefícios na condição de dependentes dos segurados e não propriamente são seguradas para perceber a aposentadoria por tempo de contribuição, onde, na verdade, são minoria. Este fato demonstra que no Brasil, ainda não se pode afirmar que o grande número de mulheres que percebem benefícios previdenciários representa uma ampliação do acesso feminino à Previdência Social Brasileira.
Diante disso, ao analisar as disparidades salariais e de benefícios entre homens e mulheres na sociedade contemporânea, Silva concluiu que:
Se, historicamente, as mulheres recebem menos que os homens, consequentemente sua contribuição previdenciária será menor, mantendo assim a desigualdade de gênero na distribuição dos benefícios da previdência social como contribuição do trabalho, o que afeta não só as mulheres, mas também os membros familiares que dependem dessa renda (SILVA, 2018, p. 44). (grifo nosso)
De maneira semelhante, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) ao versar sobre o assunto também concluiu que:
As mulheres são menos bem cobertas pelos regimes de pensões. Mais baixo taxas de emprego formal e assalariado, juntamente com menos horas ou menos anos trabalhados, resultam em carreiras mais curtas para mulheres do que para os homens. Isso tem consequências adversas para a antiguidade prêmios em pagamento e para cobertura por contribuições relacionadas ao emprego regimes de pensões, e também para os níveis de pensões femininos. A cobertura legal por regimes de proteção social obrigatórios contributivos é inferior para mulheres do que para os homens, deixando uma proteção social legal em escala global (OIT, 2016, p. 30). (grifo nosso)
Proporcionalmente no mundo, contabiliza-se que as mulheres acima da idade de aposentadoria recebem alguma espécie de pensão em percentual inferior à dos homens na mesma situação, em cerca de 10,6%, em valores mais baixos, em virtude dos salários inferiores durante a vida profissional, períodos mais curtos de contribuição, quebras da carreira, e maior realização de trabalho em tempo parcial, entre outros fatores. Além disso, 65% das pessoas em idade de aposentadoria que não auferem nenhuma pensão seriam do sexo feminino (OIT, 2016).
Ainda que o trabalho de cuidado não resulte diretamente em salário, este pode ser considerado como gerador da força de trabalho em prol do trabalho, tendo em vista sua função à atual e à futura mão-de-obra trabalhadora, sendo, portanto, um pilar da organização capitalista do trabalho (FEDERICI, 2021). O trabalho de cuidado tanto corrobora com o capitalismo, que o ideal da família burguesa do século XIX persistiu na inclusão de uma esposa dedicada ao marido e aos filhos, o qual não obrigava os lares mais ricos a exercer qualquer trabalho produtivo no mercado formal, a fim de que fosse promovido um ambiente sólido e acolhedor.
Formava-se, a partir disso, a clássica família tradicional e patriarcal brasileira que se perpetua até os dias atuais, em que todos tornaram-se dependentes de um pai detentor de grande poder (BASSANEZI; PRIORE, 2004). Acerca dessa questão, destaca-se que:
Convém não esquecer que a emergência da família burguesa, ao reforçar no imaginário a importância do amor familiar e do cuidado com o marido e com os filhos, redefine o papel feminino e ao mesmo tempo reserva para a mulher novas e absorventes atividades no interior do espaço doméstico. Percebe-se o endosso desse papel por parte dos meios médicos, educativos e da imprensa na formulação de uma série de propostas que visavam “educar” a mulher para o seu papel de guardiã do lar e da família - a medicina, por exemplo, combatia severamente o ócio e sugeria que as mulheres se ocupassem ao máximo dos afazeres domésticos (BASSANEZI; PRIORE, 2004, p. 192). (grifamos)
Entretanto, conforme anteriormente ressaltado, as mulheres de classe média e baixa, em especial as mulheres negras, sempre foram as responsáveis por, além de se dedicar a reprodução da própria força de trabalho, que é prejudicada por conta da dupla jornada; impulsionar a dos demais que se valem de seu labor não remunerado sem limite de jornada, promovendo uma divisão não igualitária das atividades dentro e fora do ambiente doméstico (MACIEL, 2008).
Dessa forma, ainda que não fosse a realidade de algumas mulheres ser mãe, esposa e dona de casa, o destino considerado mais adequado e natural da mulher, era a maternidade, o casamento e organização do lar, enquadrando-se a ideia de que o trabalho fora do ambiente doméstico não se coadunava com a essência feminina, ainda mais quando os filhos se tornavam uma realidade na rotina da mulher. Em razão dos reflexos dessas conjuntas sociais na atualidade, as mulheres não tem sido vistas como efetivas contribuintes ao crescimento econômico do país, visto que apenas os homens são considerados responsáveis pelo desenvolvimento nacional, pelo fato desses ideais terem se perpetuado, corroborando com a permanência da invisibilidade das atividades das mulheres tanto no trabalho produtivo como no doméstico (BASSANEZI; PRIORE, 2004, p. 240).
Ainda que atualmente a mulher branca não esteja mais em um sistema tradicional de divisão sexual do trabalho que pretendia limitar a mulher apenas ao espaço doméstico, em razão da luta de diversos movimentos feministas pela alteração dos papéis atribuídos a mulher na sociedade, inclusive os sindicais, especialmente a partir das décadas de 70 e 80, a desigualdade de gênero se mantém, na medida em que o mencionado sistema, aplicável às mulheres que ainda não integravam o mercado de trabalho, teria se transformado em um sistema de conciliação ou em alguns casos, um sistema de delegação (MELO; MORAIS, 2021).
No primeiro caso, a mulher se divide entre as responsabilidades do mercado de trabalho e do ambiente doméstico, enquanto que no segundo, a inserção da mulher no mercado de trabalho é possibilitada pela delegação da maioria dos afazeres domésticos a outras mulheres, que são na maioria das vezes, pobres e negras. Todavia, o sistema de delegação não demonstra ser a realidade da maioria das mulheres brasileiras, o qual se restringe aos domicílios de mais alta renda. Faz-se necessário ressaltar que quando uma mulher delega a outra o trabalho de cuidado, ao mesmo tempo, esta última que não possui o mesmo aporte financeiro que a primeira, terá de buscar uma rede de apoio, em regra familiar, inclusive das sogras e mães, ou mesmo das filhas mais velhas, ainda que também crianças, como também das vizinhas e das amigas, para auxiliá-la com o cuidado dos próprios filhos, situação que Oliveira denomina como cadeias reprodutivas de trabalho (OLIVEIRA, 2021). O trabalho de cuidado se torna ainda mais encoberto e renegado na medida em que a produção de pessoas é tratada como mero meio para gerar lucro e está longe de ser valorizado, visto que conforme Aruzza, Bhattacharya e Fraser:
O capital evita pagar por esse trabalho, na medida do possível, ao mesmo tempo que trata o dinheiro como essência e finalidade supremas, ele relega quem realiza o trabalho de reprodução social a uma posição de subordinação - não apenas para os proprietários do capital, mas também para trabalhadores e trabalhadoras com maior remuneração, que podem descarregar suas responsabilidades em relação a esse trabalho sobre outras pessoas (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019, p. 52). (grifo nosso)
Entretanto, a existência de mulheres que por melhor condição financeira, conseguem delegar a maioria das suas atividades domésticas não significa eliminar em sua plenitude o papel atribuído às mulheres como responsáveis pelo trabalho doméstico, considerando que estas ainda continuam tendo as atribuições de contratar, planejar, delegar funções e organizar os afazeres domésticos e de cuidado a serem realizados, de forma concomitante à sua atividade profissional.
Nessa perspectiva, convém refletir que as mulheres que laboram em dupla jornada, não possuem muito tempo para qualquer rotina de autocuidado, seja com a saúde, lazer ou mesmo com a autoestima, lhe restando apenas a exploração de sua mão de obra orçada em valores baixos, deixando-lhe marcas muito fortes por viver uma rotina de exaustão, naturalizando a ideia de uma mulher, principalmente negra, “super forte e guerreira” que ignora os limites humanos. Por essa razão, Silvia Federici propõe a quebra do paradigma da “feminilidade” imposto socialmente à mulher, em uma espécie de “divisão sexual do trabalho na família”, um esforço adicional associado ao trabalho não assalariado, tido como uma espécie de dever adquirido desde o nascimento e expressão utópica de um suposto exercício do amor familiar.
Em sua maioria, foi possível observar que foi alocado às mulheres o trabalho doméstico enquanto que os homens foram alocados na esfera produtiva, exercendo funções consideradas de forte valor social agregado. Depreende-se, portanto, que esta situação é resultante de um processo de socialização que estabelece um padrão associado a cada gênero desde a mais tenra idade, especialmente às mulheres das camadas mais pobres que são direcionadas ao exercício do trabalho de cuidado desde muito novas (JESUS, 2018). Nota-se que a divisão desigual por gênero no trabalho acentua o fato de que a menoridade dedicada ao estudo e a de brincar não é um direito assegurado a todos, especialmente às meninas que necessitam assumir o papel de mãe perante os irmãos, ou quando a mãe necessita se ausentar por questões financeiras para o exercício do trabalho fora do ambiente doméstico (FONTOURA, et. al., 2016). Desse modo, ainda que não haja mais uma divisão sexual do trabalho nos moldes mais tradicionais e independente da mulher estar ou não inserida no mercado de trabalho, o significado de ser mulher ainda se encontra atrelado ao desempenho de papéis de esposa, mãe, dona de casa, sendo ideal e natural que essas mulheres sejam devotas ao cuidado da família (KLOCZKO; MARQUES; ZARPELON, 2021).
Os dados brasileiros comparados com os produzidos em outros países do mundo, mostram que em países europeus e americanos do norte, a maior entrada da mulher no mercado de trabalho formal e a redução do número de filhos por casal refletem na redução expressiva do número de horas gastos no trabalho doméstico não remunerado pelas mulheres; enquanto que no Brasil, observa-se apenas uma leve redução da quantidade de horas de trabalho doméstico exercido pela mulher ao longo dos anos, continuando as mesmas a despender número muito maior que os homens nas atividades domésticas e de cuidado, ainda quando em dupla jornada de trabalho (FONTOURA, et. al., 2016, p. 71).
Ao refletir em quais termos seriam viáveis para dar visibilidade ao trabalho de cuidado exercido pelas mulheres, a autora Silva Federici assevera que apesar de considerar que o salário é apenas um instrumento utilizado para explorar a força de trabalho, visto que não reflete o valor do labor exercido e que esconde o lucro produzido pelo trabalho, se as mulheres fossem efetivamente remuneradas pelo trabalho de cuidado teriam a liberdade e independência necessária para livrar-se da situação de precariedade e exploração, pois haveria a quebra do paradigma do destino biológico.
A remuneração justa e o reconhecimento de direitos trabalhistas e previdenciários às mulheres que exercem o trabalho de cuidado deve ser visibilizado tanto quando é exercido como atividade profissional como também quando é exercido no ambiente da própria residência da mulher, de forma concomitante à sua atividade profissional, visto que ambos os casos são capazes de gerar fontes rentáveis econômicas ao país. Vê-se, portanto que:
As mulheres cuidam e são as maiores responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados no mundo todo, mas quem cuida delas? Lutar por salários, seguridade social, aposentadoria pode ser o começo para dar início a um processo de mudança desse quadro de exploração da força de trabalho feminina de forma gratuita, desigual, invisível, desvalorizada e silenciada (OLIVEIRA, 2021, p. 174). (grifo nosso)
Apesar de não haver atualmente, nenhuma previsão legal que reconheça na seara previdenciária, o trabalho de cuidado exercido pelas mulheres em regime de dupla jornada, por necessitarem manter-se no mercado de trabalho, formal ou informal, para garantir a sobrevivência de sua família, alguns projetos de Leis foram apresentados nos últimos anos e estão sendo discutidos nas casas legislativas brasileiras sobre seus méritos. Cita-se, primeiramente, o Projeto de Lei nº 326, de 11 de fevereiro de 2015, de autoria do Deputado Federal Valmir Assunção do PT/BA.
A proposta apresentada neste Projeto de Lei de nº 326/2015, decorre justamente da luta pelo direito das mulheres, especialmente as mulheres negras, para reconhecer e dar visibilidade às horas gastas no trabalho doméstico não remunerado, vistas ainda como não produtivas, considerando que as atividades exercidas pelas mesmas se dariam em razão da ausência da ação efetiva do Poder Público na implementação de políticas públicas sociais e assistenciais para o acolhimento das crianças, pessoas com deficiência, idosos e doentes (BRASIL, 2015). Assim, segundo o deputado:
A ausência do vínculo formal de trabalho e de contribuição direta a previdência social não podem ser arguidas como impeditivo para a concessão do benefício, tendo em vista os longos anos de trabalho no interior do lar em situação de dependência e ausência de autonomia vivenciados pela mulher, a serem sempre devidamente comprovados (BRASIL, 2015).
De maneira semelhante, apresenta-se o Projeto de Lei nº 2757 de 10 de agosto de 2021, pela Deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), que possui o propósito de alterar a Lei nº 8.213/1991, a Lei dos Planos de Benefícios da Previdência Social, em seu art. 18, para incluir no rol de prestações pecuniárias pagas pela previdência social a aposentadoria por cuidados maternos, desde que cumpridos os requisitos previstos na proposta, além de incluir o período de gozo da licença maternidade para aposentadoria da mulher (BRASIL, 1991; BRASIL, 2021).
E por fim, o último Projeto de Lei apresentado nesse sentido é o Projeto de Lei nº 3.062/2021, do Deputado Federal Paulo Bengtson (PTB-PA), que visa tratar sobre a possibilidade de assegurar um percentual de acréscimo no valor do benefício previdenciário auferido pelas mulheres, no caso daquelas que se dedicam ao cuidado de filhos, sendo o máximo de acréscimo proposto, o percentual de 10% sobre o valor da prestação paga à mulher, a depender da quantidade de filhos, e se forem adotados ou pessoas com deficiência (BRASIL, 2021).
Vale citar ainda que alguns países latino-americanos já legislaram no sentido de reconhecer esse labor exercido majoritariamente por mulheres no âmbito da previdência social, a exemplo da Argentina, Chile e Uruguai. A argentina aprovou, recentemente, o Decreto nº 475/2021 que alterou a Lei de nº 24.241/1993, que trata do sistema de aposentadorias e pensões no país, dispondo sobre a hipótese de cômputo de um ano de serviço por cada filho ou filha nascidos vivos, dois anos para cada filho ou filha adotados menores, e um ano para cada filho ou filha incapacitados menores de idade, nascidos vivos ou adotados, para aquelas mulheres que pretendem ser beneficiárias da Prestação Básica Universal (ARGENTINA, 1993; ARGENTINA, 2021).
O chile, por sua vez, também prevê a possibilidade de um acréscimo no valor da aposentadoria da mulher com 65 anos de idade, de acordo com a quantidade de filhos nascidos vivos ou adotados de acordo com os artigos 74 e 79 da Lei nº 20.255/08, com recentes alterações pela Lei nº 21.419/2022 (CHILE, 2008). De maneira semelhante, o Uruguai aprovou a Lei nº 18.395/08 que estabeleceu em seu Capítulo V, o direito das mulheres de computarem um ano por filho nascido vivo e os adotivos menores ou incapacitados, com limite máximo de cinco anos, com o objetivo de apurar os anos de serviço exercidos fictamente pela mulher uruguaia (URUGUAY, 2008).
Se não fosse considerado o cuidado materno para o cálculo do tempo de contribuição no âmbito da previdência social uruguaia, a mulher, mesmo tendo exercido horas de trabalho nestas atividades durante o seu dia, precisaria continuar no mercado de trabalho por mais tempo até conseguir alcançar um benefício previdenciário, consoante requisitos legais. Ademais, vê-se por meio da legislação desses países que a ausência do reconhecimento previdenciário no Brasil não é fruto da existência de normas jurídicas previdenciárias intransponíveis, uma vez que não há restrição de natureza normativa que não possa ser excepcionada.
Dessa forma, ao longo do referido estudo foi possível observar ser possível tal reconhecimento, considerando as normas vigentes, entretanto em contrapartida, evidencia-se que a desigualdade de gênero, o machismo, a misoginia, o patriarcalismo e o racismo estão profundamente enraizados na sociedade brasileira e impedem a aprovação de normas e políticas públicas na área, razão pelo qual faz-se necessária a luta e resistência contra esses estigmas para que esse reconhecimento ocorra.
5 CONCLUSÃO
Ante o exposto, buscou-se por meio do presente estudo apresentar a possibilidade do reconhecimento previdenciário do trabalho de cuidado exercido em dupla jornada pelas mulheres. Constatou-se, a partir da breve síntese realizada acerca dos reflexos da (des)igualdade de gênero na sociedade brasileira que a pauta sobre a desigualdade entre homens e mulheres é uma questão muito antiga, que não está presente apenas na sociedade brasileira, mas no mundo inteiro.
Sabe-se que a previdência social se fundamenta sobre os princípios da universalidade, solidariedade e de distributividade, e possui o condão de garantir a segurança social às/aos trabalhadoras/es diante das fatalidades inerentes ao mundo do trabalho capitalista, calcado na exploração. Visando, minimamente, proteger as/os trabalhadoras/es em algumas hipóteses de cessação do salário ou remuneração – como em caso de doença, morte, dependência, desemprego, velhice. Assim, é ligada diretamente à conjuntura do mercado, à exploração laboral e ao esgotamento da força de trabalho, refletindo também as especificidades da discriminação de gênero que marcam o capitalismo patriarcal brasileiro.
Entretanto, o que se observa quando se discute o trabalho de cuidado é o contrário disso, tendo em vista que as mulheres possuem menores salários, maior carga/tempo de trabalho, ocupam postos de trabalho precário e rotativos, são atingidas em maior escala pelo desemprego e informalidade, não possuem qualquer proteção diante das condições desgastantes de trabalho as quais muitas se submetem, dentre muitos outros fatores que ocorrem seja em razão da desigualdade de gênero e a desvalorização da mão de obra feminina, ou seja em razão da desnaturalização e o não reconhecimento do trabalho de cuidado.
Assim, foi possível concluir que esses entraves podem ser superados a partir da criação de uma norma legal que supra a lacuna existente no ordenamento jurídico atual acerca dos direitos previdenciários e trabalhista das mulheres que exercem o trabalho de cuidado em dupla jornada. Para tanto, faz-se necessário lutar e ser resistente contra a desigualdade de gênero, o machismo, a misoginia, o patriarcalismo e o racismo, os quais encontram-se profundamente enraizados na sociedade brasileira e impedem a aprovação de normas e políticas públicas na área. A aprovação de alguma proposta nesse sentido só será possível a partir do entendimento efetivo do papel da mulher na sociedade e o respeito à igualdade de gênero.
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[1] Orientador. Graduado em Direito pela Unidade de Ensino Superior do Sul do Maranhão – UNISULMA. Mestrando pelo UDF em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pelo Centro de Ensino Renato Saraiva – CERS (2022). Professor Universitário do Curso de Direito da IESMA/UNISULMA. Membro da Comissão da Direito Previdenciário da OAB/MA (2020-2021). Advogado.
Acadêmica do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior do Sul do Maranhão – UNISULMA/IESMA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, AMANDA FELIPE DE. A precarização do trabalho de cuidado: desigualdade de gênero e o risco social sobreposto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 nov 2022, 04:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/59928/a-precarizao-do-trabalho-de-cuidado-desigualdade-de-gnero-e-o-risco-social-sobreposto. Acesso em: 22 nov 2024.
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