RESUMO: Encontra-se pendente de julgamento na sistemática de repercussão geral a constitucionalidade da taxa de fiscalização instituída em razão da atividade exercida pelo estabelecimento. Diante do alcance da espécie tributária pelos mais variados municípios brasileiros, buscou-se analisar, através da revisão doutrinária e jurisprudencial, o tema. Por meio da análise das regras constitucionais de atribuição de competência tributária, de princípios limitadores ao direito de tributar, como o da igualdade e da proporcionalidade, e das normas infraconstitucionais sobre os aspectos material e quantitativo da regra matriz de incidência tributária, concluiu-se pela impossibilidade de adoção do tipo de atividade como critério exclusivo para a cobrança desta espécie tributária.
ABSTRACT: The constitutionality of the inspection fee instituted due to the activity carried out by the establishment is pending judgment in the system of general repercussion. Given the scope of the tax species by the most varied Brazilian municipalities, we sought to analyze, through doctrinal and jurisprudential review, the theme. Through the analysis of the constitutional rules for the attribution of tax jurisdiction, the principles limiting the right to tax, such as equality and proportionality, and the infra-constitutional rules on the material and quantitative aspects of the matrix rule of tax incidence, it was concluded that impossibility of adopting the type of activity as the exclusive criterion for charging this type of tax.
Palavras-chave: taxa de fiscalização. poder de polícia. constitucionalidade.
Keywords: supervision fee. Police power. Constitutionality.
1 INTRODUÇÃO
A lei n° 13.477 de 2002 do Município de São Paulo, ao exemplo de várias disposições municipais no ordenamento jurídico brasileiro, instituem taxa de fiscalização de estabelecimentos em razão do tipo de atividade econômica, industrial ou social nele desenvolvida.
Embora a Constituição tenha outorgado competência a União, Estados, Distrito Federal e Municípios para instituição dessa espécie tributária (art. 145, II, da CF), com normas gerais descritas no Código Tributário Nacional, em seus artigos 77 a 80, os entes federados pouco têm observado os limites da competência tributária que lhes foi atribuída, com a criação de taxas que não respeitam o fato gerador ou o critério quantitativo da hipótese de incidência tributária autorizada.
Exemplo disso foram as instituições de taxas de segurança pública, de corpo de bombeiros ou de combate a sinistro, declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF, 2020; STF, 2019)
A taxa de fiscalização de funcionamento (com outros nomes análogos) reproduzidas nos mais de cinco mil municípios brasileiros são alvos de intenso questionamento judicial sobre a sua constitucionalidade e legalidade. A Corte Suprema do país já se pronunciou sobre a constitucionalidade das exações instituídas em razão do tipo de atividade desenvolvida pelo estabelecimento (STF, 2017).
O entendimento, contudo, não é pacificado no âmbito das turmas do Supremo Tribunal Federal. O Ministro Dias Toffoli se opôs ao provimento do Agravo em Recurso Extraordinário de n° 990.094/SP com reafirmação de jurisprudência ao demonstrar que existem pronunciamentos da Corte no sentido de que o critério isolado da atividade exercida para fins de cálculo da taxa devida não atenderia à correspondência do maior ou menor trabalho da fiscalização empreendida (STF 2014; STF 2017). Assim, no início de 2019, o referido recurso foi afetado para julgamento plenário na sistemática de repercussão geral, ocasião na qual vinculará a todos os órgãos judiciais e administrativos do país em razão dos efeitos erga omnes da decisão proferida (arts. 15, 927, V; 988, §5ª, II do CPC).
Diante da relevância social da matéria debatida pretende-se com o presente artigo investigar, de forma sistemática, os aspectos constitucionais, legais e práticos da instituição de taxa de poder de polícia relativa a fiscalização de estabelecimento, sobretudo por parte dos Municípios que são a menor unidade territorial do Estado federal sobre o qual é repartida a República Federativa do Brasil com vasta gama de atribuições materiais instituídas pela Constituição e menor poder arrecadatório. Para tanto, se recorrerá à revisão doutrinária e, sobretudo, jurisprudencial dessa espécie tributária.
2 A COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL COMUM PARA A INSTITUIÇÃO DE TAXA
O Estado como entidade vocacionada ao atendimento das necessidades coletivas do seu povo e à proteção do seu território necessita de recursos financeiros para o alcance de tais fins. Uma das principais formas de obtenção de receita pelo Estado, no exercício do seu poder de império, é o tributo – “prestação pecuniária não sancionatória de ato ilícito, instituída em lei e devida ao Estado ou a entidades não estatais de interesse público” (AMARO, 2021).
Sob esse ponto de partida fundamental, a repartição de competências tributárias se vincula às atividades materiais atribuídas aos entes na organização político-administrativa do Estado brasileiro.
A Constituição Federal outorgou competência a todos os entes federativos para a instituição de taxas “em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição” (art. 145, II, da CF), o que deve guardar correspondência com as atribuições materiais e legislativas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios sobre os mais variados serviços públicos, compreendidas as atividades fiscalizatórias e de limitação do interesse particular em prol do interesse público (arts. 21, 22, 23, 24, 25, §§1º e 2º e 30 da CF).
Isto é, apenas o ente titular de determinada atribuição constitucional, no exercício da sua competência tributária própria, poderá instituir taxa a ela relacionada de modo que é vedada a cobrança de múltiplas taxas por diferentes unidades federativas sobre o mesmo objeto (BARRETO, 2009).
Em relação ao Município, a sua competência tributária está atrelada aos assuntos de interesse local consubstanciando o princípio da autonomia municipal que estabelece que “cada Município é livre para organizar-se, consultando seus interesses particulares, observadas, apenas, as restrições que objetivam manter de pé os marcos que separam as competências das pessoas políticas” (CARRAZA, 2015)
Portanto, premissa para analisar a competência tributária de taxa fiscalizatória é verificar se está dentro do escopo constitucional do ente a respectiva atividade administrativa, isto é, se incumbe ou não, ao ente a fiscalização de determinado estabelecimento. Veja-se o caso da taxa de serviço judiciária - se a atividade jurisdicional foi excluída do plexo de atribuições do Município, também foi retirada a possibilidade de instituição do tributo pelo município.
Não é raro, contudo, o desrespeito desse fundamento no poder de tributar dos Municípios. Em verdade, a mera situação do estabelecimento[1] – complexo de bens organizado em um espaço físico para o desempenho de atividade comercial, industrial ou de prestação de serviço público – na unidade territorial do município tem sido suficiente para instituição da taxa de fiscalização.
Um exemplo é o serviço de distribuição de gás canalizado, que mesmo sendo de atribuição exclusiva dos Estados (era. 25, §1º da CF) é alvo de múltiplas taxas de fiscalizatórias por parte de municípios nos quais são passadas as tubulações, como se verifica no Estado da Bahia cuja concessionária do serviço público de gás sofre cobranças de vários munícipios onde sequer possui uma sede ou um estabelecimento prestador de serviços, a exemplo do município de Candeias, na Bahia (art. 155 do Código Tributário Municipal – Anexo da Receita IV).
Veja-se que esse último exemplo não coincide com o caso de fiscalização de estabelecimento de exploram recursos minerais, cuja titularidade, embora privativa da União (arts. 20, IX e 177 da CF), teve, por expressa previsão constitucional, transferida a fiscalização também aos Estados e Municípios, em decorrência do interesse comum ambiental (art. 23, XI, da CF). O Supremo Tribunal Federal, inclusive, reputou constitucional as taxas de fiscalização instituídas pelos estados do Amapá e do Pará com semelhante hipótese de incidência (STF, 2022).
Logo, a instituição da taxa de fiscalização não pode se desvencilhar da atribuição material de cada ente tributante, conforme regra contida no art. 80 do Código Tributário Nacional[2], sob pena de violação do paradigma máximo de validade do nosso ordenamento jurídico.
3 A NECESSÁRIA DELIMITAÇÃO DO CRITÉRIO MATERIAL DA HIPÓTESE DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DA TAXA E A SUA VINCULAÇÃO COM O ASPECTO QUANTITATIVO
Toda a outorga de competência representa, a um só tempo uma autorização e uma limitação (CARRAZZA, 2015). Assim, a regra matriz da hipótese de incidência tributária das taxas, inserida no art. 145, II, da Constituição Federal, delimita a instituição desse tributo nos casos de exercício de poder de polícia ou de fruição potencial ou efetiva de serviços públicos. Ao presente trabalho interessa o exame da taxa de polícia, pendente de julgamento na sistemática de repercussão geral na Corte Suprema, principalmente, os seus aspectos material e quantitativo da regra-matriz tributária.
3.1 O exercício regular de fato do poder de polícia
Embora o exercício do poder de polícia seja atividade típica da Administração Pública, não foi a legislação administrativa responsável pela sua definição e sim o próprio Código Tributário Nacional que a define, em seu art. 78, como a
“atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”
Ainda, completa o parágrafo único do mesmo dispositivo a exigência de que o exercício desse poder seja regular, sob penal de inconstitucionalidade e de ilegalidade (MACHADO, 2007), conforme inequívoca redação utilizada pelo Código Tributário Nacional:
“Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder”
Como se vê, de acordo com a mais balizada doutrina administrativista, o poder de polícia foi adotado pelo Código Tributário Nacional em seu sentido estrito:
“A atividade estatal de condicionar a liberdae e a propriedade ajustando-as aos interesses da coletivos designa-se ‘poder de polícia’. A expressão, tomada neste sendio amplo, abrange tanto atos do Legislativo quanto do Executivo. Refere-se, pois, ao compleco de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada pela liberdade e da propriedade dos cidadãos. Por isso, nos Estados Unidos, a voz police power reporta-se sobretudo às normas legislativas através das quais o Estado regula os direitos privados, constitucionalmente atribuídos aos cidadãos, em proveito dos interesses coletivoas, como bem anaota Caio Tácito,
A expressão ‘poder de polícia’ pode ser tomada em sentido mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais ou abstratas, como os regulamentos, quer concretas e específicas (tais as autorizações, as licenças, as injunções), do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais. Essa acepção mais limitada responde à noção de polícia administrativa” (MELLO. 2019)
Não há dúvidas que o Estado Democrático de Direito, firmado sob a égide da Constituição Federal de 1988, demanda que o exercício desse poder de polícia seja realizado em razão de lei que discrimine de forma suficiente as atribuições da Administração Pública (MACHADO, 2007). Pelo princípio da legalidade, apenas com base em lei em sentido estrito editada pelo ente político a quem compete constitucionalmente a matéria ou o desempenho de determinado serviço público é que Administração poderá, por meio de outros atos normativos ou administrativos, empreender as atividades materiais de fiscalização ou restrição de direitos e interesses individuais (CARRAZZA, 2015).
Por sua vez, embora o Supremo Tribunal Federal já tenha admitido a instituição de taxa mesmo sem efetiva fiscalização estatal, reconhecendo como suficiente a mera existência de aparato burocrático no qual está estruturado órgão com atribuições fiscalizatórias[3], ou que a efetividade é presumida em favor da Administração Pública[4], tal entendimento é incompatível a Constituição Federal (COSTA, 2019; MACHADO, 2007).
É que a própria redação do art. 145, II, da Carta Maior não deixa dúvidas de que as taxas apenas são devidas pela efetiva ou potencial prestação de serviços públicos, na medida em que o adjetivo potencial fora posicionado somente após o término da previsão da taxa de polícia[5]. E a interpretação literal e restritiva não pode ser afastada para exegese da norma tributária por se tratar de garantia fundamental do contribuinte ante o poder de tributar estatal, conforme expressamente previsto no art. 110 do Código Tributário Nacional. Além disso, como a taxa de polícia encerra uma atividade restritiva dos interesses e direitos individuais por maior razão se veda qualquer interpretação ampliativa (FERRAZ JR., 2001).
Não fosse isso, o suporte fático da obrigação tributária precisa efetivamente ocorrer no mundo dos fatos, no campo da vida, afinal “o Direitos Tributário sujeita-se ao princípio da realidade ou da verdade material e, assim, fiscalização não efetuada, ou mera presunção de fiscalização, não podem condem conduzir ao nascimento da obrigação tributária” (COSTA, 2019).
3.2 A referibilidade das taxas e sua base imponível
Os impostos são tributos não vinculados a qualquer atividade estatal, o que não é o caso das taxas cujo princípio informador é o da retributividade (ATALIBA, 1989). Isto é, a sua cobrança ao contribuinte deve servir para retribuir pecuniariamente o poder público na medida da atividade fiscalizatória realizada (CARRAZZA, 2015). Por isso, destoa da correta exegese do texto constitucional a possibilidade de sua instituição pelo potencial exercício do poder de polícia, como visto anteriormente.
Ensina o professor Hugo de Brito Machado que, por se manifestar o poder de polícia na limitação de direitos e interesses individuais, não há como defender eventual natureza contraprestacional, afinal não se insere na lógica do direito obrigacional a vontade livre e direcionada de um indivíduo de se submeter a restrições no âmbito de sua vida privada ou comercial (MACHADO, 2007). De todo o modo, segundo o mesmo professor o traço distintivo e inexorável das taxas seria a atuação estatal – poder de polícia ou serviço público – referida ao sujeito passivo (MACHADO, 2007). Essa característica é apontada como um standard necessário à diferenciação da taxa de outras espécies tributárias:
“O test básico da taxa está na vinculação do serviço acaso prestado a um proveito, ou um interesse direto do contribuinte ou a um ato provocado por atividade deste, condições essas indiferentes ao imposto. Se o alegado serviço nada tem a ver com quem vai pagá-lo, porque não lhe interessa ou porque não foi instituído para prover a necessidade de serviço público por ele suscitadas na estrutura da Administração – não há taxa.
Esse test, a nosso ver, é utilizável tanto na análise das taxas resultantes do exercício do poder de polícia, quanto nos decorrentes da utilização efetiva ou potencial de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição” (BALEEIRO, 2010)
Em outros termos, se não há referibilidade entre a atuação estatal, que é o aspecto material da hipótese de incidência tributária da taxa, e o obrigado, desaparece a distinção entre esse tributo e o imposto (ATALIBA, 2012).
Além disso, outro elemento essencial para que não se desnature a taxa é o exame de sua base imponível.
Ora, se a base de cálculo de toda espécie tributária precisa revelar uma dimensão da sua hipótese de incidência (DERZI, 2010; ATALIBA, 2012), por mais razão devem as taxas, na qualidade de tributos vinculados, se referirem ao montante do trabalho demandado para a execução do serviço (ou a mera colocação à disposição da coletividade) ou para o exercício de fato do poder de polícia referenciados ao seu sujeito passivo (ATALIBA, 2012).
A título exemplificativo, veja-se que “uma taxa por serviços municipais de conservação de rodovias não pode tomar por base o valor dos veículos ou sua idade, mas só o seu peso ou outras características que provoquem desgaste maior ou menor das rodovias (o que, indiretamente, vai determinar o vulto do serviço de conservação)” (ATALIBA, 2012).
Por essa razão é que apenas sendo possível à base de cálculo da taxa dimensionar o custo do “serviço público” ou o “exercício do poder de polícia”, a mensuração de outro fato qualquer será própria de imposto (DERZI, 2010) – vedação trazida expressamente no bojo do texto constitucional (art. 145, §2º da CF).
Assim, a base imponível na taxa de polícia deve corresponder ao próprio custo, valor ou outra grandeza qualquer que revele o dispêndio incorrido para a realização da atividade fiscalizatória ou licenciadora, independentemente do resultado alcançado, como bem explica Geraldo Ataliba:
“Não são taxas por atos de polícia, porque, a rigor, o ato de polícia é aquele ato culminante – sim ou não, defiro ou não defiro, pode ou não pode; não é por esse ato que se paga, nem pelo resultado positivo ou negativo. Paga-se pela despesa que se causar para a regular edição desse ato, cuja produção válida requer que o Estado faça diligências de averiguação, verificação, medição, confrontação, exame; em uma única palavra: fiscalização. E só depois dos depoimentos de diversos funcionários chegarem aos autos é que será válido o ato da autoridade dizendo sim ou não. Dizendo sim ou não a despesa já está feita” (ATALIBA, 1989)
Logo, a base de cálculo da taxa de cálculo da taxa de polícia deve guardar proporcional correlação com os custos das diligências administrativas necessárias à prática do ato correspondente (CARRAZZA, 2015).
4. AS MAIS RELEVANTES LIMITAÇÕES AO PODER DE TRIBUTAR INCIDENTES SOBRE AS TAXAS
4.1 O princípio da igualdade
O princípio da igualdade conclama o legislador a editar normas que deem tratamento desigual aos seus destinatários na medida de sua igualdade, tendo em vista que o tratamento paritário de situações diferentes encerraria ônus desproporcional e injusto a uma das partes. No direito tributário, esse direito fundamental inscrito no caput do art. 5º da Constituição Federal, consubstancia o subprincípio da capacidade contributiva, nos termos do §1º do art. 145 do mesmo diploma (COSTA, 2003).
São vários os prismas através dos quais são revelados o princípio da igualdade no direito tributário:
“a) Se todos são iguais perante a lei, todos devem ser por ela tributados (princípio da generalidade.
b) O critério da igualação ou desigualação há de ser a riqueza de cada um, pois o tributo visa a retirar recursos do contribuinte para manter as finanças públicas; assim pagarão todos os que tenham riqueza; localizados os que têm riqueza (logo, contribuintes, devem estes ser tratados igualmente – ou seja, tributados identicamente na media em que possuírem igual riqueza (princípio da igualdade tributária).
c) Essa riqueza só poderá referir-se ao que exceder o mínimo necessário à sobrevivência digna, pois até este nível o contribuinte age ou atua para manter a si e aos seus dependentes, ou à unidade produtora daquela riqueza (primeira acepção do princípio da capacidade contributiva, como pressuposto ou fundamento do tributo).
d) Essa tributação, ademais, não pode se tornar excessiva, proibitiva ou confiscatória, ou seja, a tributação, em cotejo com diversos princípios e garantias constitucionais (direito ao trabalho e à livre iniciativa, proteção à propriedade), não poderá inviabilizar ou mesmo inibir o exercício de atividade profissional ou empresarial lícita, nem retirar do contribuinte parcela substancial da propriedade (segunda acepção do princípio da capacidade contributiva, enquanto critério de graduação e limite da tributação).” (OLIVEIRA, 1998)
A norma constitucional, contudo, relaciona capacidade contributiva a uma única espécie tributária – o imposto – ao prever que “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte (...)”. Isso se justificaria pela ausência de atuação estatal específica que constitua a hipótese de incidência tributária dos impostos, de modo que só restariam então esses tributos se fundarem na capacidade contributiva do contribuinte (COSTA, 2003). Como bem explica Regina Helena Costa
“E assim é porque nos impostos o sujeito passivo realiza comportamento indicador de riqueza que não foi, de maneira alguma, provocada ou proporcionada pelo Poder Público. Tal riqueza, portanto, é a única diretriz que pode ser perseguida pela tributação não vinculada a uma atuação estatal” (COSTA, 2003).
Assim, as taxas, tributos vinculados, pelo caráter remuneratório da atuação estatal que fazem nascer a obrigação tributária não estariam atreladas à manifestação da riqueza do contribuinte (COSTA, 2003).
Há quem defenda que a capacidade contributiva também geraria efeitos sobre as taxas, a exemplo do professor José Marques Rodrigues de Oliveira, que classifica os tributos fundados na capacidade contributiva (impostos e contribuição de melhoria) e tributos graduados pela capacidade contributiva (taxas) (OLIVEIRA, 1998).
De fato, a riqueza do contribuinte pode sim impactar na dimensão da atividade desenvolvida e consequentemente demandar uma maior atividade estatal fiscalizatória, mas essa não é, contudo, uma causalidade necessária. Como visto, não é a capacidade contributiva do sujeito passivo que é levada em conta na instituição do tributo, mas sim o agir do poder público, o que afasta a irradiação dos efeitos do princípio da capacidade contributiva, sem se deixar de atender ao postulado da igualdade (COSTA, 2003).
É que o princípio da igualdade nas taxas é atendido quando todas as pessoas alcançadas pela mesma atuação do poder de polícia são chamadas a custeá-la na medida do trabalho empreendido pelo órgão fiscalizatória ou licenciador, motivo pelo qual se encontrará resguardada a igualdade quando as taxas atenderem à retributividade (COSTA, 2003). Assim, essencial também se mostra o exame da proporcionalidade como princípio proibitivo de cobrança de taxas muito elevadas diante de uma ínfima atuação administrativa.
4.2 O princípio da proporcionalidade
A proporcionalidade, como conceito jurídico que convoca operadores e intérpretes do direito a criar e aplicar a norma na medida das necessidades do caso concreto, está diretamente relacionada à contenção do arbítrio e da onipotência estatal (PONTES, 2000).
Suas primeiras elaborações, então, se fizeram presentes justamente nos campos de maior incidência do Estado sobre a vida privada, como foi o caso da aplicação de sanções penais e no âmbito do poder de polícia estatal (PONTES, 2000).
“Ainda no âmbito do Direito Administrativo, clássico ficou o ensinamento de Otto Mayer, para quem o fundamento jusnatural do poder de polícia estatal exige que este seja exercido em proporção à perturbação social que o requereu. A proporção entre a providência tomada e a perturbação social que a exigiu constitui um ‘limite jurídico sério’. A proporcionalidade, neste sentido, representa o critério da aferição da medida do poder de polícia estatal. Revela-se, assim, a preocupação da doutrina administrativista com o exercício desmedido das funções estatais, notadamente sob o pálio da expressão ‘poder de polícia’” (PONTES, 2000).
O princípio jurídico evoluiu, então, para se espraiar por toda a ordem jurídica, inclusive a constitucional. A proporcionalidade foi incorporada ao devido processo legal, na sua perspectiva substancial, como direito material que limita restrições a direitos fundamentais, como é o caso das leis tributárias (SARMENTO, 2002; PIMENTA, 2004). Nesse sentido, o contribuinte tem o direito de ser cobrado com prudência, moderação, equilíbrio, sem que de qualquer forma o montante da exação seja irrazoável às dimensões da sua situação fático-jurídica (PIMENTA, 2004).
Em relação à taxa de poder de polícia, se por um lado a sua base de cálculo deve corresponder ao custo da atividade desenvolvida pela Administração Pública (vide item 3.2), por outro, há dificuldade na preservação dessa equivalência em virtude da necessidade de sua fixação prévia, corolário do princípio da legalidade tributária (art. 150, II, CF) – vedada a cobrança taxa sem que lei anterior a estabeleça.
Assim, como é impossível “que haja uma dosagem milimétrica entre a quantia cobrada e o gasto do Poder Público (ou quem agiu em seu nome) teve para praticar o ato de polícia ou para prestar o serviço público” (CARRAZZA, 2015), há de ser respeitada a proporcionalidade e a razoabilidade (LOBO, 2005; DOMINGUES, 2007).
Por sua importância e sua centralidade no ordenamento jurídico, o princípio da razoabilidade foi invocado para invalidar normas tributárias que ao desrespeitá-lo foram tidas como incompatível com a constituição federal, sendo o primeiro julgamento do Supremo Tribunal sobre o tema o da Representação de n° 1.077 (PIMENTA, 2004). No referido julgamento, a base de cálculo da taxa judiciária instituída pelo Estado do Rio de Janeiro revelou-se manifestamente desarrazoada por lhe faltar a equivalência necessária entre o valor do tributo e custo da atuação estatal (PIMENTA, 2004).
Como precisamente sinalizou o Ministro Moreira Alves, na relatoria do aludido julgamento, se é difícil precisar o custo da atuação estatal, que corresponde ao limite da exação, ela não ultrapassar “uma equivalência razoável entre o custo real dos servils e o montante a que pode ser compelido o contribuinte” (ALVES, 1984). O mesmo entendimento foi reafirmado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal em relação a Taxa de Registro de Contratos instituída pelo DETRAN/PR (STF, 2021).
Como se vê, no âmbito das taxas de polícia, o princípio da proporcionalidade é de dupla importância ao dimensionar, a um só tempo, tanto a própria atividade material empreendida pela administração pública quanto a própria cobrança feita ao contribuinte, no bojo do aspecto quantitativo da hipótese de incidência tributária, de modo a ser inviável qualquer estudo do tema dissociado desse postulado normativo.
5 A ANÁLISE DA ELEIÇÃO DO TIPO DA ATIVIDADE DESENVOLVIDA COMO CRITÉRIO DEFINIDOR DO ASPECTO QUANTITATIVO DA TAXA
Foi reconhecida a repercussão geral da questão relativa à constitucionalidade da fixação do valor da taxa, instituída em razão do exercício do poder de polícia, em função da atividade exercida pelo estabelecimento, no bojo do Agravo em Recurso Extraordinário de n° 990.094 de São Paulo.
De fato, detém a municipalidade a competência para promover a fiscalização das atividades que se desenvolvem em seu território pois se trata de interesse local verificar o atendimento às regras de segurança e sanitárias pelos particulares (art. 30 da CF).
Por outro lado, a utilização do tipo da atividade desenvolvida como critério definidor do aspecto quantitativo da taxa de polícia pelos Municípios é questão que encerra grande controvérsia na Corte Suprema do país; enquanto a 1ª Turma já se pronunciou sobre a constitucionalidade desse critério (STF, 2017), a 2ª Turma, em mais de acórdão de Relatoria do Ministro Dias Toffoli, já se posicionou em sentido contrário, firmando-se no sentido de que “o critério da atividade exercida pelo contribuinte para se aferir o custo do exercício do poder de polícia desvincula-se do maior ou menor trabalho ou atividade que o Poder Público se vê obrigado a desempenhar” (STF 2014).
O acórdão paradigma da repercussão geral (ARE 990.094/SP) trata da taxa de polícia instituída pelo Município na Lei n° 13.477 de 2002 impugnada pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), nos seguintes termos:
“Art. 14 - A Taxa será calculada em função do tipo de atividade exercida no estabelecimento, em conformidade com a Tabela Anexa a esta lei - Seções 1, 2 e 3.
§ 1º - A Taxa será calculada pelo item da tabela que contiver maior identidade de especificações com as atividades exercidas no estabelecimento considerado, observada a Classificação Nacional de Atividades Econômicas - CNAE-Fiscal, na forma da legislação federal, e a Tabela Anexa, sucessivamente.
TABELA ANEXA À LEI Nº 13.477, DE 30 DE DEZEMBRO DE 2002
Item – Descrição – Período de Incidência – Valor da taxa em Reais
19 - Correio e telecomunicações. - Anual - 200,00 ”
Ao exame do referido diploma municipal, percebe-se que embora a maior parte dos itens da lista mencione exclusivamente o tipo de atividade exercida, há algumas exceções que o associam com algum outro critério de dimensão do empreendimento/atividade fiscalizada:
“TABELA ANEXA À LEI Nº 13.477, DE 30 DE DEZEMBRO DE 2002
Item – Descrição – Período de Incidência – Valor da taxa em Reais
69 - Estabelecimento de assistência médico-hospitalar até 50 leitos. – Anual - 462,00
70 - Estabelecimento de assistência médico-hospitalar de 51 a 250 leitos. – Anual - 810,00
71 - Estabelecimento de assistência médico-hospitalar mais de 250 leitos. – Anual - 1157,00
97 - Casa de repouso e de idosos, com responsabilidade médica. – Anual - 347,00
98 - Casa de repouso e de idosos, sem responsabilidade médica. – Anual - 231,00”
O tipo da atividade é capaz de sinalizar o grau de complexidade da fiscalização a ser empreendida pelos órgãos de fiscalização municipal, afinal a quantidade de regras técnicas a serem seguidas e o rigor e o esmero demandados para se atestar se o estabelecimento as cumpre devidamente são muito maiores em um hospital do que em uma banca de revista, por exemplo. Assim é que se verifica que o tipo de atividade representa, a um só tempo, tanto uma dimensão da hipótese de incidência tributária, como um parâmetro do custo da atividade estatal fiscalizatória realizada.
No entanto, quando o critério da atividade é eleito de forma exclusiva, como ocorre com a hipótese dos Correios, enfrentada no caso paradigma do Supremo Tribunal Federal, percebe-se a potencial violação aos princípios da igualdade e da proporcionalidade analisados como importantes limites do poder de tributário dessa espécie tributária. Não importa se os Correios, dentro de um mesmo território, funciona como um grande centro de distribuição de correspondências e de objetos ou como uma agência de menor capacidade, o valor devido a título de taxa de fiscalização pelo Município de São Paulo é o mesmo – R$ 200,00 (duzentos reais).
Com isso, não só se tratam situações jurídicas diversas tratadas de forma semelhante, violação da igualdade no sentido material, como também se percebe uma manifesta desproporção do aspecto quantitativo com o custo da atividade realizada, tendo em vista que um grande centro de distribuição exige um maior trabalho da administração para o exercício do poder de polícia que lhe incumbe, sendo evidente o completo desrespeito ao princípio da proporcionalidade. A mesma lógica de aplica aos mais variados empreendimentos e atividades.
Portanto, a eleição do tipo de atividade como elemento único do aspecto quantitativo da taxa de polícia não é suficiente para traduzir a equivalência da exação com o custo da fiscalização promovida, de modo que precisa se fazer acompanhado de outro elemento que sirva a tal dimensionamento, como é o caso da área da fiscalização, julgado um critério constitucional pela Corte Suprema (STF, 2015). Nesse sentido, a própria lei impugnada no caso casa paradigma conseguiu atender os parâmetros constitucionais e legais nos itens 69, 70, 71, 97 e 98, quando o tipo de atividade foi associado com outro critério que expressa uma maior demanda do trabalho fiscalizatório, como a quantidade de leitos em um estabelecimento hospitalar.
6 CONCLUSÃO
A análise dos aspectos da hipótese de incidência da taxa de polícia e os seus principais limites constitucionais ao poder de tributar são imprescindíveis para que se encerre, com justiça, a celeuma da taxa de fiscalização instituída em razão do tipo de atividade exercida. Conclui-se que a eleição exclusiva desse critério não é capaz de traduzir o custo da atividade estatal exercida e viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
Como essa espécie tributária é reproduzida em milhares de municípios brasileiros, o julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário de n° 990.094/SP terá a aptidão de pacificar importante controvérsia tributária que acaba por impactar a atividade econômica de vários empreendimentos no país.
REFERÊNCIAS
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário, 30ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2015. p. 201.
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro, 24ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2021.
ATALIBA, Geraldo. Taxas e preços no novo texto constitucional. Revista de Direito Tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 13, janeiro-março de 1989, n° 47.
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[1] Veja-se que não se adota o conceito de estabelecimento próprio do direito empresarial (art. 1.142 do Código Civil)
[2] Art. 80. Para efeito de instituição e cobrança de taxas, consideram-se compreendidas no âmbito das atribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, aquelas que, segundo a Constituição Federal, as Constituições dos Estados, as Leis Orgânicas do Distrito Federal e dos Municípios e a legislação com elas compatível, competem a cada uma dessas pessoas de direito público.
[3] Como é o caso da TCFA - Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental – instituída pelo IBAMA (RE nº 603.513/MG-AgR-EDv-AgR, Tribunal Pleno, Relator Ministro Teori Zavaski, DJe de 304/14; RE nº 05.776/PR-AgR-segundo, Segunda Turma, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, DJe de 9/8/21; AI 648.201/SP-AgR, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe de 26/6/09).
[4] STF, 2ª Turma., AgRg n AgI 618.150-3-MG, Rel. Min. Eros Grau, j. 13.3.2007.
[5] “Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (...) II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;”
graduada pela UFBA e pós graduação pela PUCMinas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Alana Gonçalves Cardoso da. A (in)constitucionalidade da cobrança de taxa de fiscalização em razão do tipo da atividade exercida pelo estabelecimento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2022, 04:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60141/a-in-constitucionalidade-da-cobrana-de-taxa-de-fiscalizao-em-razo-do-tipo-da-atividade-exercida-pelo-estabelecimento. Acesso em: 22 nov 2024.
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