VICTOR CONTE ANDRÉ
(orientador)
RESUMO: O direito de família ao longo do século XX passou por profundas transformações, deixando o exercício do patriarcalismo, centrado na figura do genitor masculino até a Constituição Federal 1988 com uma nova roupagem familiar de direitos e deveres entre pais e filhos e a inserção da afetividade no ordenamento jurídico brasileiro. Desta forma, o presente artigo científico tem o objetivo de investigar a respeito da admissibilidade da responsabilidade civil por abandono afetivo do genitor no direito de família brasileiro. Para o desenvolvimento da pesquisa foi utilizado o método de revisão bibliográfica, por meio de um estudo cuidadoso da legislação, doutrina, jurisprudência, dissertações e teses, etc. Informa-se que o tema é atual e possui destacada relevância, uma vez que trata sobre se de fato a transformação axiológica do Direito de Família abrange também o aspecto da admissibilidade da responsabilidade civil no ato do abandono afetivo do genitor no ordenamento jurídico brasileiro, servindo de base de estudo tanto para a sociedade quanto para acadêmicos de Direito. A conclusão que se chega é de que não existe ato ilícito para a interrupção do vínculo de afetividade, e consequentemente não se pode responsabilizar o genitor. A isso se refere à judicialização do afeto, pois não há como o Estado interferir e obrigar aos pais a ter laços afetivos, que nesse contexto é de difícil à medição, tendo como consequências decisões excessivas ou injustificadas, portanto, o que compete aos pais é o dever de sustentar e criar e isso já é juridicamente respaldado.
Palavras-chaves: Abandono afetivo. Responsabilidade Civil. Genitor. Direito de Família.
ABSTRACT: Family law throughout the 20th century underwent profound transformations, leaving the exercise of patriarchy, centered on the figure of the male parent, until the Federal Constitution of 1988 with a new family guise of rights and duties between parents and children and the insertion of affectivity in the Brazilian legal system. In this way, this scientific article aims to investigate the admissibility of civil liability for affective abandonment of the parent in Brazilian family law. For the development of the research, the method of bibliographic review was used, through a careful study of legislation, doctrine, jurisprudence, dissertations and theses, etc. It is reported that the topic is current and has outstanding relevance, since it deals with whether in fact the axiological transformation of Family Law also covers the aspect of the admissibility of civil liability in the act of affective abandonment of the parent in the Brazilian legal system, serving base of study for both society and law scholars. The conclusion reached is that there is no illicit act to interrupt the bond of affection, and consequently the parent cannot be held responsible. This refers to the judicialization of affection, since there is no way for the State to interfere and oblige parents to have affective bonds, which in this context is difficult to measure, with excessive or unjustified decisions as consequences, therefore, it is up to parents the duty to support and create and this is already legally supported.
Keywords: Affective abandonment. Civil responsability. Parent. Family right.
1 INTRODUÇÃO
O não cumprimento das prestações alimentícias e o dever de cuidar pela criação e educação dos filhos, no âmbito do direito de família, consistem numa das principais hipóteses de responsabilidade civil do genitor pela inobservância dos deveres relacionados à parentalidade, e atualmente no ordenamento jurídico é a única hipótese de prisão civil.
Nesse contexto, com o advento da Constituição Federal de 1988 houve significativas mudanças no tocante à disciplina jurídica das relações interfamiliares, que provocou transformações estruturais no direito de família, desde a igualdade tratamento entre filhos, responsabilidade recíproca entre os conviventes, estabelecimento da união estável, etc.
E na última década tanto a doutrina quanto a jurisprudência vem se debruçando sobre a questão da responsabilidade civil decorrente da relação parental, cujo genitor descumpre a prestação da afetividade. Dessa forma, a presente pesquisa tem por tema de analisar a admissibilidade, no ordenamento jurídico brasileiro, da responsabilidade civil por abandono afetivo parental.
Diante da temática que da responsabilidade civil dos genitores por abandono afetivo no âmbito jurídico brasileiro e nos fundamentos explanados acima, há necessidade de realizar a seguinte problemática: Até que ponto o Poder Judiciário pode interferir nas relações paterno-filiais, principalmente no poder de responsabilizar civilmente o genitor pela omissão ao afeto na criação de seus filhos?
A justificativa do presente estudo científico denota sobre a reflexão da incidência de indenização no tocante ao abandono afetivo e a atuação do poder judiciário, uma vez que se trata de um tema de grande debate e questionamento no âmbito social e jurídico brasileiro, motivo pela qual sua análise é desafiadora uma vez que, as tensões no campo familiar demanda permanente trabalho científico reflexivo, com a finalidade de averiguar as necessidades atuais da sociedade, que vive em constante transformação e também da necessidade averiguar os limites da atuação do Estado na individualidade e nas relações familiares.
Por sua vez, o sistema jurídico cada vez mais é solicitado para resolução de conflitos entre o que é dever jurídico e o subjetivo. Nesse sentido, a problemática levantada é relevante, pois de forma detalhada trabalha a questão da judicialização no campo do abandono afetivo e a responsabilidade civil. Fundamentando-se sobre a necessidade de uma busca primordial de abordar sobre as questões relacionadas à família e o afeto e as responsabilidades no campo jurídico e social brasileiro. Trazendo o debate científico sobre a viabilidade aplicação da responsabilidade civil em face dos pais no caso da efetivação do abandono afetivo filial.
O objetivo geral consiste em investigar a aplicabilidade da responsabilidade civil em face do abandono afetivo do genitor no âmbito do direito de família. E os objetivos específicos: pesquisar sobre os princípios da afetividade e da solidariedade no direito de família; abordar a respeito da responsabilidade civil e a judicialização no âmbito familiar no ordenamento jurídico brasileiro; por fim, avaliar a questão do abandono afetivo parental e a admissibilidade da responsabilidade civil.
A metodologia utilizada é baseada numa revisão de literatura, com aplicação de três métodos científicos. No que diz a respeito ao método de abordagem, aplicar-se-á o método dialético, que é um diálogo entre vários pesquisadores sobre o tema adotado; a respeito do método procedimental adotar-se-á o método comparativo, que neste caso é comparação de ideias e informações dos estudiosos desta problemática, por fim, a técnica de pesquisa a ser adotada será a bibliográfica (doutrinas, revistas científicas, legislações, dissertações, etc.).
Ao final da pesquisa, conclui-se que, não constitui ato ilícito o abandono afetivo paterno-filial, portanto, não cabe responsabilidade civil, uma vez que, conforme compactua a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, o dever dos pais é de sustento, criação e educação e no que concernem os laços afetivos se restringe a convivência e as particularidades de cada família.
Por conseguinte, o Estado não tem o poder de interferir no espaço privado do ser humano, isso se reporta a judicialização do afeto, que acarreta sérias consequências, por meio de decisões excessivas ou injustificadas, uma vez que, a medição do afeto é complexa e atende as características individuais de cada indivíduo.
Desta forma, no primeiro capítulo abordará a respeito da relação do princípio da afetividade e da solidariedade no contexto familiar brasileiro. E no segundo o instituto jurídico da responsabilidade civil e a problemática da judicialização no direito de família brasileiro. Por fim, o objetivo do último capítulo é de aprofundar sobre a responsabilização civil em face do abandono afetivo paterno-filial e os limites da intervenção judicial frente ao abandono afetivo dos genitores.
2 A FAMÍLIA E O PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE E SOLIDARIEDADE
O poder familiar consiste num conjunto de direitos e obrigações que os pais possuem diante dos filhos menores, e é exercido em igualdade de condições. Nota-se que a dissolução do casamento ou união estável não altera a titularidade desse direito-dever, uma vez que, o poder familiar está ligado a filiação e não ao vínculo matrimonial. Informa-se também que, quando houver divergência entre os pais quanto ao exercício desse poder, a esses são lhe facultado o direito de recorrer ao judiciário, que buscará uma solução para o caso concreto (ARAÚJO JUNIOR, 2016).
É no artigo 1.632 do Código Civil de 2002 que ratifica que independente do vínculo conjugal a relação entre pais e filhos permanecerá, pois é dever dos pais de zelar pela criação e dignidade de seus filhos. Como ratifica o referido artigo infraconstitucional: “a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos” (BRASIL, 2002, p. 01).
Tartuce (2020) sobre o respectivo dispositivo civilista informa que, acaba por trazer um direito à convivência familiar, e ao seu lado o dever dos pais em terem os filhos em sua companhia. De maneira que, para o doutrinador esse fundamento corrobora para a sustentabilidade da caracterização da responsabilidade civil por abandono afetivo, pois a companhia inclui o afeto, a interação entre pais e filhos.
Dessa forma, o dever de cuidar dos pais está intimamente ligado ao poder familiar, pois esse poder é decorrente do vínculo jurídico da filiação, ao qual, advém da ideia de uma família democrática, de colaboração familiar e as relações são pautadas no afeto.
Nessa perspectiva a autoridade parental tem que se pautar de acordo com o melhor interesse da criança. Enquanto, os filhos menores estão sujeitos ao poder familiar (art. 1630 Código Civil). Porquanto, o Código Civil, em seu artigo 1.634 expõe a responsabilidade dos pais no exercício do poder familiar:
Art. 1.634 do Código Civil, com a redação dada pela Lei n. 13.058/2014, enumera os direitos deveres que incumbem aos pais, no tocante à pessoa dos filhos menores:
“I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584;
III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
IV- conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior;
V conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;
VI- nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
VII - representá-los, judicial e extrajudicialmente, até os dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
IX - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”(BRASIL, 2002, p. 01).
Verifica-se que, a criação e a educação é um dever dos pais, e está intrínseco a responsabilidade cotidiana na relação paterno-filial. Gonçalves (2017, p. 689) informa que: “o instituto em apreço resulta de uma necessidade natural. Constituída a família e nascidos os filhos, não basta alimentá-los e deixá-los crescer à lei da natureza, como animais inferiores. Há que educá-los e dirigi-los”.
Os deveres dos pais para com os filhos envolvem ações que objetiva a educação e a criação de seus filhos para a cidadania e o desenvolvimento pleno e sadio. Nesse sentido, no artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente estão normatizados alguns deveres do exercício do poder familiar, que “aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais” (BRASIL, 1990, p. 01).
Enquanto, aos filhos cabe a obediência, o respeito e os serviços próprios de sua idade e condição, conforme preceitua o artigo 1.634 do Código Civil de 2002, inciso IX (BRASIL, 2002). Além disso, é direito dos filhos de frequentar a rede regular de ensino (art. 53 ECRIAD), e aos pais a obrigação de matricular e acompanhar sua frequência e aproveitamento escolar (art. 129 inciso V ECRIAD) (BRASIL, 1990).
Nessa linha, nas justificativas da proposição é expresso que o termo poder familiar e a relação dos direitos e deveres paterno-filiais e a autoridade se compactua com o princípio de melhor interesse dos filhos, além de contemplar a solidariedade familiar e também o princípio da afetividade, que tem por premissa o exercício da dignidade da criança e do adolescente, para que se cresça numa ambiente sadio e seguro (RAMOS, 2016).
Isto demonstra que o princípio da solidariedade familiar está condicionado com o dever de cooperação mútua entre os membros da família para viabilize o desenvolvimento imaterial, que é o afeto; bem como o sadio crescimento do indivíduo (alimentação, educação, saúde, etc.) (TORRES, 2020).
Tartuce (2020) assevera que, o ato de ser solidário tem por essência a empatia pelo outro, remetendo a solidariedade no tocante ao direito das obrigações. É o ato de se preocupar pelo outro indivíduo. E no campo familiar num sentido de amplitude envolve o aspecto afetivo, social, moral, patrimonial, espiritual, etc.
Assim, a solidariedade tem sua origem nos vínculos afetivos, que compreende a fraternidade e a reciprocidade. Esse princípio tem assento constitucional, uma vez que, no preâmbulo da Constituição Federal assegura uma sociedade fraterna. A família consiste numa das técnicas originárias de proteção social que se mantém na atualidade e a legislação normatiza a solidariedade que existe no âmbito das relações familiares, pois quando se há deveres recíprocos entre os integrantes familiares, a responsabilidade recai sobre os integrantes da família, depois a sociedade e o Estado (DIAS, 2016).
Na família a solidariedade passa a ser denominada de solidariedade familiar, ao qual deriva da convivência e da afetividade. E mesmo havendo a dissolução da família a solidariedade permanece, em especial com relação a alimentos, ao cuidado e demais necessidades daqueles que mesmo com a ruptura dos laços conjugais precisam de sustento e de criação, que nesse caso são os filhos (TORRES, 2020).
A imposição dos pais de prover a assistência aos filhos, a obrigação alimentar e o amparo aos indivíduos idosos na família são exemplos do princípio da solidariedade familiar (DIAS, 2016). Que tem por essência os deveres recíprocos entre os integrantes do grupo familiar, garantindo assim, a dignidade de cada ente familiar.
Dolce (2018, p.49) destaca que:
[...] sob o ponto de vista jusnaturalista, influenciado pelo estudo das ciências da natureza, surge a noção de que a hierarquia que os pais detém sobre os filhos deriva do fato de terem mais experiência. Trata-se, portanto, de autoridade natural que não se justifica pelo arbítrio absoluto, mas deriva do fato de serem os genitores a causa de sua existência da prole. Surge a noção de que os pais possuem responsabilidade pela necessidade dos filhos.
Dessa forma, o Código Civil de 2002 deixou explícito o exercício do pátrio poder, com o objetivo de atender os preceitos constitucionais que normatiza a igualdade de direitos e também de obrigações entre os pais perante os filhos menores. Consistindo em responsabilidades na criação dos filhos perante a sociedade (DOLCE, 2018).
Já o princípio da afetividade é apontado na atualidade como um dos principais fundamentos nas relações familiares. Mesmo que esse princípio não esteja expressamente normatizado na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental, afirma-se que é decorrente da dignidade da pessoa humana e também da solidariedade (TARTUCE, 2022).
Ramos (2016) informa que, o princípio da afetividade especializa, no campo das relações familiares, o macro princípio da dignidade da pessoa humana que preside todas as relações jurídicas, potencializando o direito a convivência, aos cuidados e ao crescimento sadio e digno na criação dos filhos.
Verifica-se que, o princípio da afetividade advém de um processo histórico de conquista na sociedade brasileiro, pois com a quebra de paradigmas na legislação familiar nesse país, possibilitou traços fortes da valorização do afeto e das relações familiares múltiplas ao qual distanciou do emblema de uma entidade familiar patrimonialista. Atualmente, as relações familiares estão pautadas na afetividade, ao qual, sejam pessoas do mesmo sexo, entre mulher e homem, pela comunhão de vida, ou pela reciprocidade entre seus integrantes (TARTUCE, 2020).
A família na atualidade tende a ser cada vez mais o espaço para aflorar a afetividade, contribuindo para que homens e mulheres cresçam psicologicamente sadios, com autoestima e identidade. É nessa perspectiva que se fundamenta a construção da afetividade, uma vez que, se fundamenta na enorme diversidade de tipos de família, pois o liame biológico não é o único fundamento de vínculo familiar (COELHO, 2012).
Porquanto, a afetividade “[...] é o princípio que fundamenta o direito das famílias na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia em face de considerações de caráter patrimonial ou biológico” (DIAS, 2016, p. 58), nesse contexto, o direito ao afeto é relacionado ao direito à felicidade, porquanto, o Estado tem por dever de propiciar políticas públicas para tenham uma vida digna e plena. E no âmbito familiar os laços de afeto derivam da convivência familiar e não do sangue e a posse do estado do filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico (Estado) do afeto, com o objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado (DIAS, 2022).
É por isso, que no atual ordenamento jurídico brasileiro as relações interpessoais no seio familiar são fortificadas e a humanização dos vínculos ganha espaço, cabendo ao Estado, o dever de instituir e manter políticas públicas que tem por finalidade a preservação da família na sociedade.
Portanto, o crescimento do princípio da afetividade nas relações familiares fundamentada numa análise jurídica em que o Estado não está alheio aos relevantes aspectos dos relacionamentos familiares e sua importância para a sociedade. De modo que, a afetividade é um princípio implícito tanto na Carta Magna de 1988 quanto no Código Civil de 2002, derivado das mudanças de paradigmas sociais e fortemente discutido na seara legislativa, doutrinária e jurisprudencial.
3 A RESPONSABILIDADE CIVIL E A JUDICIALIZAÇÃO NO DIREITO DE FAMÍLIA
A palavra responsabilidade tem sua origem no latim res-pondere, que tem por significado “segurança ou garantia de restituição ou compensação do bem sacrificado”. Assim, o termo implica na obrigação de restituir ou ressarcir algum dano (GONÇALVES, 2017). De modo que, a responsabilidade civil advém de um descumprimento obrigacional, ou até mesmo pela omissão de um indivíduo de um preceito normativo.
Cavalieri Filho (2012) primeiramente reporta sobre o dever jurídico, é a conduta externa de um indivíduo estabelecida pelo Direito Positivo por necessidade da convivência em sociedade. Não consiste em uma simples recomendação, e sim em uma ordem direcionada à vontade dos indivíduos, de maneira que a imposição dos deveres jurídicos é direcionada na criação de obrigações.
Assim, é responsável todo aquele que está submetido a esta obrigação de reparar ou de sofrer a pena. Há uma infração, seguida de uma reprovação, que conduz o juízo de imputação a um juízo de retribuição. O acoplamento entre as duas obrigações, a de agir em conformidade com a lei e a de reparar o dano ou a cumprir a pena, culminou na inteira moralização e juridicização da imputação (ROSENVALD, 2017).
Neste contexto, o núcleo jurídico da responsabilidade civil no Brasil se encontra nos artigos 186,187 e 927 do Código Civil Brasileiro de 2002, que in verbis:
Art.186 – Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ilícito.
[...]
Art.187 – Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
[...]
Art. 927 – Aquele que, por ato ilícito (arts.186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único- haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem (BRASIL, 2002, p. 01).
É notório que, a responsabilidade civil só se caracteriza quando há a incidência de um dano a reparar, consistindo no pressuposto central deste instituto jurídico. Porquanto, o dano é uma lesão a quaisquer bem ou interesse jurídico, seja esse patrimonial ou moral. É por isso, que, a responsabilidade civil tem por essência três funções, a primeira é a reparatória (pelos prejuízos decorrentes da lesão ao direito) a segunda é a preventiva (que se caracteriza pelo desestimulo da ocorrência da prática lesiva) e a terceira punitiva (desfalque patrimonial) (MATTOS, 2012).
Gonçalves (2017, p. 44) informa que:
Toda atividade que acarreta prejuízo traz em seu bojo, como fato social, o problema da responsabilidade. Destina-se ela a restaurar o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor do dano. Exatamente o interesse em restabelecer a harmonia e o equilíbrio violados pelo dano constitui a fonte geradora da responsabilidade civil. Pode-se afirmar, portanto, que responsabilidade exprime ideia de restauração de equilíbrio, de contraprestação, de reparação de dano. Sendo múltiplas as atividades humanas, inúmeras são também as espécies de responsabilidade, que abrangem todos os ramos do direito e extravasam os limites da vida jurídica, para se ligar a todos os domínios da vida social (grifo do autor).
Salienta-se que no campo do direito de família a responsabilidade civil é de extrema importância sua aplicação, uma vez que, sua aplicabilidade levanta várias reflexões, podendo ser decorrente do abandono afetivo; das agressões físicas e ou psíquicas; a quebra de promessa de noivado; bem como de situações derivadas do casamento, como por exemplo, a traição, a alienação parental; ou também sobre a filiação, os alimentos e a possibilidade de ressarcimento daquele terceiro que pagou no lugar do verdadeiro pai, etc. (ALMEIDA, 2015).
Assim, a responsabilidade civil é derivada na perspectiva do dano causado, ao qual tem um caráter de imputabilidade dentro do espaço familiar, trabalhando no pressupostos de causa-consequência, direito-deve de reciprocidade e no papel desempenhado de cada integrante familiar (SANCHES, 2013).
De maneira que dentro as diversas circunstâncias que pode se caracterizar a responsabilidade civil no direito de família, a questão do dano material é um tema bastante recorrente no direito brasileiro, que ocasiona vários debates tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Uma vez que, envolve os direitos e deveres inerentes dos indivíduos nas relações familiares e também preceitos constitucionais, tais como, a intimidade, a dignidades da pessoa humana, o dever de assistência, de fidelidade, a solidariedade, dentre outros, além dos sentimentos e as situações subjetivas que são encontradas nos casos concretos (ALMEIDA, 2015).
Cadin (2012) reponta que a família não pode ser vista como um instituto alheio ao Estado de direito, onde se suspendem as garantias individuais, é por isso que se deve reconhecer a aplicação das normas gerais da responsabilidade civil quando um membro desse núcleo, através de um ato ilícito, atinge um legítimo interesse extrapatrimonial de outro membro familiar. Visto que, a reparabilidade do dano moral funciona como uma maneira de fortalecer os valores atinentes à dignidade e ao respeito humano, pois no entendimento de que nada destrói mais uma família do que um dano causado pelos seus próprios membros.
Portanto, a responsabilidade civil no direito de família é uma proteção do princípio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Ao qual resguarda os direitos e deveres de cada indivíduo no âmbito familiar. Contudo, cabe ao juiz ponderar os valores éticos em conflitos, e também as provas devem ser analisadas de forma integra, para que não aconteça a banalização do dano moral, pois o relacionamento familiar não é permeado apenas por momentos felizes, mas também por sentimentos negativos, que faz parte da natureza humana.
3.1 RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO: POSIÇÃO DOUTRINÁRIA
O direito de família no século XX passou por profundas transformações, desde a extinção da ilegitimidade filial ou até mesmo o distanciamento da família moldada no patriarcalismo, uma vez que, o liame biológico cada vez mais abre espaço para o reconhecimento do afeto como valor jurídico e também para o conjunto de condutas inerentes ao exercício do poder familiar (DOLCE, 2018).
É nesse ambiente de transformações sociais que influi diretamente nas relações familiares, o qual se tem o debate sobre a questão do afeto como um dever jurídico e se de fato essa negativa, caracteriza-se como um ato ilícito e de responsabilização civil, no âmbito da relação paterno-filial (SAMPAIO, 2018).
No aspecto doutrinário, o debate fica evidente quando há posicionamentos favoráveis e também contrários no tocante a caracterização da responsabilidade civil por abano afetivo paternal.
Dias (2016) entende que, o conceito atual de família é centrado no afeto como elemento agregador e o ordenamento jurídico brasileiro exige o dever de criar e educar os filhos sem que seja omitido o carinho necessário para a formação plena de sua personalidade. Não se pode mais ignorar essa realidade, tanto que atualmente já se fala sobre a paternidade responsável. Porquanto, a convivência entre pais e filhos não está no campo dos direitos e sim dos deveres, uma vez que, não existe o direito de visitá-los, mas a obrigação de conviver com seus filhos.
Sampaio (2018, p. 39) destaca que:
Por essa razão, visa-se demonstrar princípios, valores e deveres trazidos pela Constituição de 1988, que fundamentam a possibilidade de indenização por danos morais para os filhos que sejam vítimas de abandono afetivo. Afinal de contas, abandonar afetivamente as crianças significa criar uma sociedade doente e abandonada à sua própria sorte.
É nítido que o distanciamento entre pais e filhos tem por consequências de ordem emocional e compromete o desenvolvimento sadio da criança e do adolescente, de maneira que, o sentimento de dor e abandono implica em sérios reflexos na vida desses filhos. Dessa forma, o abandono afetivo pode gerar obrigação indenizatória, pois o genitor possui como encargos decorrente do poder familiar a criação e o acompanhamento do crescimento de seus filhos, tal comprovação tem levado o reconhecimento da obrigação indenizatória por abano afetivo (DIAS, 2016).
A vertente favorável defende que, o ato ilícito se caracteriza pela omissão na prestação dos deveres de cuidado e convivência com o filho menor, que são inerentes ao poder familiar. Uma vez que, configurada a omissão das condutas objetivas e caracterizadoras do afeto, caracteriza-se o comportamento antijurídico por parte do genitor, sendo necessária a reparação civil ao filho menor.
Nesse sentido Dolce (2018, p. 106) informa que:
No que diz respeito ao abandono afetivo, conforme já vimos anteriormente (item 3.3.1), o ato ilícito se consubstancia na omissão ao cumprimento dos deveres de contato, convivência e cuidado com o filho menor.
A conduta voluntária, por sua vez, está consubstanciada na ação consciente de deixar de cuidar, passar tempo e zelar pelo filho menor, como atribui o poder familiar. O potencial dano moral que este pode experimentar em virtude de tal conduta é, igualmente previsível, assim como igualmente presente a violação do dever de cuidado, consubstanciado neste caso na negligência, ou descuido no cumprimento da obrigação.
Desta forma, para que seja caracterizada culpa (negligência) hábil a autorizar a reparação civil do abandono afetivo, é necessário que o genitor adote a conduta passiva, de se omitir, de forma consciente, à prestação dos deveres de contato, convivência e cuidado.
Na doutrina brasileira, Dias (2016, p. 130) destaca que:
A busca de indenização por dano moral transformou-se na panaceia para todos os males. Há uma acentuada tendência de ampliar o instituto da responsabilização civil. O eixo desloca-se do elemento do fato ilícito para, cada vez mais, preocupar-se com a reparação do dano injusto. De outro lado, o desdobramento dos direitos de personalidade faz aumentar as hipóteses de ofensa a tais direitos, ampliando as oportunidades para o reconhecimento da existência de danos. Visualiza-se abalo moral diante de qualquer fato que possa gerar algum desconforto, aflição, apreensão ou dissabor. Esta tendência acabou se alastrando às relações familiares, na tentativa de migrar a responsabilidade decorrente da manifestação de vontade para o âmbito dos vínculos afetivos. No entanto, o direito das famílias é o único campo do direito privado cujo objeto não é a vontade, é o afeto. O amor está para o direito de família assim como o acordo de vontades está para o direito dos contratos. Ou seja, se busca transformar a desilusão pelo fim do amor em obrigação indenizatória.
Já a vertente contrária entende que o afeto possui uma dimensão plúrima, marcada por laços psicológicos que propicia no indivíduo um caráter espontâneo e anímico, portanto, não configura um conceito jurídico. As reações afetivas se situam fora do contexto arbitral do sujeito, é dada de complexidade e elevada subjetividade, destinada numa perspectiva biológica, antropológica, cultural e social. Por isso, é de dificuldade se medir as manifestações emocionais e afetivas do ser humano. Assim, o cuidado parental não se confunde com o afeto, mesmo que possa decorrer dos laços afetivos (VASCONCELOS, 2020).
Vasconcelos (2020, p. 400) ainda informa que: “racionalizar o afeto impõe um trato de aparência, portanto, não construído ou desenvolvido no decurso natural da relação parental conferindo um verniz de objetividade que não desnatura [...]” a essência do sentimento, ou seja, não resgatar ou transforma verdadeiramente a relação paterno-filial.
O Estado não pode interferir na subjetividade do afeto, pois no ordenamento jurídico o que se vislumbra é a liberdade de dar afeto, assim, não cabe à abordagem do afeto como um direito do menor, pois, os deveres inerentes ao poder familiar não pode invadir a subjetividade dos laços afetivos. Nesse aspecto, os deveres dos pais decorrentes do poder familiar consistem na educação, criação, direção, alimentos, direitos sucessórios, etc. que são encontrados nos artigos 1.634 do Código Civil de 2002 e nos artigos 227 e 229 da Carta Magna de 1988 (MOREIRA, 2014).
Portanto, em relação esses dilemas que se verifica a dificuldade de medição e verificação do nexo causal entre o abandono afetivo e o dano apresentado no ambiente judiciário brasileiro. Além disso, outro dilema é a questão da banalização do dano moral, que para a resolução do conflito recai sobre a capitalização do afeto para o tratamento das relações familiares.
3.2 RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO: POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA
A respeito da responsabilidade civil no tocante ao abandono afetivo advindo da ruptura dos laços parentais na sociedade brasileira, nota-se que é um assunto bastante atual e que ainda não é pacificado no sistema jurídico brasileiro. Ao longo da pesquisa científica, verificou-se que, o princípio da afetividade ganhou espaço na esfera familiar, tanto que, há vários julgados e citações doutrinárias sobre esse princípio.
Quanto à afetividade Torres (2020) informa que na esfera familiar esse princípio está despontando, ora permissivo para identificação de novas construções familiares, ora como restrição para sua identificação. Não há um parâmetro, um critério para o uso desses preceitos, o que pode causar insegurança jurídica ou mesmo impedir a inovação do ordenamento jurídico, devendo o direito acompanhar a realidade social.
Verifica-se que, a dada complexidade da demonstração da ilicitude e da ocorrência do dano e o nexo de causalidade, faz com que haja tanto jurisprudências que acata o abandono como um ato ilícito quanto rejeita esse entendimento. De modo que, o entendimento abaixo vislumbra o caso do acatamento da ilicitude do abandono afetivo, porém o recurso foi desprovido por que no entendimento do juiz não encontrou indícios palpáveis do respeito abandono do genitor.
TJ – MG PROCESSO APELAÇÃO Nº 1.000.22.092380-9/001
Relator(a): Des.(a) Fausto Bawden de Castro Silva (JD Convocado)
Data de Julgamento: 28/06/2022
Data da publicação da súmula: 06/07/2022
Ementa:EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO - RESPONSABILIDADE CIVIL - ATO ILÍCITO - NÃO COMPROVAÇÃO DA INTENÇÃO DE ABANDONO - DANOS MORAIS - NÃO CONFIGURADOS - SENTENÇA MANTIDA.
1.Para que se configure a responsabilidade civil, é imprescindível a demonstração da ilicitude da conduta, da ocorrência de dano e o nexo de causalidade.
2. No presente caso concreto, não é possível saber se o recorrido se esquivou do dever de cuidado inerente ao poder familiar ao tempo em que o autor era menor de idade, tampouco se deixou de valorizar os laços familiares, pelo que não se constata a ocorrência dos elementos norteadores da responsabilidade civil, e nem a prática de ato ilícito capaz de dar ensejo ao dever de indenizar, pelo que a improcedência do pedido se impõe.
3. Recurso desprovido (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS, 2021).
Nesse contexto, a jurisprudência também vem discutindo o afeto como elemento estruturador da família moderna e a sua ausência no âmbito das relações paterno-filiais, o que se percebe que há uma extensa discussão, tanto que, a presente matéria ainda não é pacificada. Dessa forma, em recentes julgados, no Superior Tribunal de Justiça há decisões que tanto ratificam a necessidade de punir moralmente os genitores que abandonam seus filhos e também decisões contrárias.
TJ – DF processo nº 0005355120168070017
Relator: Soníria Rocha Campos D´Assunção.
Data do julgamento:14/10/2021
PELAÇÃO CÍVEL. DIREITO DE FAMÍLIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO AFETIVO. DANO MORAL. INOCORRÊNCIA. 1. A configuração da obrigação de reparar dano moral no direito de família deve observar a mesma forma da responsabilidade civil em geral, ou seja, deve decorrer da demonstração dos seguintes requisitos estruturantes: conduta (comissiva ou omissiva), nexo de causalidade e dano por violação aos direitos da personalidade. 2. O dever de cuidado está relacionado ao sustento, à guarda e à educação dos filhos. O amor e o afeto não podem ser impostos pelo Estado e não consubstanciam deveres jurídicos. A manutenção dos laços afetivos depende da vontade das partes e não pode ser imposta pelo julgador. 3. O abandono afetivo, sem que descumprido o dever de cuidado dos genitores, não constitui ato ilícito, o que obsta a imposição de reparação por dano moral. 4. Apelação desprovida (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL, 2021, p. 01).
A matéria também foi analisada até o presente momento somente pelas duas turmas do Superior Tribunal de Justiça, Terceira e Quarta Turma. A primeira decisão foi julgada em 29 de novembro de 2005, pela Quarta turma, Resp. 757.411-MG, que negou a possibilidade de indenização nos casos de abandono afetivo, o entendimento é de que escapa ao arbítrio do judiciário de obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo, não havendo possibilidade de indenização (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2022).
Já a Terceira turma, acatou a tese do abandono afetivo, ao qual, entende que a omissão do genitor no dever de cuidar da prole constitui elemento suficiente para caracterizar dano moral compensável, no Resp. 1.159.242-SP, julgado em 24 de abril de 2012. Posteriormente, última decisão sobre esse tema foi publicada pela Quarta Turma, em 19 de outubro de 2017, que negou o provimento ao recurso, com base na impossibilidade de se exigir cuidado afetuoso parental, Resp. 1.087.561-RS (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2022).
Verifica-se que há um conflito entre as duas turmas do Superior Tribunal de Justiça, uma vez que, demonstra até que ponto o Estado pode atuar nos conflitos gerados nos relacionamentos entre pais e filhos, no sentido, que há a questão da judicialização nas relações familiares, ao que pese que o limite de atuação do Poder Judiciário no tocante aos resultados objetivos na resolução de conflitos que pertencem à ordem subjetiva, podendo até mesmo extrapolar suas funções.
É por isso, que o objetivo desse estudo científico consiste em analisar a atuação se de fato incide o dever de indenizar o genitor pelo abandono afetivo e se o Estado tem competência de exigir laços afetivos entre pais e filhos. Consistindo num tema bastante atual e também polêmico, pois evidencia também até onde se estende o campo de atuação do Poder Judiciário nas relações de afeto paterno-filiais.
4 DA RESPONSABILIDADE CIVIL EM FACE AO ABANDONO AFETIVO E A INTERVENÇÃO JUDICIAL: UMA ANALISE SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DO AFETO
A responsabilidade é um instituto civilista incluído no ordenamento jurídico brasileiro que objetiva a reparação do dano injusto, e seu valor na sociedade é reportado no sentimento de realização de justiça. Visto que, o agente causador do ato ilícito que infringiu direito de outro indivíduo tem por dever de reparar o presente dano, para que haja o equilíbrio jurídico de não prejudicar a outrem. Nesse sentido, Mattos (2012, p. 33) informa que:
A construção permeada pela afirmação dos direitos fundamentais constitui o dado ético dessa realidade, contexto no qual a responsabilidade civil se apresenta como mecanismo de efetivação dos direitos fundamentais, o que se propõe a fazer, numa construção de pilares se darão revisitando categorias como o dever jurídico, a autonomia privada, o dano, o ato jurídico e o dever de reparação.
Dessa forma, o objetivo é o estabelecimento do equilíbrio que antes do dano causado existia, promovendo por meio da responsabilidade civil a construção dos pilares relacionados aos direitos fundamentais que são o dever jurídico, o dano, o ato jurídico e a reparação. Por isso, a responsabilidade civil conquistou vários espaços no sistema jurídico brasileiro, que ao longo do século XX alcançou diversas áreas do direito. Dentre elas, se encontra o Direito de Família, que por sua vez, é o instituto do Direito Civil, que no respectivo século mais sofreu alteração, deixando de possuir normas extremamente patriacarlista para disciplinar sobre os novos moldes contemporâneos familiares.
Harmatiuk (2021, p. 55) aborda que:
Como se sabe, tais fatores alteraram-se radicalmente nas últimas décadas e um novo modelo, que vem sendo chamado de “democrático”, corresponde, em termos históricos, a manifesta mudança, com a inserção, no ambiente familiar, de princípios constitucionais tais como a solidariedade, a igualdade e a liberdade. Ao modelo tradicional contrapôs-se o modelo de família democrática, onde não há direitos sem responsabilidades, nem autoridade sem democracia.
A passagem da família-instituição à família democrática, isto é, aquela que busca propiciar um ambiente adequado ao desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros suscitou a maior autonomia dos membros da família. A disseminação do divórcio, por outro lado, fez com que o casamento deixasse de representar, como antes, um assunto pertencente ao universo dos parentescos de origem. A perda do caráter único da relação mudou a sua qualidade, a sua natureza e o seu significado, tornando-os menos abrangente em suas implicações sociológicas. Essas consequências, quais sejam, a autonomia dos membros da família e a mudança de seu eixo central, são de grande relevo para o tratamento da responsabilidade civil nas relações familiares.
A essa mudança se deve a promulgação da Constituição Federal de 1988 que positivou os direitos sociais e a dignidade da pessoa humana, bem como, a valorização de cada ente familiar, trazendo a proteção civil dos membros da família, tanto no aspecto social e exterior quanto entre abusos cometidos entre os próprios integrantes.
Informa-se que no âmbito da aplicabilidade da responsabilidade civil no direito de família, tem-se a questão do abandono afetivo, que por não haver previsão legal, ainda é bastante debatido nas doutrinas e jurisprudências no Brasil. O que se verifica que, com a Carta Magna de 1988, a criação dos filhos passou a ter novos limites, principalmente naquilo que se determina o artigo 227, ao determinar o dever de colocá-los a salvo de toda negligência, discriminação, exploração, violência, etc. (BRASIL, 1988).
Observa-se que a Carta Magna de 1988 propiciou um ato normativo em aberto para proteger a criança e ao adolescente, que pode até mesmo ser aplicados aos pais ou responsáveis, que tenham o Poder Familiar. Contudo, no ordenamento jurídico há um embate no tocante a responsabilidade civil entre a extensão do dever do cuidado, a autonomia dos pais e os direitos de personalidade e também a dificuldade de averiguar quais condutas dos pais são causadoras do dano relacionado ao desenvolvimento de seus filhos (HARMATIUK, 2021).
Verifica-se que, essas questões propiciaram um racha no Superior Tribunal de Justiça, em que há duas turmas com entendimento opostos sobre o respectivo tema, uma vez que, para a terceira turma posiciona de que o abandono afetivo é um ato ilícito e merece reparação civil e a quarta turma não vislumbra o ato ilícito do pai, que garante a subsistência e educação de sua prole (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2022).
Primeiramente, para averiguar se de fato o abandono afetivo constitui um ato ilícito, há necessidade de analisar o que constitui um ato ilícito e se o abandono afetivo se enquadra em seus parâmetros. Desta forma, o ato ilícito se configura por meio de quatro requisitos. O primeiro, a violação a uma norma jurídica; o segundo, a conduta do agente causador do dano; o terceiro, a imputabilidade (consciência do agente) e por fim, a violação de direito alheio (GONÇALVES, 2012).
Porquanto, para que o abandono afetivo seja considerado um ato ilícito há a necessidade de constituir esses preceitos jurídicos. Por isso, o ato ilícito cometido pelos pais que abandona afetivamente seus filhos é um tema controverso e polêmico. Contudo, a linha mais plausível é o do pensamento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, uma vez que, o dever dos pais ou daqueles que detém o Pátrio Poder é de sustentar, guardar, criar e educar e no caso dos laços de afetividade e convivência se restringe nas circunstâncias familiares de cada família.
Nesse aspecto, há uma proteção da autonomia e dos direitos de personalidade dos pais, que por sua vez o dever dentro Pátrio Poder é de sustentar, educar, e na criação, de modo que, as demais peculiaridades da vida privada de cada família não competem ao judiciário, e não estão respaldadas na responsabilidade civil.
Lima (2016, p. 111-112) defende que:
Com o advento da Constituição Federal, em 1988, a compreensão dos deveres parentais não se alterou. A doutrina pesquisada reconhece que as normas constitucionais atuais promoveram uma modernização do Direito de Família, por meio, inclusive, da inserção de novos princípios que afetam essa disciplina jurídica (tal como o princípio da igualdade entre homens e mulheres), mas não menciona o dever de cuidado como uma expressão decorrente do texto constitucional. Deduz-se que o cuidado afetivo dos pais com relação aos filhos é tido como uma questão moral. A falha ao prestar assistência afetiva ao filho é vista como causa de destituição do poder familiar, mas não como fonte de responsabilidade civil.
Verifica-se que a respectiva problemática abordada desafia o pensamento entre a linha tênue do Direito e a Moral. Deve-se ponderar a relevância desse limite, pois é a partir desta separação que se limita a interferência Estatal no âmbito privado dos indivíduos e se evita a judicialização do afeto, acarretando a regulação excessiva e injustificada do comportamento da pessoa. O Direito deve regular o comportamento humano na medida em que haja fundamento plausível e previsto em lei para tanto e que seja possível universalizar a desejada regulação. Assim, cumpre examinar, se tal é viável no caso da imposição de um dever do afeto (LIMA, 2016).
Dessa forma, o debate da propositura da responsabilidade civil diante do abandono afetivo possui o respectivo obstáculo, uma vez que, não existe um consenso da violação de um dever preexistente no ordenamento jurídico, pondo em cheque a ilicitude da conduta. A legislação vigente não prevê a necessidade do filho de ser amado pelos pais, mas sustenta a necessidade de proteção da criança e do adolescente e a função do pátrio poder de propiciar condições dignas do desenvolvimento físico e psíquico do indivíduo.
Porquanto, o planejamento familiar em nosso ordenamento jurídico é livre, contudo a paternidade deve ser exercida atendendo ao princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, aqueles que não querem se comprometer com o mínimo de assistência e criação que não tenham filhos. Mas importante destacar que, o afeto não se pode ser monetizado ou imposto pelo Estado, o que se configura é o dever de sustento, criação, educação e guarda (CARDIN, 2012).
Por isso, há uma nítida separação entre a necessidade de afeto e a garantia de proteção da criança e do adolescente. Nota-se também que há uma pluralidade nas relações familiares, e o conceito de culpa e de ato ilícito se torna abstrato e é recorrente a análise individual de cada magistrado. Uma vez que, ao adentrar no campo individual de cada família, é dificultoso estabelecer quais práticas são negligentes, ou de obrigar ao genitor no ressarcimento em pecúnia por não conviver com seu filho.
Nesse sentido, Lima (2016) informa que:
Contudo, ainda que se garantisse a qualidade formal dos fundamentos sobre o tema, entende-se que é inviável falar-se em obrigação jurídica que tenha por conteúdo o afeto sem que se admita uma indesejável invasão do Direito sobre o campo da Moral, pois o Estado estaria legitimado a invadir a esfera da intimidade e da própria psique humana. Ademais, questiona-se a possibilidade de se impor a alguém dever jurídico de difícil (se não impossível) verificação a respeito de seu adimplemento, o que abala a segurança jurídica. O afeto não é fenômeno apto a ser apreendido pela norma jurídica. Persistir na tentativa de regulá-lo poderá representar a multiplicação de decisões judiciais incoerentes e desprovidas de universalidade.
Nesse contexto, não há como o Estado exigir o dever do amor ou afeto, mas sim, o dever de zelar, de criar e prover condições dignas de criação aos seus filhos, uma vez que, a matéria da convivência familiar não é regulada ou imposta pelo Estado, pois se encontra dentro do âmbito familiar. Assim, a análise da inserção da responsabilidade civil em detrimento do abandono afetivo se dissolve com base de que não existe um dever jurídico preexistente do afeto, e sim do sustento, da guarda e da educação, portanto, não se configura um ato ilícito, não existindo respaldo de indenização.
Atualmente não há uma legislação clara que sustente além dos deveres de sustento, guarda e educação, o dever de indenizar os pais pela falta de afeto. O que há no presente momento projetos legislativos que tem por objetivo de inserir no ordenamento jurídico brasileiro. Assim, merece destaque dois projetos de leis que estão em tramitação no Congresso Nacional.
O primeiro projeto de lei é o de nº 4.229 de 2019, de iniciativa do Senador Lasier Martins, do Partido Podemos. O respectivo projeto de Lei tem como finalidade de alterar os dispositivos da Lei nº 10.741 de 2003 (Estatuto do Idoso) o qual disporá sobre o direito da pessoa idosa à convivência familiar e comunitária, prevendo a responsabilidade civil por abandono afetivo. Também sustenta a responsabilidade civil subjetiva dos filhos no caso de descumprimento do dever de cuidado e amparo (SENADO FEDERAL, 2019).
O segundo é o projeto de lei de nº 3.212-A, de 2015. Tendo como relator, o Deputado Alan Rick. O principal objetivo desse projeto de lei é alterar a Lei nº 8.069, de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) para que se inclui a caracterização do abandono afetivo como ilícito civil, tendo já realizado o parecer e aprovado pela Comissão de Seguridade Social e Família (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A responsabilidade é um instituto civilista que tem por finalidade de reparar um dano injusto, fundamento esse incluído no ordenamento jurídico brasileiro. No âmbito da aplicabilidade do direito de família, tem-se atualmente a divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a sua aplicabilidade no que diz a respeito do abandono afetivo do paterno-filial, uma vez que, não há previsão legal.
Desta forma, o presente estudo analisou a admissibilidade do instituto jurídico da responsabilidade civil dos genitores por abandono afetivo no âmbito do direito de família. Realizando a seguinte problemática: Até que ponto, o Poder judiciário pode interferir nas relações paterno-filiais, principalmente no poder de responsabilizar civilmente o genitor pela omissão ao afeto na criação de seus filhos?
Como resposta a respectiva problemática elencada o desafio do Poder Judiciário se encontra entre a linha tênue do Direito e a Moral, pois é mediante a essa separação que há o limite entre a interferência desse poder na vida privada, e também no aspecto da judicialização do afeto, tendo como decisões excessivas ou injustificadas.
Por isso que conforme o pensamento da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, não compete ao Estado responsabilizar os pais por dano relacionado ao abandono afetivo. De maneira que, o dever de sustentar e de criação já é respaldado juridicamente, e nos casos de laços de afetividade se enquadra dentro da circunscrição de cada família.
Há nesse aspecto, uma proteção da autonomia dos direitos de personalidade dos pais, e as peculiaridades da vida privada, uma vez que, o abandono afetivo não configura como ato ilícito e, logo, não abrange o campo da responsabilidade civil. Assim, não tem como exigir do Estado o dever do amor ou afeto, mas sim, o dever de zelar pela criação e sustentação dos pais para com seus filhos.
Portanto, com a interferência do Poder Judiciário no ato de exigir o afeto propiciará o ferimento da dignidade da pessoa humana dos pais, pois ao obrigá-los a provar seus sentimentos em relação aos filhos respaldará no direito de personalidade, uma vez que, as relações afetivas e emocionais estão intrínsecas ao sujeito e não compete ao Estado exigir tais condutas.
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Graduanda em Direito. Faculdade de Ensino Superior de Linhares.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: AREAS, Ita Elma Sepulchro Seidel. Abandono afetivo e a responsabilidade civil: uma análise sobre a judicialização do afeto Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 nov 2022, 04:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60324/abandono-afetivo-e-a-responsabilidade-civil-uma-anlise-sobre-a-judicializao-do-afeto. Acesso em: 22 nov 2024.
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