RESUMO: Este trabalho busca alcançar uma definição mais clara sobre o discurso de ódio e eleva os limites da liberdade de expressão em face do discurso intolerante. Da mesma forma, estuda as diferentes respostas oferecidas pelo ordenamento jurídico para o impacto das redes sociais e da Internet. O objetivo deste trabalho é analisar a doutrina e a jurisprudência sobre discurso de ódio como limite à liberdade de expressão, tentando encontrar algumas diretrizes que permitem traçar uma resposta a este paradoxo. A metodologia da pesquisa foi da revisão da literatura em livros e artigos que tratam do tema. Os resultados apontam para uma análise dos fundamentos da liberdade de expressão, destacando as jurisprudências e a doutrina mais relevantes que servem de ponto de partida para a análise. Por fim, será analisado como esse tipo de discurso se configura no Brasil para ver como o Tribunal Constitucional, em certos casos, permitiu discursos que aos olhos das instituições de Direitos Humanos possivelmente violavam a dignidade humana.
Palavras-chave: Liberdade de expressão. Discurso do ódio. Estado Democrático de Direito.
ABSTRACT: This work seeks to achieve a clearer definition of hate speech and raises the limits of freedom of expression in the face of intolerant speech. Likewise, it studies the different responses offered by the legal system to the impact of social networks and the Internet. The objective of this work is to analyze the doctrine and jurisprudence on hate speech as a limit to freedom of expression, trying to find some guidelines that allow us to trace a response to this paradox. The research methodology was a literature review in books and articles that deal with the topic. The results point to an analysis of the foundations of freedom of expression, highlighting the most relevant jurisprudence and doctrine that serve as a starting point for the analysis. Finally, it will be analyzed how this type of discourse is configured in Brazil to see how the Constitutional Court, in certain cases, allowed discourses that in the eyes of Human Rights institutions possibly violated human dignity.
KEYWORDS: Freedom of expression. Hate speech. Democratic state.
1 INTRODUÇÃO
Atualmente o discurso de ódio tem se mostrado um conceito (ou expressão) tão complexo, sendo muitas vezes defendido de forma intensa e pouco elaborado, transformando-se em objetivo simplório, sem perceber que está em tensão com nada menos que o princípio da liberdade de expressão.
De tais expressões nascem, inicialmente, diversos problemas por relacionarem-se a outros termos utilizados historicamente para atacar membros ou grupos de pessoas identificados com determinadas características, por exemplo: o ódio racial, a difamação de grupo, a propaganda de ódio ou violência, etc.
As confusões iniciais são inevitáveis, pois o que se buscava nada mais era do que silenciar opiniões consideradas perigosas ou simplesmente incômodas ou geravam medos não devidamente fundamentados, como aqueles que defendem mudanças sociais ou econômicas muito radicais; ou ainda silenciar as críticas e punir os dissidentes, como ocorreu na Constituição Soviética de 1936, a qual procurou combater todas as formas de questionamento sancionando esse tipo de discurso.
Da mesma forma, a expressão mais difundida de discurso de ódio pode ser usada em pelo menos três sentidos: como simples referência a um discurso; como necessidade de combatê-lo e evitá-lo por meio da educação, sanção ética e social; como algo que deve ser punido criminalmente, ou seja, a criminalização do discurso de ódio. Muitas vezes não se identifica o sentido atribuído à expressão.
Pode-se encontrar um significado legal ao “discurso de ódio”, todavia seu uso atécnico carregado de conteúdo jornalístico ou político acaba sendo consumido, sem a apresentação de grau algum de precisão, apontando para algo amplo ou especialmente vago.
A questão, por sua vez, politizou-se a ponto de ideias favoráveis à criminalização do discurso de ódio serem comuns em certas posições, mais alinhadas à ideais centro-esquerda, diferentemente das visões de centro-direita que voltam suas preocupações à liberdade de expressão. Em todo caso, a questão não deve ser vista como visões opostas, já que nem sempre correspondem à posição política ou ideológica do sujeito. Às vezes, no imaginário popular, essas tendências políticas são apontadas, embora não sejam tão claras ou demonstráveis na realidade.
O discurso de ódio é percebido numa visão popular atual como aquele associado ao sujeito racista, homofóbico, islamofóbico, misógino, xenófobo, etc. Os valores invocados para questionar esse discurso são claros: são os ideais de tolerância, respeito e solidariedade, que dão a essa posição um fundamento ético rígido. Estes estão em aparente tensão com a liberdade de expressão.
Em alguns casos, aprecia-se uma forte imprecisão e até mesmo o esvaziamento do conteúdo da noção. Tal como acontece com a expressão fascista que, de um conteúdo preciso na primeira metade do século XX, tornou-se uma expressão muito vaga que, para alguns, hoje não passa de um insulto quase vazio. No mesmo sentido, em muitas ocasiões, o “discurso de ódio” é usado apenas como forma de estigmatizar aqueles que supostamente se envolveram nessa prática ou como justificativa ou pretexto para limitar o exercício da liberdade de expressão.
Essas concepções, que surgem como reação a uma realidade que desejam modificar, principalmente quando dotadas de fortes fundamentos morais, éticos e políticos, muitas vezes levam a excessos inaceitáveis. Os defensores da criminalização do discurso de ódio tendem a minimizar o peso desses exageros, apresentando-os como desenvolvimentos ruins que não invalidam o instrumento em geral. Alguns invocam os danos que o discurso de ódio causa em determinados grupos e seus membros e outros apontam para excessos inaceitáveis como os que serão vistos mais adiante.
Nota-se a ampla discussão do tema por juristas a nível mundial, pois ao passo que existem jurisprudências e leis que defendem a ampla proteção à liberdade de expressão, mesmo àquelas com ideias discriminatórias e detestáveis, como o racismo, xenofobia, LGBTFobia ou intolerância, há aquelas que acreditam não serem admitidas as manifestações envolvendo intolerância por violarem princípios fundamentais da convivência social, como a igualdade e a dignidade da pessoa humana (SARMENTO, 2006, p. 05-06)
Desta forma, este artigo teve como objetivo geral analisar a doutrina e a jurisprudência sobre discurso de ódio como limite à liberdade de expressão, tentando encontrar algumas diretrizes que permitam traçar uma resposta a este paradoxo. Como objetivos específicos, descrever os ditames da liberdade de expressão; identificar a natureza do discurso do ódio; descrever analiticamente os conflitos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema.
A metodologia foi da revisão bibliográfica em livros e artigos que tratam do tema. O método de abordagem foi o dedutivo, que tem como definição clássica ser aquele que parte do geral para alcançar o particular, ou seja, extrai o conhecimento a partir de premissas gerais aplicáveis a “hipóteses concretas”.
Em um cenário tão complexo, partiu da questão de qual é a regulação nacional que se aplica e deve ser considerada no estudo deste tema e quais as diferentes perspectivas para a análise desta questão, buscando seus principais fundamentos e consequências. Em seguida, foram analisadas as justificativas usuais para a criminalização do discurso de ódio e os riscos envolvidos.
Por fim, e assumindo que é necessária uma regulamentação mínima do discurso de ódio, procurar-se-á apontar as linhas de orientação e os critérios desta regulamentação que decorrem do Direito Internacional e do Direito Constitucional.
2 DO CONCEITO DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Após um longo período ditatorial do regime militar, no qual empregou-se a censura de modo a banalizar por mais de duas décadas a liberdade de expressão e a livre manifestação de pensamento, o Constituinte de 1988 acordou para a importância e a necessidade de se preservar a livre circulação de ideias (CARDIN, SEGATTO e CAZELATTO, 2017, p. 17).
Tipicamente a queridinha nos países democráticos, a liberdade de expressão consagra-se, a partir de ideais liberais, no art. 4º, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, como uma liberdade pessoal, na qual o indivíduo desenvolve, livre de qualquer interferência externa, suas faculdades e vontades naturais, não podendo ser violada, salvo raras exceções, (SARLET; MARINONI; MITIDIERO; 2013).
A liberdade de expressão é uma das dimensões do direito geral à liberdade (NOBRE, 1988, P. 30), podendo ser conceituada como o poder conferido aos cidadãos para externar opiniões, ideias, convicções, juízos de valor, bem como sensações e sentimentos, garantindo-se, também, os suportes por meio dos quais a expressão é manifestada, tais como a atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (MEYER-PFLUG, 2009, p. 34-35).
Descreve Burdeau (1972, p. 10 apud FREITAS; CASTRO, 2013) que a liberdade como sendo “a ausência de todo e qualquer constrangimento”. Quer seja espiritual ou física, a liberdade deve ser um sentimento de independência. Dessa premissa entende-se que o homem deve possuir o direito de livre escolha para participar ativamente da manutenção da ordem social, desde que não haja a imposição quanto a este consentimento.
O homem traz consigo um comportamento característico da espécie humana, qual seja, o sentimento de transmitir seu pensamento através da comunicação para o meio ao qual está inserido, que se dispersa do conceito de Liberdade de Pensamento quando repassado por meios públicos e livres, dando-se nova nomenclatura conhecida como Liberdade de Imprensa ou capacidade do Direito de Informar, que permite a ele publicar pensamentos e opiniões à vontade, sem se preocupar com a censura (FREITAS; CASTRO, 2013).
Explana Stroppa e Rothenburg (2015, p.3) que “a liberdade de expressão é assegurada em inúmeros tratados internacionais, entre eles, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948 – art. 19), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (OEA, 1969 – art. 13) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966 – art. 19), dos quais o Brasil é signatário”.
Segundo Prado Junior (1980, p. 12), exercendo essa liberdade, cada pessoa poderá livremente celebrar e aceitar acordos com outras pessoas.
Jose Afonso da Silva (2000, p. 247) acrescenta sobre o assunto:
A liberdade de comunicação consiste em uma série de direitos, formas, processos e meios, que podem facilmente coordenar a criação, expressão e disseminação de ideias e informações. É o que se extrai dos incisos IV, V, IX, XII, e XIV do art. 5o combinados com os arts. 220 a 224 da Constituição. Inclui a criação, expressão e expressão de ideias e informações, e a organização da mídia está sujeita a sistemas jurídicos especiais.
Ou seja, extrai-se o entendimento de ser garantido ao indivíduo buscar, receber e transmitir informações e/ou ideias de quaisquer tipos.
Desse modo, o reconhecimento da liberdade confere proteção para o indivíduo a expressar suas crenças, ideias, convicções, ideologias, sentimentos e opiniões pelas diversas plataformas existentes, proteção essa que vai além da condição de pensar, alcançando a possibilidade de divulgação do que este pensa, não podendo ser restringida por motivações filosóficas, políticas ou econômicas a elas contrárias.
A garantia da liberdade de expressão não está condicionada à prova da veracidade da opinião veiculada, exigência feita apenas para a liberdade de informação. Como essa última se refere a fatos, a divulgação destes deve vir precedida de um trabalho de apuração sobre sua veracidade (CHEQUER, 1880, p. 42).
Zisman (2003, n.p apud SILVEIRA, 2007, p. 58) vai além das formas de liberdade de expressão mencionadas até o momento, catalogando claramente uma vasta diversidade nas quais podem ser encontradas:
[...] através da palavra oral ou escrita - que abrange jornal, circular, brochura, panfleto, cartaz, gravura, revista, livro, entre outros -, seja pela mímica, ou ainda pelos símbolos (sinais convencionais ou qualquer outro representativo de ideias, bandeiras, semáforos, distintivos, desenhos, imagens, composições, sem prejuízo de qualquer outro meio). Não importa também a substância empregada: papel, pergaminho, tela, cartão, madeira, papelão, plástico, tinta etc. (SIVEIRA, 2007, p.58).
Como a internet tem por princípio a acessibilidade, buscando evoluir sua capacidade de armazenar e de comunicar inúmeras quantidades de formações, ela acaba desempenhando um papel importante na melhoria de acesso ao público às notícias, facilitando a divulgação de informações em geral.
Dessa forma, sem a proteção a liberdade todos os demais direitos perdem muito de sua razão de ser. Está relacionada ao desenvolvimento das potencialidades e dos aspectos fundamentais da personalidade dos homens (MEYER-PFLUG, 2009, p. 27-28).
2.1 Da liberdade de expressão sob a ótica da dignidade humana
Tôrres (2013, p. 61) afirma que, no âmbito da dignidade humana, é fácil garantir a necessidade de liberdade de expressão, pois não existe vida onde o sujeito não possa expressar seus desejos e crenças. Assim, viver dignamente pressupõe a liberdade de suas próprias escolhas e de expressar as próprias opções de sobrevivência, ou seja, viver conforme certos valores e crenças significa expressá-los implícita e explicitamente.
Destaca Amaral (2020, n.p apud TÔRRES, 2013) que, sendo um direito básico intrínseco à democracia, a liberdade de expressão garante voz ao cidadão, todavia, proteger esse direito não é suficiente para garantir que as pessoas participem do debate político, porque os direitos fundamentais são interdependentes: a eficácia dos direitos fundamentais depende da eficácia dos outros. No entanto, não há dúvida de que essa liberdade é imprescindível para quem deseja se expressar na esfera pública sem ser reprimido.
Segundo Costa (2002, n.p apud FREITAS e CASTRO, 2013, p. 3) observa-se ao longo da história conteúdos distintos para dignidade humana, estabelecidos com base nas variáveis políticas e sociais, havendo, então, constante revisão para tal, de modo a corresponder aos novos valores sociais.
Seja fixado na Constituição Federal ou em entendimentos jurisprudenciais pacificados, a liberdade de expressão se revela de suma importância quando se discute a proteção das classes sociais minoritárias.
Ainda que grande parte das pessoas utilizem comportamentos opressivos para abafar diferentes vozes para que não espalhem preconceitos contrários aos costumes, tradições, instituições ou convenções atuais, descobrimos estarmos afirmando a hegemonia do direito à liberdade de expressão (AMARAL, 2020, n.p).
Assevera Martins Neto (2008, p. 67) que “o direito de expressão das minorias e dissidentes é garantido, a mensagem é que o respeito pela diversidade de ideias é uma virtude que as pessoas devem praticar”.
Percebemos que a liberdade não se refere a um simples poder de manifestação, pelo contrário, permite-se a prática da livre interação sociocultural, econômica, religiosa, educacional, etc.
Quanto à ótica da dignidade humana nos moldes liberais, a liberdade irrestrita de expressão possibilita o discurso do ódio como manifestação efetiva, mesmo que isso signifique prejuízo diante das consequências, seja o discurso oral ou publicado, para os ofendidos.
Assim, embora a liberdade de expressão se mostre essencial para a prática dos direitos civis e o exercício da democracia, quando mal exercida se faz necessária a imposição de um limite, restringindo a abrangência desse princípio.
3 DA DEFINIÇÃO DE DISCURSO DO ÓDIO (HATE SPEECH)
Segundo Rosane Leal da Silva et al (2011, n.p), o “discurso de ódio” possui um viés segregacionista, baseado na dicotomia superior do emissor e inferioridade do atingido (a discriminação), e pela externalidade, ou seja, existirá apenas quando for dado a conhecer a outrem que não o próprio emissor.
Moura (2016, n.p) ressalta que o discurso de ódio é composto por dois fatores, quais sejam: a discriminação e a externalidade; onde a discriminação pauta-se no segregacionismo e na crença de superioridade do autor em relação à sua vítima; e a externalidade passa a existir quando se torna de conhecimento de terceiros, não apenas o próprio autor, posto que o termo “discurso” pressupõe direcionamento a um público, seja de forma verbal ou escrita.
Destacando o preconceito discriminatório, ensina Brugger (2007, p. 118) que o discurso do ódio se refere a palavras que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião, ou que têm a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas.
Entende-se então, que o discurso do ódio é qualquer divulgação de mensagens que estimulam preconceitos de cunho homofóbico, racial, xenofóbico, de gênero, dentro outras muitos outros alicerçados na intolerância e que confrontam os limites éticos de convivência, cerceamento de direitos, exclusão social e até eliminação física daqueles que são discriminados (STROPPA; ROTHENBURG, 2015, p. 07).
Salientam com maestria Sarlet (2011, apud Cabral; Assunção, 2013), que o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana é lesado não apenas de maneira individual, mas também coletiva, atingindo as demais pessoas que partilhem da característica que foi alvo do discurso, e quando se busca uma explicação dos disseminadores, estes alegam estarem meramente exercendo o direito fundamental à liberdade de expressão, todavia mostram um discurso articulado na tentativa de atentar contra os direitos fundamentais de outrem.
Cumpre ressaltar que essa prática sempre esteve presente em nossa sociedade, porém, de forma mais velada, sob formato escrito ou verbal, contudo, com o advento da era tecnológica, a propagação desses discursos está ocorrendo de forma muito mais veloz, ganhando combustível nos meios virtuais, atingindo um número enorme de pessoas, não se restringindo a mensagens apenas, mas também com emprego de recursos audiovisuais.
Com todo o avanço tecnológico e a internet ocupando lugar crucial no dia-a-dia das pessoas, surge uma nova realidade social na vida destes. É possível que o discurso de ódio seja considerado uma nova forma prejudicial na internet, principalmente nas redes sociais, onde há aqueles que, cobertos pelo “anonimato”, destilam expressões radicais, incitando o ódio generalizado contra parcela da população, praticando racismo, preconceito e intolerância sob o manto da liberdade de expressão.
Se por um lado, os tribunais devem considerar que a internet passou a ser um dos principais meios pelos quais os indivíduos exercem o seu direito à liberdade de expressão e informação, por outro lado não se pode ignorar que através dela aumenta-se frequentemente o risco de danos maior do que os meios de comunicação tradicionais, visto que a informação pode ser divulgada a baixo custo para um grande público e é difícil de remover, de acordo com o ditado “a internet nunca esquece”, afirma Barroso (2004, n.p).
Nesse prisma, recentes dados levantados pela Central Nacional de Denúncias da Safernet Brasil, ONG que atua na defesa dos direitos humanos, revela que no primeiro semestre de 2022 (janeiro a junho) foram registradas 23.947 denúncias relacionadas a crimes que envolvem discurso de ódio, revelando um aumento de 67% quando comparado ao mesmo período de 2021, com picos de denúncias crescentes em anos eleitorais, uma vez que muitos políticos se valem de tal baixeza para atrair atenção, visibilidade e notoriedade à sua campanha. Ainda conforme dados da ONG, até 30 de junho deste ano registrou-se 2.813 denúncias de intolerância religiosa e 2.222 de xenofobia e 1.273 de cunho neonazista.
Se esse cenário continuar, estaremos diante do terceiro ano eleitoral consecutivo de aumento de denúncias relacionadas à ódio na internet, pois este tipo de discurso preconceituoso desvaloriza, exclui e pode produzir violência contra certos grupos: fatos já comprovados, onde muitas pessoas usam o argumento de proteger o direito fundamental à liberdade de expressão, pilar da democracia, para legitimar e divulgar esses discursos, portanto isso deve ser contido.
4 DA LIMITAÇÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO COMO COMBATE AO DISCURSO DO ÓDIO
Segundo Carcará (2013, p. 50 apud Andrade 2017, p. 22) o discurso de ódio possui duas vertentes: a principal é incitar a violência, já a secundária é estabelecer diálogo e buscar conhecimento.
O discurso do ódio, carregado de ideias e de reflexões, teria então duas vertentes perante o livre desenvolvimento da personalidade: não evidenciaria qualquer contribuição para o livre desenvolvimento da personalidade, posto que seu principal objetivo é incitar a violência , provocar máculas, não tendo base para efetivar-se como pensamento necessário e indispensável à formação do indivíduo; a outra vertente é que as ideias exteriorizadas no discurso do ódio, devem ser protegidas pela liberdade de expressão quando exteriorizadas com o fito de estabelecer um diálogo e de buscar o conhecimento, não existindo incitação à violência, não retratando, portanto, o discurso do ódio, mas sim manifestação do pensamento (CARCARÁ, 2013, p.50).
Afirma Pauly (2015, p.64) que a liberdade de expressão é um dos pilares da democracia, logo, violá-la por meio do abuso desse direito seria incoerência.
Contudo, a própria Constituição dispõe expressamente que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI) e, logo em seguida, que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (art. 5º, XLII). Já, o artigo 13, § 7º, da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, determina que “a lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.
Não para por aí, na legislação brasileira há o art. 26 da Lei de Igualdade Racial a qual estabelece que “o poder público adotará as medidas necessárias para o combate à intolerância com as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de: I - coibir a utilização dos meios de comunicação social para a difusão de proposições, imagens ou abordagens que exponham pessoa ou grupo ao ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas”.
Nessa linha, a Convenção Internacional pela Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (2001, n.p) propõe que os Estados incentivem os meios de comunicação a evitarem os estereótipos baseados em racismo, discriminação racial, xenofobia e a intolerância correlata. Do mesmo modo, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (1994) afirma que os Estados-partes concordam em “estimular os meios de comunicação a elaborar diretrizes adequadas de difusão que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e a realçar o respeito à dignidade da mulher”.
A Organização das Nações Unidas – ONU, com a participação de outras organizações, elaboraram os denominados Princípios de Camden sobre a Liberdade de Expressão e Igualdade, os quais propõe, no item 12:
Princípio 12: Incitação ao ódio.
12.1. Todos os Estados devem adotar legislação que proíba qualquer promoção de ódio religioso, racial ou nacional que constitua uma incitação à discriminação, hostilidade ou violência (discurso do ódio). Sistemas jurídicos nacionais devem deixar claro, seja de forma explícita ou por meio de interpretação impositiva, que: i. Os termos ‘ódio’ e ‘hostilidade’ se referem a emoções intensas e irracionais de opróbrio, animosidade e aversão ao grupo visado. ii. O termo ‘promoção’ deve ser entendido como a existência de intenção de promover publicamente o ódio ao grupo visado. iii. O termo ‘incitação’ se refere a declarações sobre grupos religiosos, raciais ou nacionais que criam risco iminente de discriminação, hostilidade ou violência a pessoas pertencentes a esses grupos. iv. A promoção, por parte de comunidades diferentes, de um sentido positivo de identidade de grupo não constitui discurso do ódio.
Na seara criminal, encontra-se limitação à liberdade de expressão quando carregada de ódio, é o que preconizam os artigos 286 e 287 do Código Penal Brasileiro:
Art. 286 do Código Penal - Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa.
Art. 287 do Código Penal - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa. (BRASIL, 1940).
Os dispositivos supra exemplificados podem ser considerados como limitadores à liberdade de expressão enquanto maculada com discurso de ódio.
Importante esclarecer que, enquanto direito fundamental, a liberdade de expressão deve ser praticada em todos os espaços, inclusive os ambientes virtuais propiciados pela internet. Todavia, deve-se respeitar os limites subjetivos interpostos pelo ordenamento jurídico brasileiro, visto que a Constituição Federal protege muito além da liberdade de expressão, como exemplo, a igualdade entre todos os indivíduos, ao passo que os direitos individuais de uma pessoa não firam doutra (SILVA et al., 2019, n.p).
Assim, como a maioria dos direitos fundamentais, a liberdade de expressão não é absoluta. Seu exercício pode ser limitado para proteger interesses públicos conflitantes e os direitos dos outros.
Nesse solo, onde deve-se caminhar com cuidado, surge alguns questionamentos importantes, quais sejam, como equilibrar a liberdade de expressão com os limites que ela atinge? Poderia a dignidade humana opor limites à Liberdade de Expressão? (LEAL DA SILVA et al., 2011, n.p)
Aponta Pozzebon (2011, n.p), de modo simplório, que devido a proliferação de contas em redes sociais e microblogs, seja por meio de fotos ou comentários, quem se sentir ofendido poderá processar o autor do comportamento, nada diferente do que se observa atualmente.
Contudo, repisa-se na ideia de que a liberdade de expressão não sustenta manifestações tendentes a atacar a dignidade humana nem a construção de tolerância contrárias ao definido no art. 3º da CF/88.
5 CONCLUSÃO
A proteção da liberdade de expressão de forma alguma defende o denominado discurso do ódio, que consiste em divulgações de mensagens que estimulam e difundem a xenofobia, a homofobia, o ódio racial e outras formas de ataques sustentadas na intolerância e que confrontam os limites éticos de convivência.
A regulamentação do ódio tem problemas iniciais significativos. Por um lado, implica limitações à liberdade de expressão do pensamento, que é sempre arriscada e deve ser evitada. Por outro lado, a proteção de determinados grupos minoritários sujeitos a agressão, discriminação, hostilidade ou violência, com graves consequências, é necessária e deve ser efetiva.
Não há dúvida de que o discurso de ódio deve ser combatido com educação, com sanções éticas, políticas, sociais etc. Além disso, certamente essas são as alternativas mais eficazes em longo prazo. Mas no imediato, enquanto as outras alternativas ainda não derem frutos, é preciso recorrer a sanções penais e, como responsabilidades posteriores ao discurso, condenar os responsáveis.
Neste ponto, não parece que possa haver uma oposição absoluta à criminalização do discurso de ódio, mas é muito claro que a definição legal deve ser extremamente clara, precisa e limitada.
Todas as garantias de limitação de um direito humano e as especiais de liberdade de expressão são válidas e devem ser levadas em consideração. A saber: as restrições exigem uma lei clara, precisa e de fácil compreensão para quem vai opinar, que deve conhecer quais serão as consequências de seu discurso. As responsabilidades subsequentes só podem perseguir os objetivos do artigo 13 da Convenção Americana, que aparecem como propósitos exaustivos, de exceção e de interpretação estrita. As limitações também devem ser compatíveis com as necessidades imperativas de uma sociedade democrática e devem ser capazes de contornar um julgamento de proporcionalidade: adequação, necessidade e ponderação em sentido estrito.
No que se refere especificamente ao discurso de ódio, deve-se levar em consideração o já mencionado triângulo do ódio: a) o emissor que deve, intencionalmente, tentar causar ou causar dano grave a determinados indivíduos ou grupos, visando incitar violência, discriminação ou hostilidade contra um determinado grupo; b) as vítimas devem pertencer a grupos raciais, religiosos ou nacionais (sem prejuízo de se lembrar da perigosa tendência de ampliação desses grupos) e devem sofrer ou ter risco comprovado de sofrer um dano claro e de alta intensidade (o transtorno ou a ofensa contra o uso de uma expressão); c) o terceiro vértice do triângulo, grupo incitado, é básico e deve ser definido com alguma precisão e localizado temporal e espacialmente para analisar se o risco de incitação à violência, discriminação e hostilidade realmente existiam (a incitação deve ser efetiva, ou seja, para gerar os efeitos pretendidos, ou deve haver uma certa e séria possibilidade de risco, que vai além da mera conjectura).
E o contexto não deve ser esquecido, pois não é o mesmo que pintar uma suástica na frente de uma sinagoga ou em frente a uma escola para crianças judias do que em outro lugar que geralmente não é visível ao público.
A elaboração de normas criminais que atendam às bases acima não é tarefa fácil, mas isso já faz parte das políticas e técnicas legislativas e da assessoria de especialistas em Direito Penal. E deve-se sempre ter em mente que, quando a liberdade de expressão é limitada, algo incomumente grave está sendo feito e, em caso de dúvida, a liberdade deve ser preferida à limitação.
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Graduando do curso de Direito pelo Centro Universitário Fametro (2022).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NUNES, Carlos Augusto Junior Caetano. A liberdade de expressão e o discurso do ódio (hate speech) sob uma perspectiva constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2022, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/60350/a-liberdade-de-expresso-e-o-discurso-do-dio-hate-speech-sob-uma-perspectiva-constitucional. Acesso em: 22 nov 2024.
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