Profª VALÉRIA MARIA PINHEIRO MONTENEGRO
(orientadora)
RESUMO: Demonstração da participação da sociedade através de ferramentas online na concepção e elaboração do Marco Civil da Internet enquanto fator determinante para o fortalecimento da Democracia no Brasil, uma vez que não só condiz com a tendência atual do crescente uso da Internet como deixa claro o anseio da sociedade em se envolver de forma mais direta na elaboração das leis. A escolha do tema proposto no presente estudo justifica-se em face da constatação de que o surgimento de ferramentas onlines de diálogo entre o cidadão e o Poder Legislativo representa uma verdadeira tendência do processo legislativo atual, cuja dinâmica reflete os mais variados interesses e anseios sociais. Justifica-se ainda por colocar em pauta de reflexão, sobretudo acadêmica, o anseio crescente do cidadão em tomar parte de forma mais direta no processo de formação das normas, demandando-se, para isso, novas ferramentas de interação com o Poder Público, que superam o paradigma do processo legislativo tradicional, fruto da Democracia representativa. Dessa forma o presente estudo tem também o escopo de fomentar o interesse cidadão no debate sobre os temas atuais que ensejam a regulação jurídica, uma vez que a interação da sociedade com o Poder Público é aqui apresentada como algo facilmente acessível a qualquer usuário da Internet. Este trabalho mostra -se, pois, como uma via de mão dupla, na medida em que demonstra um nível inédito de participação social no processo legislativo, fato que aponta no sentido de uma verdadeira tendência contemporânea, ao mesmo tempo em que objetiva estimular mais cidadãos ainda, em especial no meio acadêmico, a se envolverem mais diretamente no processo de elaboração das leis.
Palavras-chave: Poder Público. Marco Civil. Online. Democracia participativa. Poder Legislativo.
ABSTRACT: Society participation demonstration through online tools in the design and development of the Civil Marco Internet while determining factor for the strengthening of democracy in Brazil , since not only the yearning consistent with the current trend of increasing use of the Internet as made clear the society to engage more directly in making laws. The theme proposed in this study is justified in view of the finding that the emergence of online tools for dialogue between citizens and the Legislature represents a real trend in the current legislative process, whose dynamics reflects the varied interests and social expectations. Justified by even put on the agenda for reflection, especially academic, the growing desire of citizens to take part more directly in the formation of the standards process, requiring up to this, new tools for interaction with public authorities, which outweigh the paradigm of the traditional legislative process, the result of representative democracy. Thus this study also has the scope to encourage citizen interest in the debate on the current issues that lead to legal regulation, since the interaction of society with the government is here presented as something easily accessible to any Internet user. This study shows herself, because, as a two-way street, in that it demonstrates an unprecedented level of social participation in the legislative process, a fact that points towards a true contemporary trend, while it aims to encourage more citizens further, especially in academia, to engage more directly in the process of making laws.
Keywords: Public Power. Brazilian Civil Rights Framework. Online. Participatory Democracy. Legislature.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DA DEMOCRACIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA VIGENTE. 2.1 Estado Democrático de Direito. 2.2 Direito ao sufrágio. 2.3. Democracia representativa. 2.4 Democracia participativa. 3 ORGANIZAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO FEDERAL E O PROCESSO LEGISLATIVO NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA VIGENTE. 3.1 Organização do Congresso Nacional. 3.2 Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados. 3.3 Processo legislativo tradicional. 3.4 Processo legislativo colaborativo na Câmara dos Deputados por meio do portal e-Democracia. 4 A DEFINIÇÃO DE NOVOS HORIZONTES PARA A DEMOCRACIA BRASILEIRA A PARTIR DO MODELO PARTICIPATIVO DE ELABORAÇÃO DO MARCO CIVIL DA INTERNET. 4.1 O caráter diferenciado da participação social na discussão e elaboração do Marco Civil da Internet. 4.2 As contribuições decorrentes do processo de formação do Marco Civil da Internet para o fortalecimento da Democracia participativa Brasileira. 5 CONCLUSÃO.
REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
O princípio democrático, dada a sua relevância na organização do Estado e da sociedade, não pode ser encarado como um elemento estático, aprisionado nos limites de concepções tradicionais da Democracia, uma vez que deve refletir a dinâmica veloz e plural da sociedade contemporânea, conferindo ao processo político o maior grau de legitimidade possível.
Mencionado princípio democrático encontra um campo fértil para a sua exploração no estudo das experiências de implementação de modelos de Democracia participativa, mais especificamente, no caso do presente estudo, na análise da participatividade social via internet na discussão e elaboração do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014).
Busca-se compreender por que a experiência democrática verificada na gênese dessa norma pode ser tomada como um precedente de fortalecimento da Democracia no Brasil e como ela conseguiu aliar conceitos de tecnologia da informação e comunicação como segurança, velocidade e praticidade com os valores da legalidade, validade jurídica e legitimidade.
Para tanto, é imprescindível que se destaquem os elementos dessa experiência que evidenciam um caráter de solidez, abrangência e validade jurídica do modelo utilizado, sempre tomando-se como ponto de partida da investigação a norma constitucional.
Nesse diapasão entender em que consiste a relevância da implementação de modelos sólidos e abrangentes de Democracia participativa é lançar-se em uma investigação de matriz constitucional, relacionando-se os princípios fundamentais da Democracia plasmados no texto constitucional a partir de um olhar crítico que possa antes harmonizá-los que causar rupturas.
No presente trabalho o tema será abordado predominantemente com base no método indutivo, no qual a experiência concreta relativa aos processos envolvidos na discussão e elaboração do Marco Civil da Internet será analisada minuciosamente, com o escopo de se construir uma tese que possibilite a compreensão da extensão, do potencial e das limitações inerentes à experiência democrática estudada.
Também será realizado o cotejo entre o assunto estudado e os conceitos básicos da Democracia, também dispostos no texto constitucional, como Estado Democrático de Direito, sufrágio, voto, além de institutos como o plebiscito, referendo e a iniciativa popular.
Tal método possibilitará a consecução do objetivo central deste trabalho, que é demonstrar de que modo a participação popular na gênese da norma em comento pode ser encarada como um marco de fortalecimento da Democracia no Brasil, na medida em que alargou os horizontes de compreensão dos procedimentos democráticos tradicionais, limitados pelas contingências do momento histórico em que foram concebidos.
Por fim, buscar-se-á demonstrar a solidez do modelo estudado bem como a viabilidade de sua implementação em experiências futuras, a partir do destaque e projeção em experiências futuras do modus operandi que se mostrou bem-sucedido.
2 CARACTERÍSTICAS FUNDAMENTAIS DA DEMOCRACIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA VIGENTE
Podemos falar no Princípio Democrático como norteador da função constitucional de estabelecer uma Democracia participativa, dotada de mecanismos aptos tanto à captação da pluralidade do ideário social, quanto ao fornecimento de uma síntese dessa pluralidade, mediante a realização dos direitos fundamentais.
Cabe ressaltar ainda a relevância do princípio da legalidade dentro da concepção de Estado Democrático de Direito, falando-se então em legalidade democrática, que se diferencia do conceito de legalidade característico do Estado Liberal clássico, fundado principalmente no caráter geral, abstrato e obrigatório da lei.
2.1 Estado Democrático de Direito
A concepção jurídica atual do Estado Democrático de Direito pressupõe o papel ativo do Estado na transformação do status quo, a partir da assimilação e evidenciação da soberania popular e da concretização do princípio da dignidade da pessoa humana em uma escala ampla e diversificada, fator diferencial que ultrapassa o escopo do Estado de Direito clássico, de origem liberal, e do Estado Social de Direito, enquanto limitado pelos personalismos e monismo político.
Nesse sentido, afirma Silva (2005, p. 119):
A configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo.
O legislador constituinte brasileiro demonstra a primazia conferida à concepção acima mencionada ao destacar já no art. 1º, da CRFB/88, que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, marcantemente caracterizado pela busca da efetivação dos direitos sociais, sem perder de vista a promoção da livre iniciativa, bem como o aprofundamento da Democracia participativa.
Aliás, o preceito contido no parágrafo único do citado art. 1º, da CRFB/88, reforça o compromisso assumido pela Constituição com a realização da Democracia participativa: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Destaca-se no Estado Democrático de Direito a legalidade sob o enfoque de seu poder transformador do status quo, influindo na realidade social de modo a se apresentar como expressão normativa concretizadora da dicção constitucional, sem descurar dos direitos de liberdade e propriedade.
Assim, o conceito de lei no Estado Democrático de Direito deve englobar intervenções que impliquem diretamente alterações na situação da comunidade. Deve a lei deixar de ser puramente normativa para exercer influência na realidade social, impondo mudanças sociais democráticas, ainda que possa continuar a desempenhar uma função conservadora, garantindo a sobrevivência de valores socialmente aceitos. (SILVA, 2005, p. 121-122)
2.2 Direito ao sufrágio
Conforme anota Mendes (2012, p. 607), direitos políticos constitui expressão ampla que se refere “ao direito de participação no processo político como um todo, ao direito ao sufrágio universal e ao voto periódico, livre direto, secreto e igual, à autonomia de organização do sistema partidário, à igualdade de oportunidade dos partidos”.
Portanto, o sufrágio constitui-se num conceito de capital importância dentro do regime jurídico dos direitos políticos. Com efeito, o sufrágio, comumente relacionado ao direito de votar e ser votado, vai além do voto, abrangendo ainda o direito dos cidadãos de participar do processo político de formação dos atos de governo, característica típica da Democracia participativa, conforme já acentuado neste trabalho.
Dispõe o art. 14, caput, da CRFB/88 que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com igual valor para todos”.
Do dispositivo acima transcrito extrai-se que o voto caracteriza-se por ser livre, direto, secreto, e de valor único. É livre, pois é vedada qualquer forma de coação ao eleitor tanto no momento em que o cidadão forma a sua convicção sobre a escolha dos candidatos quanto no momento em que efetivamente exerce o direito de votar.
Interessante notar que a liberdade do voto relaciona-se com a igualdade de expressão dos partícipes da disputa política:
É inevitável a associação da liberdade do voto com a ampla possibilidade de escolha por parte do eleitor. Só haverá liberdade de voto se o eleitor dispuser de conhecimento das alternativas existentes. Daí a associação entre o direito ativo do eleitor e a chamada igualdade de oportunidades ou de chances (Chancengleichheit) entre os partidos políticos. (BRANCO; MENDES, 2012, p. 611)
O voto direto significa a atribuição direta do voto dado pelo eleitor ao candidato ou partido por ele escolhido, sem que essa atribuição dependa da intermediação de alguém. Interessante notar que as eleições proporcionais para a Câmara dos Deputados não desconfiguram o caráter direto do voto:
Não retira o caráter de eleição direta a adoção do modelo proporcional para a eleição para a Câmara dos Deputados (CF, art. 45, caput), que faz a eleição de um parlamentar depender dos votos atribuídos a outros colegas de partido ou à própria legenda. É que, nesse caso, decisivo para a atribuição do mandato é voto concedido ao candidato ou ao partido e não qualquer decisão a ser tomada por órgão delegado ou intermediário. (BRANCO; MENDES, 2012, p. 609)
Já o caráter secreto do voto é corolário de seu caráter livre, vedando-se a exposição da escolha do eleitor perante o Poder Público e os particulares em geral. O voto é também periódico em consequência da temporariedade dos mandatos eletivos. Pela igualdade dos votos, proíbe-se o tratamento discriminatório quanto aos eleitores.
A teor do art. 14, § 1º e incisos, da CRFB/88, voto é obrigatório para os maiores de 18 anos e facultativo para os analfabetos, para os maiores de setenta anos e para os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Os estrangeiros e os conscritos, estes últimos durante o período do serviço militar obrigatório, não podem votar, uma vez que não podem alistar-se como eleitores (art. 14, § 2º).
Não estando o direito de votar atrelado a qualquer qualidade do eleitor de natureza econômica (voto censitário) ou intelectual (voto capacitário) tem-se que o sufrágio é universal, isto é, assegurado a todos os nacionais que atendam aos requisitos constitucionais acima mencionados.
2.3 Democracia representativa
Muito embora não possamos falar que o ordenamento jurídico pátrio adotou a Democracia representativa como regime exclusivo de participação do povo no poder, é válida a afirmação de que este tipo Democracia, também chamada de Democracia Indireta, encontra guarida no texto Constitucional, que dispõe em seu artigo 1º, parágrafo único, primeira parte, que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos.”
Também é válida a afirmação de que, atualmente, a Democracia representativa corresponde ao modelo predominante de exercício democrático no Brasil, seja por questões geográficas, mormente a enorme extensão territorial do país, seja ainda por fatores de natureza jurídica apontados como entraves à maior participação popular no processo democrático, conforme se demonstrará adiante.
Em ambos os casos, quer se considerem os elementos físico/geográficos ou os elementos jurídicos acima referidos, constatamos fatores de enfraquecimento dos modelos constitucionais de participação popular direta na política, fato que, muito embora não tenha força para desnaturar o caráter participativo da Democracia vigente no Brasil, claramente demonstra que tal Democracia Mista predominantemente se inclina para a Democracia representativa, pelo menos na prática.
Nesse mesmo sentido, pondera Bonavides (2001, p. 79):
Quem se põe a examinar a situação constitucional do Brasil, desde a Carta de 1988 e a restauração do sistema representativo do Estado de Direito, percebe nesse balanço de doze anos que o quadro contemporâneo das instituições é escuro e sofre muitos bloqueios. Tais bloqueios têm impedido, por exemplo, o exercício eficaz da dimensão constitucional da democracia direta contida no parágrafo único do art. 1º da Carta, bem como o pleno exercício dos Direitos Fundamentais da segunda e da terceira gerações, que compreendem, por excelência, os direitos sociais e o direito ao desenvolvimento.
Neste diapasão, é importante consignar que o regramento constitucional dos direitos políticos, disposto nos artigos 14 a 16 da CRFB/88, embora trate expressamente do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular, que são institutos de Democracia participativa, constitui o âmago da Democracia Direta, uma vez que mencionadas regras estão preponderantemente disciplinando o sufrágio universal, que é o direito constitucional de votar e ser votado.
Assim, identifica-se um modelo constitucional de Democracia representativa fincado na participação popular formal e periódica, integrando o processo político de forma indireta. Portanto, tais institutos também podem ser vistos como instituidores de técnicas de escolha dos representantes do povo, acrescentando-se a essa compreensão a constatação de que é por meio deles que o povo adere e consente com determinada opção política.
Dessa forma, a Democracia representativa também possui um sentido substancial que vai além da mera técnica de escolha de representantes políticos para exercer mandatos eletivos, uma vez que os seus institutos também propiciam ao povo a possibilidade de legitimar determinadas opções políticas, a serem desempenhadas pelos representantes eleitos.
Nesse sentido, oportuna é a lição de Silva (2005, p. 138):
A ordem democrática, contudo, não é apenas uma questão de eleições periódicas, em que, por meio do voto, são escolhidas as autoridades governamentais. Por um lado, ela consubstancia um procedimento técnico para a designação de pessoas para o exercício de funções governamentais. Por outro, eleger significa expressar preferência entre alternativas, realizar um ato formal de decisão política.
Cabe destacar, no entanto, que a princípio não existe no mandato representativo uma vinculação necessária entre as escolhas políticas do titular do mandato e a vontade do povo, mesmo que se considere aquela parcela específica dos cidadãos que o elegeram. Isso porque, do ponto de vista estritamente jurídico, o mandato representativo é livre, prevalecendo a autonomia conferida pela Constituição para a atuação política em geral.
Essa liberdade conferida aos representantes políticos, somada ao fato de que o ordenamento jurídico pátrio não previu mecanismos de revogação do mandato eletivo pelo povo, a exemplo do recall nos EUA, levou alguns estudiosos do assunto a evidenciarem o baixo potencial de efetiva representação dos mandatos políticos, não sendo incomum ocorrerem deturpações ou mesmo a completa desvinculação da atuação política em relação à vontade popular expressa por meio do voto.
Silva (2005, p. 139), assevera que “há muito de ficção, como se vê, no mandato representativo. Pode-se dizer que não há representação, de tal sorte que a designação de mandatário não passa de simples técnica de formação dos órgãos governamentais”.
Bonavides (2001, p. 278), por sua vez, tece críticas mais contundentes:
Vista pelo divórcio consumado entre a vontade governada – a vontade passiva da cidadania – e a vontade governante, ou seja, a vontade da elite hegemônica, a representação não só perdeu o sentido da identidade (a ficção da paridade volitiva de governantes e governados), dantes postulada de maneira abstrata, mas peremptória, como reconheceu e instituiu de forma definitiva, uma dualidade em que, unicamente, a sua esfera de soberania (a vontade privilegiada do representante) se impõe enquanto caudatária do egoísmo dos seus interesses, os quais logram, assim, eficácia, em dano óbvio da cidadania preterida, enfraquecida, menoscabada; a cidadania de que o representante é órgão.
Por outro lado, há que se destacar que os meios de coordenação e expressão da opinião pública podem ser considerados elementos de resistência a esse processo de distanciamento entre a atuação política e a vontade popular. Portanto, são de fundamental importância, dentro de qualquer Democracia representativa, instrumentos como os Partidos Políticos, sindicatos, associações políticas, a imprensa, dentre outros veículos que condensam a vontade popular, conferindo a ela uma maior repercussão dentro do meio político.
2.4 Democracia participativa
Os meios de coordenação e expressão da opinião pública, conforme destacado alhures, representam importantes mecanismos de evidenciação da vontade popular, constituindo fatores determinantes sobretudo no processo político eleitoral de escolha dos representantes do povo. Contudo, muito embora tais meios desempenhem o relevante papel de aproximar a opinião pública do meio político, não se pode afirmar que, por si só, realizam a essência da Democracia participativa, que atualmente assume uma conotação mais ampla.
Tal é a conclusão diante do sentido atual da expressão Democracia participativa:
O sistema de partidos, com o sufrágio universal e a representação proporcional, dá à democracia representativa um sentido mais concreto, no qual desponta com mais nitidez a ideia de participação, não tanto a individualista e isolada do eleitor no só momento da eleição, mas a coletiva organizada. Mas será ainda participação representativa, que assenta no princípio eleitoral. Ora, qualquer forma de participação que dependa de eleição não realiza a democracia participativa no sentido atual dessa expressão. (SILVA, 2005, p. 141)
Com efeito, o fator preponderante para que se possa falar em Democracia participativa consiste na participação direta e pessoal dos cidadãos na formação dos atos de governo, isto é, uma manifestação popular que vai além da mera escolha dos atores políticos.
Na dicção de Bonavides (2001, p. 51):
Não há democracia sem participação. De sorte que a participação aponta para as forças sociais que vitalizam a democracia e lhe assinam o grau de eficácia e legitimidade no quadro social das relações de poder, bem como a extensão e abrangência desse fenômeno político numa sociedade repartida em classes ou em distintas esferas e categorias de interesses.
A Democracia Participativa vai além dos limites estabelecidos pelo modelo tradicional de Democracia Representativa, na medida em que possibilita uma assimilação e processamento mais acurados da vontade popular pelo Poder Público, o que acaba se refletindo em um exercício democrático mais legítimo, na prática, do que aquele verificado no âmbito das formas representativas tradicionais de expressão da vontade popular.
Assim, fica evidente que o cotejo entre a Democracia Representativa e a Democracia Participativa, é também uma discussão que se projeta para o âmbito da legitimidade, uma vez que esta fica irremediavelmente comprometida quando determinado modelo democrática mostra sinais de que se tornou insatisfatório, isto é, quando o seu exercício sofre a deturpação de variados fatores sociais.
Nessa perspectiva, buscando-se a máxima harmonização dos princípios constitucionais, temos que a Democracia Participativa afigura-se como um elemento de fortalecimento do exercício democrático, e não como um modelo cujo intento é o de suplantar a ordem vigente.
Portanto, possui importância capital a atividade de atrelar as possíveis formas de interação direta entre cidadão e Poder Público com as possibilidades franqueadas pelo ordenamento jurídico vigente, de modo a desenvolver-se o exercício democrático dentro de um ambiente de validade e segurança jurídica.
Ademais, somente dentro dessa correlação do político com o jurídico é possível a validação da experiência participativa enquanto modelo em que, no dizer de BONAVIDES (2001, p. 36), “o político e o jurídico se coagulam na constitucionalidade enquanto simbiose de princípios, regras e valores, que fazem normativo o sistema, tendo por guia e chave de sua aplicação a autoridade do intérprete.”
Tal entendimento constitui verdadeiro parâmetro para que se possa aferir a viabilidade, materializada na conformidade com o ordenamento jurídico vigente, da implantação de determinado modelo de Democracia Participativa, permitindo ao Poder Público lançar-se na iniciativa de disponibilizar ao cidadão diversas ferramentas para a sua participação de forma mais direta e decisiva na vida política.
A rigor, a Democracia participativa manifesta-se quando coexistem dentro de uma ordem jurídica a Democracia representativa e elementos da Democracia Direta, que diz respeito ao exercício do poder diretamente pelo povo, sem intermediários ou representantes. São instrumentos da Democracia Direta, expressamente previstos em nossa Constituição da República, a iniciativa popular, o referendo, o plebiscito e a ação popular, cuja disciplina jurídico constitucional será a seguir delineada.
O instituto da iniciativa popular decorre do exercício da soberania popular, conforme previsto no art. 14, III, da CRFB/88, e permite que os cidadãos participem do processo político diretamente por meio da apresentação de projetos de lei ao Poder Legislativo, desde que tais projetos sejam subscritos por um número de eleitores igual ou superior ao mínimo estabelecido na CRFB, além de atenderem às regras específicas fixadas pelo legislador infraconstitucional.
Assim, o art. 61, § 2º, da CRFB/88, dispõe que “a iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.”
A apresentação do projeto de lei iniciativa popular perante a Câmara dos Deputados, a teor do dispositivo acima transcrito, mostra-se uma regra coerente com o fato da Câmara dos Deputados compor-se de representantes do povo, de acordo com o art. 45, caput, da CRFB/88.
No que tange à regulamentação infraconstitucional da iniciativa popular, o art. 13 da Lei nº 9.709/98, impõe que o projeto de lei deverá circunscrever-se a um só assunto, não podendo ser rejeitado por vício de forma. Dessa maneira, diante da existência de eventuais impropriedades de técnica legislativa ou de redação, deverá a Câmara dos Deputados, por seu órgão competente, providenciar a correção desses erros.
Não há previsão expressa na Constituição da República acerca da possibilidade de iniciativa popular de Proposta de Emenda à Constituição (PEC), apesar de alguns doutrinadores defenderem que essa possibilidade decorre implicitamente do exercício da soberania popular dentro da Democracia participativa albergada pela Constituição.
Cabe destacar ainda que a iniciativa popular de leis também é válida no âmbito dos Estados e Municípios. Nos termos do art. 27, § 4º da CRFB/88, “a lei disporá sobre a iniciativa popular no processo legislativo estadual.” Por seu turno, o art. 29, XIII assegura a observância da “iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado”.
O Plebiscito e o Referendo são institutos que evidenciam o exercício da soberania popular, nos moldes da Democracia Direta, uma vez que, em ambos os casos, o povo é consultado para deliberar sobre matéria de grande relevância, seja ela de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.
Não obstante a semelhança entre os institutos existe entre eles diferenças na técnica de consulta popular. Com efeito, no caso do plebiscito faz-se consulta prévia aos cidadãos sobre o ato legislativo ou administrativo com o fim de que a matéria veiculada no ato seja aprovada ou denegada por meio do voto. Assim, a escolha política quanto ao ato, após a realização do plebiscito, fica condicionada ao que foi decidido na consulta popular.
Já no caso do referendo, primeiro ocorre a edição do ato legislativo ou administrativo e, somente num momento posterior, submete-se o ato à apreciação do povo, que o ratificará ou rejeitará.
Cabe ressaltar que a Constituição da República outorgou ao Congresso Nacional a competência, em caráter exclusivo, para autorizar referendo e convocar plebiscito, a teor do artigo 49, XV, do texto constitucional. Tal dispositivo é complementado por uma regra infraconstitucional, fixada no art. 3º da Lei nº 9.709/98, segundo a qual nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, e no caso do § 3º do art. 18 da CRFB, que trata da incorporação subdivisão ou desmembramento de Estados, o plebiscito e o referendo são convocados mediante Decreto legislativo, por proposta de 1/3, no mínimo, dos membros que compõe qualquer das Casas do Congresso Nacional.
A exemplo dos institutos acima tratados, a ação popular também constitui elemento constitucional que dá ensejo à participação popular direta no exercício do poder. Sua regulamentação está contida na Lei nº 4.717/65, que foi recepcionada pela vigente Constituição da República.
Dispõe o art. 5º, LXXIII, da CRFB/88, in verbis:
Qualquer cidadão é parte legitima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.
Importante lembrar que o Supremo Tribunal Federal já sumulou o entendimento de que excluem-se o polo ativo a ação popular os estrangeiros, apátridas e as pessoas jurídicas (Súmula 365, do STF), uma vez que a legitimidade ativa limita-se ao cidadão, que é o brasileiro nato ou naturalizado em pleno gozo de seus direitos políticos, sendo que essa circunstância deverá ser demonstrada mediante a apresentação do título de eleitor ou documento correspondente, conforme o art. 1º, § 3º, da Lei nº 4.717/65.
Outra importante regra trazida na lei que regulamenta a ação popular é aquela prevista no seu art. 6º, § 3º, segundo o qual a pessoa jurídica de direito público ou privado, cujo ato seja objeto de impugnação, poderá abster-se contestar o pedido ou atuar o lado do autor, desde que tal medida seja útil ao interesse público, a juízo do respectivo representante legal ou dirigente.
3. ORGANIZAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO FEDERAL E O PROCESSO LEGISLATIVO NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA VIGENTE
Em um sentido histórico e mais amplo o termo Congresso é usado como referência ao Poder Legislativo, apesar da Constituição da República vigente utiliza-lo em sentido próprio de órgão da estrutura do Poder Legislativo Federal.
Nesse sentido assevera Bulos (2014, p. 1077):
Aliás, a primeira vez que se usou nos Estados Unidos da América o signo congresso, com o fito de rubricar uma assembleia política, foi na união dos comissários de algumas colônias americanas, levada a cabo na cidade de New York [...] No Brasil, por exemplo, temos Parlamento, uma vez que o próprio Congresso Nacional consigna uma assembleia baseada num princípio representativo, incumbido de exercitar um conjunto de opções políticas, correspondentes à vontade popular.
3.1 Organização do Congresso Nacional
Para que possamos melhor compreender as atribuições constitucionais do Congresso Nacional necessário salientar que o Poder Legislativo, assim como os demais Poderes, desempenha funções típicas e funções atípicas, não havendo exclusividade da função legiferante, mas apenas a sua prevalência.
A função típica do Legislativo consiste na criação de leis em sentido amplo, isto é, prevalece a função legiferante conforme salientado acima. Tal atribuição materializa-se através de um processo legislativo formal, o qual será adiante detalhado.
Por outro lado, a Constituição da República atribui ao Congresso funções atípicas que, apesar de serem secundárias, não são menos importante do ponto de vista do funcionamento do órgão e do equilíbrio dos Poderes. Destacam-se, pois, as atribuições de caráter administrativo e as de caráter judicante.
Do ponto de vista do funcionamento do Poder Legislativo as funções atípicas são importantes na medida em que é através de atribuições de natureza administrativa, por exemplo, que são realizados atos administrativos como o provimento de cargos públicos, a designação de servidores, os processos licitatórios, além da elaboração do Regimento Interno dos órgãos, sem os quais restaria inviabilizado o funcionamento de qualquer Poder.
Por seu turno, do ponto de vista do equilíbrio dos Poderes a importância das funções atípicas pode ser verificada na medida em que materializam um instrumento da separação e harmonia entre os Poderes, nos moldes da teoria da tripartição dos Poderes proposta por Montesquieu, caracterizando o sistema de freios e contrapesos. O julgamento dos atos de improbidade praticados pelo Presidente da República, por exemplo, seria um exemplo de função atípica que materializa a interdependência dos Poderes.
Ainda no que tange ao exercício de funções atípicas pelo Poder Legislativo, impende destacar que a CFRB/88 dispõe em seu art. 70, caput:
A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.
Quanto à composição, o Poder Legislativo Federal é bicameral, sendo que o Congresso Nacional é composto por duas Casas Legislativas, quais sejam, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, a teor do art. 44, caput da CRFB.
A organização do Poder Legislativo em dois ramos, mediante o sistema denominado bicameralismo, faz parte da tradição constitucional brasileira que vem desde o Império, ressalvadas limitações contidas nas Constituições de 1934 e 1937, as quais tendiam para o unicameralismo, no qual o Poder Legislativo é exercido por uma única câmara (SILVA, 2005, p. 509).
Portanto, o constituinte adotou o modelo bicameral, que desdobra a atividade legislativa em dois níveis, formados de um lado pela Câmara Baixa, onde estão os Deputados e do outro, pela Câmara Alto, integrada pelos Senadores.
Vale ressaltar, contudo, que o modelo bicameral não é seguido na estruturação do Poder Legislativo Estadual, Distrital e Municipal, para os quais a Constituição da República adotou o modelo unicameral, a teor dos arts. 27, 29 e 32.
Os Deputados Federais são os representantes do povo, eleitos pelo sistema proporcional para integrarem a Câmara dos Deputados, conforme preceitua o art. 45, caput, da CRFB/88, pelo período de quatro anos.
Diferentemente, os membros do Senado Federal são representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos pelo sistema majoritário (art. 46, caput, da CRFB), para um mandato de oito anos.
No que tange às atribuições do Congresso Nacional verificamos que o constituinte, no art. 48 e incisos, enumerou matérias sobre as quais cabe ao Congresso dispor mediante lei, com a sanção do Presidente da República, ao passo que, no art. 49, listou aquelas que compõem a competência exclusiva do Congresso Nacional, exercidas mediante decreto legislativo.
Para Bulos (2014, p. 1079-1080), as atribuições do Congresso Nacional pode ser legislativas, que são aquelas que criam leis de competência da União, deliberativas, que se referem às suas competências exclusivas, atribuições fiscalizatórias, de julgamento e controle da moralidade e por fim, atividades constituintes de segundo grau, relativas à edição de emendas à Constituição.
Dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional possui capital importância no presente trabalho aquela prevista no art. 49, inciso XV, da CRFB/88, que diz respeito à competência para autorizar referendo e convocar plebiscito, instrumentos característicos da Democracia participativa, conforme tratado alhures.
Outro conceito importante para a compreensão do Congresso Nacional é o de Legislatura, que é o período de funcionamento do Congresso. A duração de cada legislatura corresponde ao período de quatro anos, a teor do art. 44, parágrafo único da CRFB/88, contados do dia 1º de fevereiro até 31 de janeiro do quarto ano seguinte à eleição.
Por seu turno, o conceito de Sessão Legislativa não se confunde com o de Legislatura, sendo a sessão o tempo durante o qual se dá a reunião parlamentar. Tais sessões poderão ser preparatórias, ordinárias, extraordinárias e conjuntas, quando há necessidade de reunião da Câmara dos Deputados e do Senado Federal numa mesma sessão.
Com o advento da EC nº 50/06 ficou disposto que o Congresso Nacional reunir-se-á de 02 de fevereiro a 17 de julho e de 1º de agosto a 22 de dezembro, na Capital Federal. Já as sessões preparatórias se dão a partir de 01 de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para o ato da posse dos membros de cada uma das Casas Legislativas e eleição das respectivas Mesas, cujo mandato é de 2 anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente.
3.2 Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados
A criação da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados representa um tentativa de superação da distância que existia entre a sociedade e o Poder Legislativo, convidando aquela a participar decisivamente dos trabalhos legislativos deste.
Sobre o tema, anota Andrade (2003, p. 30-31):
A Comissão de Legislação Participativa, instalada em agosto de 2001, constitui um importante canal de comunicação entre o Parlamentar e a população. A Comissão é uma “janela” de entrada para propostas legislativas, por acolher propostas de lei oriundas da sociedade civil, por meio de associações, sindicatos, e Organizações Não-Governamentais – ONGS.
No que tange ao funcionamento da Comissão, as propostas apresentadas pela sociedade civil são recebidas pelo Deputado Relator responsável, a quem compete analisar o conteúdo da proposta, avaliando a sua pertinência.
Em seguida, há a discussão e apreciação da matéria pela Comissão, sendo que se houver aprovação da matéria discutida, a proposição correspondente iniciará sua tramitação na Câmara dos Deputados em regime de prioridade.
A faculdade de apresentar proposições normativas perante a Comissão de Legislação Participativa é atribuída a órgãos e entidades da Administração Pública Direta e Indireta, como o Conselho Nacional de Saúde, o Conselho Nacional de Assistência Social, dentre outras, desde que tenha participação paritária da sociedade civil, sendo vedada a iniciativa de órgãos internacionais (ANDRADE, 2003, p. 31).
Por seu turno admite-se a iniciativa de diversas espécies normativas, que poderão resultar em projetos de lei ordinária ou complementar, projetos de resolução emendas à Lei Orçamentária Anual e ao Plano Plurianual, além da possibilidade de convocação de audiências públicas, convocações de Ministros de Estados, requerimentos de informações e outras solicitações pertinentes às matérias discutidas.
3.3 O Processo Legislativo Tradicional
O processo legislativo na ordem jurídica vigente no Brasil, cuja previsão se dá eminentemente no plano constitucional, pode ser compreendido como uma sequência de atos formais que visam à elaboração das espécies normativas, quais sejam, emendas constitucionais, leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções, conforme consta do art. 59 e incisos, da CRFB/88.
Por seu turno, os atos do processo legislativo abrangem a iniciativa legislativa, as emendas eventualmente apresentadas, a votação, a sanção e o veto, podendo-se falar em um verdadeiro “devido processo legislativo”, decorrente do devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, da CRFB/88), conforme salienta Bulos (2014, p. 1172):
É que o desdobramento da cláusula escrita no art. 5º, LIV, da Constituição enseja a existência de um devido processo legislativo. Este, juntamente com o pórtico da legalidade (art. 5º, II), fornece ao legislador a medida exata do exercício de suas atividades.
Se houver infringência das disposições constitucionais que regulam o processo legislativo, a espécie normativa produzida será passível de arguição de inconstitucionalidade, podendo ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade ou do controle de constitucionalidade difuso.
É importante destacar, no que tange à necessidade de reprodução obrigatória das normas constitucionais sobre o processo legislativo nos Estados-membros, que as regras fundamentais como a da iniciativa legislativa reservada são de absorção compulsória nos entes estatais, havendo jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal nesse sentido:
Absorção compulsória das linhas básicas do modelo constitucional federal, entre elas as decorrentes das normas de reserva de iniciativa das leis, dada a implicação com o princípio fundamental da separação e independência dos Poderes: jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal. (STF, ADIn 637, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 1º-10-2014)
Quanto às fases do processo legislativo especificamente, é a partir da análise do procedimento ordinário que podemos melhor compreendê-las, uma vez que esse é o mais complexo e demorado dos procedimentos.
O procedimento legislativo ordinário é aquele destinado à elaboração de leis ordinárias e complementares, e se divide nas fases introdutória, constitutiva e complementar, a seguir delineadas.
A primeira das fases do procedimento ordinário, materializada na iniciativa legislativa, está disposta no art. 61, da CRFB/88 o qual dispõe:
A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.
O comando constitucional supracitado refere-se à iniciativa legislativa geral, mas existe previsão constitucional também de iniciativa reservada, na qual a iniciativa de lei sobre determinadas matérias é atribuída especificamente a alguém, como o faz o art. 61, parágrafo 1º, ao enumerar matérias que serão veiculadas em lei de iniciativa do Presidente da República, ou o art. 51, IV, que contém matéria cuja iniciativa de lei é da Câmara dos Deputados.
Moraes (2014, p. 66) explica a diferença entre as atribuições das Casas Legislativas conforme a iniciativa de lei:
Anote-se que uma das funções primordiais do exercício da iniciativa de lei, através da apresentação de projeto de lei ordinária ao Congresso Nacional, é definir qual das casas legislativas analisará primeiramente o assunto (Deliberação Principal) e qual atuará como revisora (Deliberação Revisional). Assim, a discussão e a votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores e dos cidadãos, terão início na Câmara dos Deputados, conforme preceituam os arts. 61, § 2º e 64, caput, da Constituição Federal.
Portanto, a depender da iniciativa de lei será definida qual a Casa Iniciadora do processo legislativo e qual a Revisora, havendo um predomínio da Câmara dos Deputados como Casa iniciadora.
Importante ressaltar que a iniciativa classificada pela doutrina como reservada não se confunde com a iniciativa exclusiva, ainda que não seja incomum o uso das expressões exclusiva e reservada como se sinônimas fossem. A iniciativa exclusiva caracteriza-se primordialmente pela sua indelegabilidade, podendo-se apontar como exemplo também o art. 61, parágrafo 1º, já citado acima.
Por seu turno, as leis de inciativa concorrente são aquelas cuja iniciativa parte de mais de um legitimado. Nesse caso, um exemplo seria a competência concorrente entre o Presidente da República e o Procurador-Geral da República para a inciativa de lei sobre as matérias previstas no art. 61, parágrafo §1º, inciso II, alínea “d”, c/c o art. 128, parágrafo 5º, da CRFB, que se referem à organização do Ministério Público da União, do Distrito Federal e dos Territórios.
Fala-se também em iniciativa Parlamentar e Extraparlamentar, que se referem, respectivamente, às matérias cuja iniciativa é atribuída a membros do Congresso Nacional ou a pessoas e órgãos alheios ao Poder Legislativo.
Por fim temos a iniciativa popular, atribuída ao cidadão e exercida conforme as regras fixadas no art. 61, parágrafo 2º da CRFB/88, conforme abordado anteriormente no presente trabalho.
Já na fase constitutiva do processo legislativo são realizadas a deliberação parlamentar, na qual a Câmara dos Deputados e Senado Federal devem aprovar ou rejeitar o projeto de lei após ampla discussão e votação, e a deliberação executiva, em que, uma vez aprovado pelo Congresso Nacional, ocorrerá a sanção ou veto do projeto de lei pelo Presidente da República.
Por meio de suas Comissões Temáticas, as Casas do Congresso Nacional avaliam aspectos importantes como a constitucionalidade do projeto de lei, além de outros aspectos de índole legal, jurídica, regimental e técnica. A título de exemplo da atuação das Comissões Temáticas, pode-se destacar a Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Câmara dos Deputados e a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, que são as Comissões responsáveis pelo exame da constitucionalidade do projeto de lei.
Terão início na Câmara dos Deputados a discussão e votação dos projetos de lei de iniciativa do Presidente da República, do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, conforme estabelece o art. 64, caput da CRFB/88.
A revisão do projeto de lei está prevista no art. 65, caput, do qual se infere que, uma vez aprovado por uma Casa, o projeto de lei será encaminhado para a outra Casa exercer sua atribuição revisional, em um só turno de discussão e votação. Estando o projeto de lei na Casa revisora, poderá ser aprovado, hipótese em que será enviado para sanção ou promulgação, ou rejeitado, hipótese em que será arquivado.
Importante destacar que pelo princípio da irrepetibilidade dos projetos rejeitados na mesma sessão legislativa, a matéria veiculada no projeto de lei rejeitado, só poderá constituir objeto de novo projeto de lei na sessão legislativa posterior, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional, a teor do art. 67, da CRFB/88.
A Emenda Parlamentar consiste na possibilidade atribuída aos deputados e senadores de proporem modificações ao conteúdo original dos projetos de lei, quer sejam alterações substanciais do conteúdo apresentado ou mera adequação no aspecto técnico legislativo.
O ato de votação consiste numa manifestação decisória coletiva que ocorre nas Casas Legislativas visando a aprovação ou rejeição do projeto de lei, que é encaminhado com os pareceres emanados pelas Comissões legislativas. A votação também é precedida de discussões realizadas em plenário.
Após a votação advém a fase de deliberação executiva, na qual o Presidente da República poderá concordar ou discordar do projeto de lei aprovado no Congresso Nacional, mediante a sanção ou o veto, respectivamente. Tal fase de deliberação pelo Executivo reforça o caráter independente e harmônico entre os Poderes (art. 2º, da CRFB/88).
A existência dessa fase no processo legislativo, com a necessária participação do Poder Executivo, além dos casos de iniciativa, funda-se na ideia de inter-relacionamento entre os Poderes do Estado, objetivando o exercício de controles recíprocos (MORAES, 2014, p. 676).
Por fim temos a fase complementar do procedimento legislativo ordinário, que compreende a promulgação, ou seja, uma certificação de que a lei nasceu, é válida e potencialmente obrigatória, além da publicação, que diz respeito à eficácia da lei, tornando-se obrigatória e exigível a partir de momento em que publicada no órgão de imprensa oficial.
Em síntese, quanto às fases finais do procedimento ordinário temos que:
Com a promulgação se atesta a existência da lei, que passou a existir com a sanção ou com a rejeição do veto, e se ordena a sua aplicação. O Presidente da República promulga a lei, mas, no caso da sanção tácita ou da rejeição do veto, se não o fizer em quarenta e oito horas, cabe ao Presidente do Senado a incumbência. A publicação torna d conhecimento geral a existência do novo ato normativo, sendo relevante para fixar o momento da vigência da lei. (BRANCO; MENDES, 2012, p. 753)
3.4 O Processo legislativo colaborativo na Câmara dos Deputados por meio do portal e-Democracia
O processo legislativo colaborativo consiste em uma forma de realização da Democracia participativa que permite uma ampla participação da sociedade no processo de formação das leis, isto é, diversos setores da sociedade podem apresentar suas contribuições ao
Poder Legislativo no momento em que tramita nas Casas do Congresso Nacional determinado projeto de lei.
Representa um grande avança no âmbito da Democracia participativa na medida em que amplia o universo de interação entre o Poder Legislativo e sociedade, indo além das formas tradicionais de participação social, que estavam muitas vezes restritas ao momento que antecede o processo legislativo.
Dentro desse processo de expansão da participação da sociedade brasileira na elaboração das normas as plataformas virtuais recentemente disponibilizadas pela Câmara dos Deputados tiveram capital importância, uma vez que são capazes de captar, organizar e sintetizar a opinião popular, transmitindo-a de forma instantânea e segura para a apreciação dos Parlamentares.
Além disso, permitem o embate de ideias e argumentos entre os cidadãos e até mesmo entre estes e os Parlamentares em tempo real. Tais ferramentas propiciam, portanto, o acúmulo de ideias e informações, além da construção coletiva do conhecimento, que é o escopo central do processo legislativo colaborativo.
Outro fator de evidenciação do caráter inovador do processo legislativo colaborativo reside no fato de que a participação popular mediante as plataformas online disponibilizadas pelo Legislativo se dá de forma espontânea, sem que haja uma prévia elaboração de quesitos a serem objeto de análise ou algum tipo de convocação formal dos cidadãos para o debate.
Tal fato coloca em relevo tanto a acelerada expansão do uso da internet como meio principal ou secundário de aquisição do conhecimento, como também o crescente anseio das pessoas de exercer sua liberdade de expressão nos meios virtuais, participando de maneira ativa, direta e imediata das deliberações do Poder Público.
Na Câmara dos Deputados podemos destacar o portal e-Democracia como uma experiência emblemática do processo legislativo colaborativo por via de uma plataforma virtual. Tal ferramenta visa estimular os diversos setores da sociedade a participar do processo legislativo federal por meio da apresentação de ideias e contribuições que serão recebidas levadas à discussão dentro das Casas Legislativas.
Para Faria (2012, p. 185) a grande relevância do portal e-Democracia está em permitir à sociedade brasileira participar do processo legislativo pela internet por meio de:
a) compartilhamento de informações, estudos e outros conteúdos, na forma escrita ou audiovisual, que sejam úteis à discussão dos projetos de lei; b) participação do processo deliberativo nos fóruns de discussão; c) organização de redes sociais temáticas para fins legislativos; e d) apresentação de propostas de texto legislativo, construídas de forma colaborativa, a fim de subsidiar o trabalho dos deputados na tomada de decisão.
Desde o lançamento do e-Democracia, em 03 de junho de 2009, importantes temas já foram objeto de discussão, dentre os quais podemos citar: a política de mudança do clima, o Estatuto da Juventude, discussões relacionadas à Amazônia, à política espacial e à regulação dos centros de inclusão digital (FARIA, 2012, p. 185).
O funcionamento do portal e-Democracia está baseado na formação de Comunidades Virtuais Legislativas (CVL’s), que são redes sociais temáticas, isto é, cada cidadão escolherá participar da comunidade cujo tema for de seu interesse.
A moderação das Comunidades Virtuais é realizada por um consultor legislativo, auxiliado por uma pequena equipe que compila, organiza estuda e avalia o conteúdo da discussão, elaborando em seguida um plano de discussão, que consiste numa organização inicial dos temas mais importantes a serem tratados futuramente no texto legislativo.
Cabe ainda ao consultor legislativo realizar a síntese do conteúdo gerado pelas discussões e analisar a viabilidade técnica desse conteúdo apresentado, submetendo então à análise do Parlamentar responsável, a quem compete elaborar um parecer e decidir sobre as sugestões que serão acatadas e incorporadas ao texto substitutivo.
Após a elaboração do parecer e do texto substitutivo este é apresentado perante a respectiva Comissão Legislativa, na qual se dará uma nova fase de análise, inclusive com a possibilidade de incorporação de sugestões apresentadas pelo cidadão no portal e-Democracia que não foram inicialmente acolhidas pelo Relator do Projeto.
A participação no portal e-Democracia se dá por meio de diversos instrumentos, conforme anota Faria (2012, p. 186-187), pode se dar pela participação do usuário em enquetes de múltipla escolha, inserção de estudos e informações estratégicas de interesse da discussão, participação em bate-papos coletivos, ou ainda pelo mero acompanhamento da discussão para fins de obtenção de informação.
Outra ferramenta disponibilizada no e-Democracia que merece destaque é o Wikilégis, cujas funcionalidades reforçam a essência da proposta da Câmara dos Deputados de realizar e difundir um processo legislativo colaborativo.
Por meio dessa ferramenta o usuário pode contribuir na redação do projeto de lei, apresentando sua própria versão do texto. Assim, o usuário já insere a sua ideia na plataforma virtual com o texto na forma de lei, expressando-se dentro dos padrões de redação legislativa, em uma simulação do trabalho dos parlamentares.
4 A DEFINIÇÃO DE NOVOS HORIZONTES PARA A DEMOCRACIA BRASILEIRA A PARTIR DO MODELO PARTICIPATIVO DE ELABORAÇÃO DO MARCO CIVIL DA INTERNET
A experiência brasileira em torno da elaboração do Marco Civil da Internet foi amplamente evidenciada, inclusive a nível internacional, enquanto iniciativa pioneira, quer seja pela sua abrangência social, uma vez que conseguiu captar uma pluralidade de contribuições para a formação do texto da Lei nº 12.965/2014, quer seja pelos meios utilizados para a assimilação dessa demanda social, que foram capazes de traduzir a opinião do povo em forma de participatividade social, sistemática e organizada.
A intenção primordial foi a de mobilizar, através da própria internet, os diversos setores da sociedade de algum modo envolvidos ou interessados na regulação da internet, setores que são representados por usuários, iniciativa privada, representantes de empresas de telecomunicações, Instituições educacionais, representantes do governo, dentre outros.
4.1 O caráter diferenciado e inovador da participação social na discussão e elaboração do Marco Civil da Internet
A iniciativa por trás dessa experiência contou com a participação do Ministério da Justiça, por meio da Secretaria de Assuntos Legislativos, além da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, que lançaram em 29 de outubro de 2009 o projeto para a construção colaborativa do Marco Civil da Internet (CÂMARA DOS DEPUTADOS – E-DEMOCRACIA, 2014).
A etapa pré-legislativa da elaboração do marco regulatório da Internet dividiu-se em duas fases para que fosse, ao final, compilado o resultado das participações e criada a minuta do anteprojeto de lei (Cultura Digital – Marco Civil da Internet, 2014).
A primeira fase teve a duração de 45 dias e nela houve o debate de ideias acerca dos assuntos a serem objeto de regulação, conforme um texto-base produzido pelo Ministério da Justiça. Tal texto provisório buscou realizar a contextualização e sistematização dos temas mais importantes a serem regulados.
Ainda na primeira fase o texto-base ficou aberto para que usuários cadastrados no portal “Cultura Digital” inserissem seus próprios comentários, de modo a permitir o intercâmbio de ideias entre governo e os demais usuários sobre assuntos em particular.
Ademais, aqueles usuários que pretendiam apresentar contribuições mais extensas e detalhadas também dispunham de foros de debates em comunidades específicas hospedadas no portal “Cultura Digital”, o que consistiu numa forma de direcionar a ambientes virtuais específicos as discussões mais aprofundadas sobre temas específicos, evitando-se o tumulto na página que hospedou o texto-base.
A partir das contribuições apresentadas pelos usuários, as quais foram lidas e levadas em consideração pela equipe do Marco Civil, o texto-base sobre a regulação da internet foi aos poucos sendo modificado, com a inserção de novos parágrafos, tópicos e eixos.
A conclusão da primeira etapa se deu com a compilação dos resultados das participações e elaboração da minuta do anteprojeto de lei.
Na segunda etapa houve uma discussão no mesmo formato utilizado na primeira e com a mesma duração, isto é, 45 dias. O parâmetro adotado nesse momento foi a minuta do anteprojeto de lei.
Após a conclusão da etapa pré-legislativa, que culminou na formulação de uma minuta do anteprojeto de lei, o texto final do Marco Civil da Internet foi enviado à Câmara dos Deputados, onde assumiu a forma do Projeto de Lei nº 2.126/2011, de iniciativa do Poder Executivo, iniciando-se um processo legislativo colaborativo.
Durante a tramitação do Projeto de Lei nº 2.126/2011 no Congresso Nacional o debate foi novamente ampliado, tendo sido promovidas, segundo Molon (2014) sete audiências públicas, além de seminários em capitais de quatro das cinco regiões do país, além de Brasília. Ainda segundo Molon (2014), ouviu-se sessenta e dois especialistas e dezenas de instituições acerca dos temas propostos.
Segundo informações obtidas no portal e-Democracia (2014) “a página especial do marco civil da Internet no e-Democracia recebeu aproximadamente 45 mil visitas”, os fóruns receberam mais de 200 postagens e o Wikilegis recebeu 140 propostas de alteração ao texto do Projeto de Lei.
De grande importância nessa etapa dos trabalhos legislativos, portanto, a ferramenta Wikilegis, os fóruns de discussão e o portal e-Democracia, cujo funcionamento já foi demonstrado no presente trabalho, pois representam os instrumentos que permitiram a realização de consultas e procedimentos inéditos em termos de interação entre a sociedade e o Poder Público:
Ademais, de forma inovadora e com o intuito de manter o processo transparente e democrático de participação na construção deste importante marco para a Internet no Brasil, disponibilizamos publicamente, no portal e-Democracia desta Casa, um pré-relatório no dia 04 de julho, para que pudéssemos receber sugestões da sociedade até às 18h do dia 06 de julho. Nos três dias em que o pré-relatório ficou disponível para comentários houve 14.673 (quatorze mil, seiscentos e setenta e três) visualizações de página, 109 (cento e nove) contribuições e 3.500 (três mil e quinhentos) visitantes únicos no portal. (CÂMARA DOS DEPUTAS – E-DEMOCRACIA, 2014)
A apreciação do projeto de lei no Senado deu-se de forma muito rápida, uma vez que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) daquela Casa convocou audiências públicas para discutir o projeto ainda no ano de 2013, enquanto ele ainda tramitava na Câmara dos Deputados, portanto, já o recebeu com uma série de discussões e conclusões prontas.
O projeto do marco civil foi aprovado na Câmara dos Deputados no dia 25 de março de 2014. No senado, foi aprovado no dia 22 de abril de 2014, tendo sido sancionado pela Presidente da República no dia 23 de abril de 2014.
Nesta senda, percebe-se no âmbito da elaboração da citada norma a perfeita coexistência entre o processo legislativo constitucional e a expressão direta e imediata da vontade popular, nos moldes de um processo legislativo colaborativo.
E é exatamente a partir dessa simbiose entre o processo legislativo juridicamente estabelecido e o crescente anseio social de envolver-se mais diretamente nas decisões políticas, que a experiência participativa objeto do presente estudo mostra-se inovadora.
4.2 As contribuições decorrentes do processo de formação do Marco Civil da Internet para o fortalecimento da Democracia participativa brasileira
Muitos são os elementos que podem ser destacados e apontados como inéditos na experiência que culminou na edição da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet). Em decorrência dessa constatação é totalmente válida a afirmação de que tal experiência representou um marco na história da Democracia brasileira, com influência suficiente para alargar os horizontes da compreensão acerca das possibilidades de interação colaborativa entre cidadão e Estado.
O primeiro grande fator de destaque relativo ao legado do processo de formação do Marco Civil da Internet para a Democracia brasileira está no fato de ter sido a primeira lei elaborada a partir da colaboração entre o Poder Público e a sociedade, através de aplicações online, as quais se mostraram capazes de captar a pluralidade da opinião popular, e, mais que isso, permitiram a sistematização e a organização dessa plêiade de ideias de forma compatível com o processo legislativo.
Para Pereira (2014), a experiência do Marco Civil da Internet trata-se do “maior símbolo de quanto a participação social pode ser bem sucedida para a construção de políticas públicas em nosso país.”
Pereira (2014) ainda acrescenta:
a lei do Marco Civil é um dos maiores símbolos que temos no nosso país de construção participativa. Nunca uma lei foi tão debatida com a sociedade. Nunca antes a sociedade civil foi tão ouvida para a construção de um lei, de uma política pública, quanto foi no Marco Civil da Internet.
Outro fator que merece destaque consiste no fato de que o modelo bem sucedido de participatividade social adotado na elaboração do Marco Civil posteriormente foi usado, em maior ou menor medida, como parâmetro para outros projetos, dentre os quais podemos apontar os Projetos do Código de Processo Civil e do Novo Código Comercial, levadas a debate público pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.
Também é importante ressaltar o modo como a participatividade social online conduziu à quebra dos paradigmas atrelados ao processo legislativo tradicional, demonstrando a viabilidade e proveito do processo legislativo colaborativo.
Com efeito, as discussões colaborativas iniciadas graças à iniciativa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, que num primeiro momento levou o conteúdo da futura lei a debate público, conforme já exposto, não se limitaram a uma iniciativa de lei popular, mas adentraram o próprio processo legislativo, materializando de forma direta e imediata a opinião pública no âmbito das Casas Legislativas.
Portanto, tal experiência pode ser apontada como um verdadeiro marco na história da Democracia brasileira, uma vez que, como em nenhum outro momento, a elaboração do Marco Civil da Internet trouxe uma expressiva participação popular, em grande parte graças às ferramentas online disponibilizadas pelo Poder Público ao cidadão.
Importante também que se ressalte que essa participação ou colaboração social mostrou-se relevante na gênese do Marco Civil da Internet tanto sob o aspecto quantitativo quanto qualitativo.
Com efeito, milhares de pessoas contribuíram no desenvolvimento do Marco regulatório da Internet, desde a sua fase pré-legislativa, na qual se buscava a elaboração de uma minuta do anteprojeto de lei.
Posteriormente, após o seu envio ao Legislativo como projeto de lei, iniciou-se um processo legislativo colaborativo de tramitação do projeto, no qual diversos setores da sociedade debatiam temas como a neutralidade da rede, liberdade de expressão, privacidade e responsabilidade dos provedores.
Por diversas vezes durante os debates foram observados antagonismos entre os interesses das empresas de telecomunicação e os potenciais usuários de seus serviços, em especial no que tangia à questão da neutralidade da rede.
Para além do mérito dessas discussões, observamos que o debate fomentado durante a elaboração do Marco Civil da Internet possibilitou a inserção no texto legal, posteriormente, de significativas contribuições, que consistem em sínteses das discussões sobre cada ponto controverso.
Portanto, em razão do modo inovador como se deu o debate entre os diversos setores sociais e entre estes e o Poder Público, bem como em virtude da relevância quantitativa e qualitativa das contribuições sociais na elaboração do Marco Civil da Internet, podemos dizer que tal processo materializou-se em uma bem-sucedida experiência de fortalecimento da Democracia no Brasil.
5 CONCLUSÃO
Se as limitações inerentes às mídias tradicionais podem ser apontadas como empecilhos ao exercício da liberdade de expressão de modo imediato e constante na tomada de decisões pelos representantes do povo, o desenvolvimento da tecnologia da informação e comunicação permite a superação dessas barreiras, na medida em que faz surgir ferramentas computacionais com capacidade de conectar pessoas em ambientes virtuais, proporcionando formas de interação direta imediata entre sujeitos localizados em espaços geográficos distintos.
Além disso, conforme já foi abordado acima, o desenvolvimento da tecnologia da informação permite o surgimento de aplicações inteligentes e ambientes virtuais dentro dos quais as relações sociais podem ser sentidas e exploradas sob uma nova perspectiva.
Nesse contexto, a expansão do uso da internet e a forma como as pessoas passam a ver no meio virtual uma reprodução ou extensão de suas próprias vidas cotidianas são processos sintomáticos de que há uma crescente demanda na busca por informações e no exercício da liberdade de expressão por meio da internet, demanda que não pode ser ignorada, mormente pelo Poder Público.
Portanto, mais do que tomar conhecimento deste fenômeno da crescente busca pelas ferramentas online de expressão e obtenção de informações, deve o Poder Público captar e traduzir esse interesse social na gestão pública de modo a dar-lhe a feição de participatividade social, sistemática e organizada, através da disponibilização de aplicações virtuais nas quais estimula-se o debate em torno de questões atuais ao mesmo tempo em que se amplia o controle social sobre as decisões tomadas pelos representantes do povo.
É nesse sentido que a experiência estudada no presente trabalho representa um reforço da Democracia participativa, ampliando a compreensão sobre participação popular e democratização do processo legislativo.
Ademais, amplia-se também a compreensão sobre o potencial da tecnologia da informação e comunicação prover alternativas para o meio jurídico que viabilizem rotinas seguras, práticas e velozes sem perder de vista a validade jurídica e legitimidade.
Observa-se, portanto, que a participação social na elaboração do Marco Civil da Internet apresentou diversas particularidades, em termos de abrangência e inovação, conforme exposto no presente trabalho, que permitem alçá-la a uma posição destacada enquanto objeto de estudo, constituindo também um ponto capital no aperfeiçoamento do processo democrático no Brasil.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Aparecida de Moura. A Participação da Sociedade Civil no Processo Legislativo: a contribuição da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados. 2003. 69 f.
Monografia (Especialização em Gestão Legislativa) – Universidade de Brasília, Brasília, 2003
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Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, José Antonio Francisco de. A participatividade social online na elaboração do marco civil da internet (Lei nº 12.965/2014) como precedente de fortalecimento da democracia no Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 mar 2023, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/61182/a-participatividade-social-online-na-elaborao-do-marco-civil-da-internet-lei-n-12-965-2014-como-precedente-de-fortalecimento-da-democracia-no-brasil. Acesso em: 22 nov 2024.
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