Introdução
A legitimidade das Forças Armadas é um tema crucial em Estados democráticos. No Brasil, o papel dessas instituições transcende a defesa do território nacional, englobando funções subsidiárias, como as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e o apoio à sociedade civil em situações de emergência. Contudo, esse protagonismo também gera questionamentos quanto à fiscalização de suas atividades, especialmente em períodos de tensões institucionais. Este artigo busca compreender como as Forças Armadas brasileiras mantêm sua legitimidade perante a sociedade, considerando o contexto histórico e os desafios democráticos contemporâneos.
A legitimidade das Forças Armadas
As Forças Armadas desempenharam papel central na formação do Estado brasileiro e na manutenção da ordem interna. Desde a independência em 1822, as instituições militares participaram de eventos marcantes, como a Proclamação da República em 1889 e o movimento de 1964.
Na Segunda Guerra Mundial, o Brasil destacou-se ao enviar a Força Expedicionária Brasileira (FEB) para o front europeu, contribuindo significativamente para os esforços aliados. A participação na Campanha da Itália consolidou o reconhecimento internacional das Forças Armadas brasileiras como uma potência militar emergente. Essa experiência reforçou o papel do Brasil no cenário global, especialmente em operações de paz promovidas pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Além do desempenho na Segunda Guerra Mundial, as Forças Armadas brasileiras têm se destacado em missões internacionais de paz, como no Haiti (MINUSTAH). Essas missões não apenas reforçam a projeção internacional do Brasil, mas também contribuem para a capacitação e modernização das tropas. A participação nessas operações é vista como um instrumento de soft power, fortalecendo a imagem do Brasil como um país pacífico e comprometido com a segurança internacional.
A relação entre as Forças Armadas e a democracia brasileira apresenta desafios específicos no contexto atual, marcados por crescentes demandas por transparência e accountability. A percepção pública de que as instituições militares possuem um papel relevante em momentos de crise política ou social pode, paradoxalmente, fortalecer sua legitimidade, desde que essa atuação seja pautada pela neutralidade e pelo respeito à Constituição.
No entanto, episódios recentes de polarização política no Brasil demonstraram que a linha entre a atuação técnica e o envolvimento político é tênue, evidenciando a necessidade de reforçar os mecanismos de controle externo e interno das atividades militares.
O fortalecimento do papel das Forças Armadas no Estado democrático exige também uma compreensão mais ampla de sua função como agentes de estabilidade em cenários de incerteza. Embora as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) sejam legais e regulamentadas, o uso frequente dessa ferramenta pode gerar desconfiança na sociedade, especialmente se os militares forem vistos como substitutos das instituições civis. Para evitar esse risco, é imprescindível que as Forças Armadas atuem como uma força de apoio temporária e excepcional, enquanto se promove o fortalecimento das capacidades das polícias e outras instituições públicas responsáveis pela segurança.
A modernização legislativa emerge como uma oportunidade para consolidar a confiança pública nas Forças Armadas, ao oferecer maior clareza sobre sua atuação e responsabilidades. O Livro Branco de Defesa Nacional, por exemplo, poderia ser complementado com informações ainda mais detalhadas sobre as metas de médio e longo prazo das Forças Armadas, incluindo seu impacto socioeconômico.
Além disso, a criação de canais de comunicação mais acessíveis, como plataformas digitais, poderia permitir que a população acompanhasse e compreendesse melhor o papel das instituições militares, tornando-as mais próximas e conectadas às demandas da sociedade civil.
O avanço tecnológico também introduz novos desafios e oportunidades para as Forças Armadas no Brasil. A adoção de tecnologias emergentes, como inteligência artificial, drones e sistemas de ciberdefesa, é fundamental para modernizar as capacidades operacionais das instituições militares. Contudo, é crucial que essa modernização esteja acompanhada de um debate público transparente e de regras claras que evitem abusos ou excessos. A incorporação dessas tecnologias deve, portanto, ser vista não apenas como uma questão de eficiência operacional, mas também como uma forma de demonstrar o compromisso das Forças Armadas com valores éticos e democráticos.
Um ponto que merece maior atenção é a formação dos militares no contexto democrático. Embora o ensino de ética e direitos fundamentais já esteja presente nos currículos das academias militares, o aprofundamento dessa formação é essencial para alinhar a atuação dos militares às expectativas da sociedade contemporânea.
O incentivo ao diálogo interdisciplinar, por exemplo, poderia aproximar os militares de outras áreas do conhecimento, como sociologia, direito e relações internacionais, promovendo uma visão mais ampla sobre seu papel em um Estado democrático. Essa integração contribuiria para que os militares compreendam os limites e as possibilidades de sua atuação em um ambiente plural e dinâmico.
Além da formação interna, o engajamento das Forças Armadas em missões internacionais também desempenha um papel importante na construção de sua legitimidade. A participação em operações de paz da ONU, como a MINUSTAH no Haiti, não apenas projeta o Brasil no cenário global, mas também contribui para o desenvolvimento profissional e ético das tropas. Essas experiências internacionais podem servir como modelo para a atuação interna, promovendo um maior alinhamento com os padrões internacionais de direitos humanos e governança democrática.
Assim, a troca de experiências entre as Forças Armadas e instituições internacionais deve ser incentivada como parte de uma estratégia maior de modernização e aperfeiçoamento.
Outro aspecto relevante é o impacto social das Forças Armadas, especialmente em comunidades vulneráveis. O apoio logístico prestado durante crises humanitárias, como desastres naturais e pandemias, reforça a imagem das instituições militares como agentes de solidariedade e segurança.
No entanto, para que essa atuação tenha um impacto positivo duradouro, é necessário que as ações sejam acompanhadas por políticas públicas consistentes, capazes de garantir resultados efetivos para as populações atendidas. Dessa forma, o papel subsidiário das Forças Armadas pode ser articulado com iniciativas governamentais e não governamentais, promovendo uma atuação integrada e eficiente.
Por fim, o fortalecimento da legitimidade das Forças Armadas passa, inevitavelmente, pelo engajamento com a sociedade civil em um diálogo contínuo e transparente. A promoção de audiências públicas, debates e eventos culturais envolvendo a população e os militares pode ajudar a desmistificar o papel das instituições militares, aproximando-as das pessoas comuns.
Essa interação, além de promover confiança mútua, contribui para a consolidação de uma identidade nacional em que as Forças Armadas sejam vistas não apenas como defensoras da soberania, mas também como parceiras no desenvolvimento social e na manutenção do Estado democrático de direito.
Propostas para fortalecer a legitimidade institucional
A consolidação da legitimidade das Forças Armadas exige a adoção de iniciativas que fortaleçam a transparência e a profissionalização da instituição.
Nesse sentido, uma das medidas fundamentais é a ampliação da transparência, por meio da criação de relatórios públicos detalhados sobre operações militares e a utilização de recursos, permitindo um maior controle social e institucional. Além disso, é essencial fortalecer o diálogo com a sociedade civil, promovendo debates e audiências públicas que esclareçam o papel das Forças Armadas e aproximem a instituição da população. A modernização da legislação militar também se mostra necessária, garantindo o alinhamento das normas às demandas contemporâneas de direitos humanos e segurança, de modo a reforçar a legitimidade jurídica e social da atuação militar. Outrossim, investir na formação democrática dos militares é imprescindível, incorporando disciplinas sobre ética e direitos fundamentais nos currículos das academias e escolas de formação, contribuindo para a construção de uma cultura institucional comprometida com os valores democráticos e o respeito às garantias individuais.
Uma das iniciativas no sentido da ampliação da transparência é a publicação periódica do Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN), instituído pela Lei Complementar nº 136, de 25 de agosto de 2010, que alterou a Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999 (que dispõe sobre a organização das Forças Armadas).
A referida lei trouxe a seguinte redação:
Art. 9º O Ministro de Estado da Defesa exerce a direção superior das Forças Armadas, assessorado pelo Conselho Militar de Defesa, órgão permanente de assessoramento, pelo Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas e pelos demais órgãos, conforme definido em lei.
§ 1º Ao Ministro de Estado da Defesa compete a implantação do Livro Branco de Defesa Nacional, documento de caráter público, por meio do qual se permitirá o acesso ao amplo contexto da Estratégia de Defesa Nacional, em perspectiva de médio e longo prazos, que viabilize o acompanhamento do orçamento e do planejamento plurianual relativos ao setor.
§ 2º O Livro Branco de Defesa Nacional deverá conter dados estratégicos, orçamentários, institucionais e materiais detalhados sobre as Forças Armadas, abordando os seguintes tópicos:
I - cenário estratégico para o século XXI;
II - política nacional de defesa;
III - estratégia nacional de defesa;
IV - modernização das Forças Armadas;
V - racionalização e adaptação das estruturas de defesa;
VI - suporte econômico da defesa nacional;
VII - as Forças Armadas: Marinha, Exército e Aeronáutica;
VIII - operações de paz e ajuda humanitária.
§ 3º O Poder Executivo encaminhará à apreciação do Congresso Nacional, na primeira metade da sessão legislativa ordinária, de 4 (quatro) em 4 (quatro) anos, a partir do ano de 2012, com as devidas atualizações:
I - a Política de Defesa Nacional;
II - a Estratégia Nacional de Defesa;
III - o Livro Branco de Defesa Nacional.
A despeito de a periodicidade de publicação ter sido estabelecida em quatro anos, a versão mais recente do LBDN foi publicada em 2020.
Em 2012 foi publicada a primeira edição do LBDN; em 2016 houve a primeira atualização da publicação, como previsto na legislação; e em 2020 foi publicada a terceira edição, que é atualmente a versão mais recente.
Essas edições visam proporcionar transparência sobre a política e a estratégia de defesa do Brasil, apresentando informações atualizadas sobre as Forças Armadas, seus objetivos estratégicos e os principais projetos de defesa.
Atualmente, está em andamento o processo de atualização para uma nova versão. Em 25 de outubro de 2022, foi instituída a Portaria nº 5.395, que estabelece diretrizes e o fluxo de trabalho para a elaboração da proposta de atualização do LBDN no âmbito do Ministério da Defesa. Além disso, em 10 de julho de 2023, o Decreto nº 11.592 instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial para a atualização do LBDN. Portanto, até o momento, a versão de 2020 permanece como a mais atual disponível.
A ampliação da transparência nas atividades das Forças Armadas é um dos pilares fundamentais para o fortalecimento de sua legitimidade institucional. Relatórios públicos detalhados, como sugerido, podem incluir não apenas os resultados operacionais das missões realizadas, mas também informações orçamentárias, indicadores de desempenho e auditorias externas.
A criação de um portal digital específico, acessível ao público, poderia centralizar esses dados de forma interativa e atualizada, permitindo que a sociedade acompanhasse as iniciativas militares e compreendesse como os recursos são utilizados. Essa plataforma poderia incluir seções dedicadas a operações de paz, missões subsidiárias e desenvolvimento tecnológico, reforçando a imagem das Forças Armadas como uma instituição aberta e comprometida com a prestação de contas.
O fortalecimento do diálogo com a sociedade civil é outra proposta que exige uma abordagem estruturada e contínua. Debates e audiências públicas podem ser promovidos em parceria com universidades, organizações da sociedade civil e institutos de pesquisa, com o objetivo de discutir temas como o papel das Forças Armadas em crises internas, sua atuação internacional e o impacto de novas tecnologias no setor de defesa.
Além disso, a criação de programas educacionais, como oficinas e palestras em escolas e comunidades, pode aproximar a população das instituições militares, desmistificando seu papel e construindo uma relação de confiança. A participação de oficiais e especialistas civis nesses eventos também contribuiria para enriquecer o debate e promover um intercâmbio de ideias.
A modernização da legislação militar, por sua vez, é um passo indispensável para alinhar as normas existentes às demandas democráticas contemporâneas, como por exemplo, a criação de uma legislação específica para regular o uso de tecnologias emergentes, como ciberdefesa e inteligência artificial, garantindo que sua aplicação seja ética e esteja em conformidade com os valores democráticos. Essas reformas legislativas poderiam ser debatidas em comissões do Congresso Nacional, com a participação de especialistas militares e civis, promovendo um processo participativo e inclusivo.
A inclusão de disciplinas sobre ética e direitos fundamentais nos currículos militares também merece ser aprofundada. Para além do ensino teórico, seria interessante incorporar estudos de caso, simulações práticas e atividades interativas que exponham os militares a dilemas éticos reais e situações que envolvam o respeito aos direitos humanos em diferentes contextos.
Parcerias com universidades e centros de pesquisa poderiam enriquecer esses programas de formação, trazendo perspectivas acadêmicas e experiências internacionais. Além disso, a criação de cursos voltados para líderes militares sobre governança e transparência fortaleceria a consciência institucional sobre a importância de alinhar a atuação das Forças Armadas aos princípios democráticos.
Por fim, a institucionalização de mecanismos de feedback e avaliação das iniciativas adotadas pelas Forças Armadas seria uma medida crucial para assegurar a eficácia das propostas sugeridas.
A criação de um conselho consultivo misto, formado por representantes das instituições militares, do governo, da sociedade civil e da academia, poderia atuar como órgão de monitoramento e avaliação contínua. Esse conselho teria a responsabilidade de revisar periodicamente as ações e políticas implementadas, propor ajustes e garantir que as metas estabelecidas sejam alcançadas. Além disso, a publicação de relatórios anuais com os resultados dessas avaliações fortaleceria a transparência e permitiria que a sociedade acompanhasse os avanços e desafios enfrentados pelas Forças Armadas no cumprimento de suas funções.
Conclusão
A legitimidade das Forças Armadas brasileiras depende de sua capacidade de atuar como guardiãs da democracia, respeitando os limites constitucionais e promovendo a confiança da sociedade. A história demonstra que essas instituições desempenharam papel fundamental na construção e defesa do Estado brasileiro, contudo, o cenário atual exige um aprimoramento contínuo dos mecanismos de controle e da comunicação com a sociedade civil.
A modernização legislativa, a ampliação da formação ética e democrática dos militares e a consolidação de instrumentos de fiscalização externa são medidas essenciais para fortalecer a confiança institucional. A periodicidade na atualização do Livro Branco de Defesa Nacional e a criação de canais de transparência acessíveis ao público reforçam esse compromisso, permitindo um acompanhamento mais detalhado das atividades e do orçamento das Forças Armadas.
Ademais, a interação com a sociedade civil por meio de debates, audiências públicas e programas educacionais contribui para aproximar as instituições militares da população, desmistificando seu papel e consolidando sua imagem como guardiãs da soberania e do Estado democrático de direito.
Dessa forma, a construção de uma legitimidade institucional sólida exige uma atuação pautada na neutralidade política, no respeito aos valores democráticos e no compromisso permanente com a defesa dos interesses nacionais, sempre em conformidade com a Constituição Federal.
Referências
BRASIL. Ministério da Defesa. Livro Branco de Defesa Nacional. Disponível em: https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/copy_of_estado-e-defesa/livro-branco-de-defesa-nacional-lbdn-1. Acesso em 21/01/2025.
BRASIL. Ministério da Defesa. Portaria nº 5.395, de 25 de outubro de 2022. Disponível em: https://mdlegis.defesa.gov.br/norma_html/?ANO=2022&NUM=5395&SER=A, acesso em 21/01/2025.
CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
D'ARAÚJO, Maria Celina e CASTRO, Celso. Democracia e forças armadas no cone sul. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2000.
DREIFUSS, René Armand e DULCI, Otávio Soares. As forças armadas e a política. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008. Disponível em: https://books.scielo.org/id/b4km4/pdf/sorj-9788599662632-05.pdf. Acesso em 21 jan. 2025.
Oficial de Assessoria Jurídica do Exército Brasileiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GABRIEL BACCHIERI DUARTE FALCãO, . A legitimidade das forças armadas no contexto democrático brasileiro: fiscalização pública e confiança institucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2025, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/67862/a-legitimidade-das-foras-armadas-no-contexto-democrtico-brasileiro-fiscalizao-pblica-e-confiana-institucional. Acesso em: 22 fev 2025.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
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