O § 3º do art. 102 da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, assim dispõe:
“Art. 102 (...) § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.”
Regulamentando o dispositivo constitucional, a Lei nº 11.418, de 19 de dezembro de 2006, acrescentou os arts. 543-A e 543-B ao CPC, determinando ainda no art. 3º que caberá ao Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (RISTF) estabelecer as normas necessárias à sua execução.
O que é repercussão geral?
Os §§ 1º e 3º do art. 543-A definem que o recurso extraordinário oferece repercussão geral em duas situações:
· se existem questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa; ou
· se o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.
A Emenda Constitucional nº 45/2004 e a Lei nº 11.418/2006 têm por objetivo fazer com que somente seja apreciado o recurso extraordinário que versar a respeito de questão relevante, que transcenda o interesse meramente individual das partes em litígio. No caso da existência de decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do STF, a repercussão geral é presumida.
Há manifestação na doutrina identificando a repercussão geral com a transcendência, no sentido de que “a repercussão geral traduz a importância metaindividual da matéria”.[1]
Mas há também opinião no sentido de que repercussão geral seria a conjugação de relevância e transcendência.[2] Assim, questão deve ser relevante sob ponto de vista econômico, político, social ou jurídico (relevância), assim como deve ultrapassar os interesses subjetivos da causa (transcendência). Embora não esteja expresso, isso parece defluir da definição estabelecida no § 1º do art. 543-A do CPC:
“Art. 543-A (...) § 1o Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.”
Somados esses entendimentos, pode-se também entender que questão relevante, sob qualquer dos pontos de vista mencionados, é aquela que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. Assim, as noções de “relevância” e de “transcendência” estariam intimamente ligadas, não sendo possível falar em questão relevante que não seja transcendente e vice-versa.
Seja como for, o art. 543-A do CPC não define o que seria questão relevante “do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico” (aludida relevância), tampouco quais características são necessárias para configuração de questões “que ultrapassem os interesses subjetivos da causa” (aludida transcendência).
Somente a jurisprudência do STF poderá responder a essas questões. Por ora, o que podem fazer os juristas são apenas exercícios de uma suposta lógica jurídica, dizendo qual interpretação julgam “correta”, ao mesmo tempo em que tentam vislumbrar qual será a interpretação que prevalecerá ou mesmo pretensiosamente contribuir para essa interpretação.
Assim, o que pode ser considerado transcendência?
Dizer que devemos entender por transcendência a característica da questão que terá o condão de atingir, direta ou indiretamente, um grande número de pessoas não ajuda na definição do instituto. Parece claro que são transcendentes, com bem diz o § 1º acima transcrito, as questões que “ultrapassem os interesses subjetivos da causa”. Mas o que significa isso exatamente?
Parece óbvio que a exigência de que o recurso deve “ultrapassar os interesses subjetivos da causa” (transcendência), não significa que a decisão prolatada em ação individual deverá atingir terceiros, em uma tresloucada extensão dos limites subjetivos da coisa julgada.
É razoável imaginar que transcendência significa ou que o recurso deve ser capaz de gerar um precedente (leading case), que irá nortear a interpretação e aplicação do direito constitucional em casos futuros, ou que se refere a direitos coletivos, difusos ou individuais homogêneos.
Nesse sentido, há manifestação da doutrina no seguinte sentido:
“A transcendência da controvérsia constitucional levada ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal pode ser caracterizada tanto em uma perspectiva qualitativa como quantitativa. Na primeira, sobreleva para individualização da transcendência o importe da questão debatida para a sistematização e desenvolvimento do direito; na segunda, o número de pessoas susceptíveis de alcance, atual ou futuro, pela decisão daquela questão pelo Supremo e, bem assim, a natureza do direito posto em causa (notadamente, coletivo ou difuso).”[3]
E há opinião defendendo que poderá existir repercussão geral mesmo em ações individuais, com questões provavelmente não ocorrerão em outros processos:
“Numa perspectiva vertical, cumpre reconhecer que também quando estiver em jogo o direito de uma só pessoa, em situação aparentemente irrepetível, deverá ser reconhecida a repercussão geral, desde que se trate de direito fundamental, aí incluídos, como se sabe, os direitos e garantias individuais e os direitos sociais, com ênfase na tutela do mínimo existencial.”[4]
Seja como for, parece claro que não se pode restringir o significado de repercussão geral apenas aos chamados “processos repetidos”, que o art. 543-B do CPC alude ao se referir à “multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia”, que enseja um procedimento especial de análise de recursos representativos e sobrestamento dos demais. Caso o alcance fosse apenas esse, o procedimento do art. 543-B não seria um procedimento específico para tais recursos, mas sim a regra única de processamento e julgamento do recurso extraordinário.
E o que pode vir a ser considerado questão relevante, do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico?
Se o deslinde da questão transcendente for importante para o desenvolvimento e unificação da interpretação da matéria constitucional, de modo a contribuir para a sistematização do direito constitucional, ficará caracterizada a relevância da questão sob o aspecto jurídico.
Mas a questão pode ser transcendente sem influenciar a interpretação ou sistematização do direito. Imagine-se, por exemplo, um recurso extraordinário em um processo envolvendo um ente público ou mesmo uma entidade de direito privada prestadora de serviços assistenciais, ou mesmo uma empresa pública ou privada, com muitos empregados, com muitos contratos com fornecedores, clientes etc. Se a questão em litígio envolver valores muito elevados, é evidente que a questão é relevante sob o aspecto econômico, assim como é transcendente por atingir um grande número de pessoas, que sustentam o ente público mediante pagamento de tributos, que dependem dos serviços prestados pelo pela entidade assistencial ou que dependem dos empregos ou contratos mantido com a empresa pública ou privada. A questão poderá ser transcendente e relevante sob o aspecto econômico, de modo que o recurso extraordinário oferecerá repercussão geral.
O mesmo se diga quando a questão, também sem influenciar na interpretação do direito, é relevante sob o aspecto social. Tomemos novamente o exemplo de uma entidade de assistência social, de uma escola ou de um hospital com ou sem fins lucrativos. Caso demonstrado que a ação influenciará na prestação dos serviços para um grande número de pessoas, estará caracterizada a transcendência. Se essa influência alterar de forma significativa a prestação dos mencionados serviços, a questão objeto do recurso será relevante sob o aspecto social.
Por fim, a questão pode ser relevante sob o aspecto político. Mas nem toda questão envolvendo política é relevante. Serão relevantes, por exemplo, questões envolvendo definição judicial em matéria eleitoral relativa a validade de pleitos eleitorais relativos a investidura de membros de poderes e em cargos importantes da República. A transcendência nesses casos parece óbvia, já que a definição de quem serão os membros e ocupantes de cargos importantes dos poderes da República atinge toda a população.
Mas nada disso se presume: deve ser demonstrado que a decisão do processo judicial irá influenciar a vida de muitas pessoas (transcendência), em razão da contribuição para a sistematização do direito (relevância jurídica), magnitude dos valores envolvidos (relevância econômica), influência na prestação de serviços sociais (relevância social) ou da definição de quem deve ser os membros ou ocupar cargos importantes da República (relevância política).
Muitas vezes a questão será relevante em mais de um aspecto. Por exemplo, poderá a decisão de uma relevante questão política influenciar na sistematização do direito constitucional. Nesse caso, a questão será relevante sob o ponto de vista político e sob o ponto de vista jurídico. Mas a norma não exige tanto: basta que a relevância da questão exista sob um dos aspectos tratados para que, somada à transcendência, fique caracterizada a repercussão geral.
Seja como for, novamente nos encontramos em um exercício de suposta lógica jurídica, tentando ou de uma forma pretensiosa contribuir ou apenas vislumbrar o que o STF irá definir!
Nesse sentido, a respeito da tentativa de definição do que seria repercussão geral, merece destaque a lúcida manifestação doutrinária:
“O que se passa com tal noção é que ela deve ser objeto de decantação permanente, de que resultará, com o tempo, mosaico rico e variegado de matizes.”[5]
Portanto, a definição do que seja repercussão geral e as respostas a todas indagações acima formuladas somente podem ser dadas, ao longo do tempo, pela jurisprudência do STF: Direito é o que o Tribunal diz que é Direito.
2.Motivos políticos, constitucionalidade e objetivos da exigência de repercussão geral no recurso extraordinário.
Não é segredo para ninguém que o STF e outros tribunais encontram-se abarrotado de processos a espera de julgamento, assim como o volume de processos aguardando julgamento é muito superior à capacidade humana e material de que se dispõe.
Como conclusão óbvia dessa constatação, há demora no julgamento dos processos judiciais.
Não se trata, como a mídia faz freqüentemente, de apenas criticar a “lentidão do Judiciário”, ou mesmo, como alguns juristas também o fazem, de criticar o “formalismo processual” ou o “excesso de recursos”. O fundamental é, partindo de uma realidade fática – ausência de julgamentos céleres – buscar soluções que resolvam o problema.
A Constituição Federal estabelece diversos princípios e garantias, como forma de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), sendo que a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa constituem fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º). Além disso, de forma expressa, a Constituição assegura a todos a razoável duração do processo, com os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (art. 5º, LXXVIII).
Não é difícil concluir que o legislador ordinário deve buscar meios para que esses dispositivos constitucionais sejam concretizados. Não basta apenas a Constituição ser um texto meramente bonito, programático, carregado de boas intenções, mas desprovido de força normativa. O grande desafio de qualquer sociedade constitucional, evidentemente, é fazer com que a Constituição seja cumprida.
Como fazer com que o processo judicial seja célere, de modo que todas as pessoas possam valer seus direitos? Qual a função que Constituição reserva ao STF?
Ao STF compete, por expressa determinação do caput do art. 102 da Constituição Federal, “a guarda da Constituição”. Quando a alínea “l” do inciso I estabelece a competência para julgar “a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões” e o inciso III estabelece as hipóteses de cabimento de recurso extraordinário, é evidente que se tem como objetivo concretizar a função de “guarda da Constituição” estabelecida no caput do dispositivo.
Há um interesse público, consistente em substituir decisões judiciais em desconformidade com a interpretação dada pelo STF à Constituição, de modo a dar unidade ao direito constitucional brasileiro. Em um processo judicial alçado ao STF, a função outorgada pela Constituição não é, simplesmente, de atender ao interesse individual da parte em litígio, mas sobretudo atender ao interesse público diretamente relacionado com a necessidade de concretização e interpretação uniforme do direito constitucional.
Parte da doutrina já havia se manifestado expressamente pela adoção de mecanismos como “súmula vinculante” e “argüição de relevância”, como forma de mudar o papel hoje exercido pelos tribunais superiores.[6]
Por ocasião da apreciação, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei nº 6.648, de 2006 (nº 12, de 2006, no Senado), que deu origem à Lei nº 11.418/2006, assim manifestou-se o Relator, Dep. Odair Cunha:
“Faremos, pois, que o STF deixe de ser um Tribunal de terceira ou quarta instância para apreciação de questões já decididas por outros tribunais. Alteraremos o seu perfil, alçando-o à condição de corte constitucional, cuja jurisdição será desvinculada do caso concreto, ainda que continue a ser um órgão do Poder Judiciário.”
Na verdade, esse escopo ainda está muito longe de ser atingido, mesmo com o advento da necessidade de existência e demonstração da repercussão geral. O STF ainda continuará abarrotado de processos, assim como a esmagadora maioria desses processos ainda serão processos de natureza individual, produzindo efeitos diretos e coisa julgada apenas entre as partes.
E tanto é assim que a existência de repercussão geral é apenas exigível no recurso extraordinário, a teor do § 3º do art. 102 da Constituição Federal, acima transcrito. Para os demais recursos, ações ou medidas apreciadas pelo STF, não há qualquer norma a exigir a demonstração ou mesmo a existência de repercussão geral! Sob o aspecto de política jurídica, isso pode ser considerado uma contradição, pois o STF continuará abarrotado de ações e recursos de natureza meramente individual, sem qualquer oferecimento de repercussão geral.
Contudo, a despeito de a Lei nº 11.418/2006 ter alterado o Código de Processo Civil, a jurisprudência do STF já apontou no sentido de que a repercussão geral também deve existir e ser demonstrada nos recursos extraordinários em matéria criminal (Agravo de Instrumento nº 664.567).
Seja como for, já é um começo. O processo no qual é apreciado um recurso extraordinário começa, enfim, a ganhar contornos de processo objetivo.
Esses contornos ficam mais evidenciados quando na possibilidade prevista no § 6 do art. 543-A, segundo o qual o Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros. Trata-se da figura do amicus curiae, que poderá ingressar no feito para manifestar sua opinião a respeito da questão em julgamento.
Os efeitos jurídicos concretos apenas atingem as partes em litígio no processo individual, mas já pode ser possível sustentar que os efeitos jurídicos abstratos, decorrentes do precedente criado no julgamento, vinculam todos os órgãos judiciais.
Por isso o § 3º do art. 543-A expressamente afirma que há repercussão geral se o recurso extraordinário for interposto em face de decisão que contrariar súmula ou jurisprudência dominante no STF.
Referido § 3º tem redação estabelecida pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, que, por ocasião da apreciação do Projeto de Lei do Senado nº 12, de 2006, que deu origem à Lei nº 11.418/2006, adotou o seguinte entendimento:
“É relevante que a lei preveja que o julgamento divergente proferido pelo tribunal inferior é causa suficiente para caracterizar a repercussão geral do recurso extraordinário. A repercussão geral, nesse caso, está evidenciada pela proteção à isonomia, à ordem e à segurança jurídica. Realmente, não pode ser boa para o sistema a coexistência de decisões diametralmente opostas sobre o mesmo tema e no mesmo momento histórico.”[7]
Evidencia-se a vontade do legislador em fazer do recurso extraordinário um instrumento de unificação da interpretação e aplicação do direito constitucional.
Assim, é traço marcante a preocupação com a vinculação e efetividade das decisões tomadas pelo STF e a possibilidade de participação de terceiros (amicus curiae) no julgamento que poderá consistir em leading case, já que o julgamento do mérito do recurso extraordinário terá repercussão geral.
A adoção desses princípios foi uma opção política que, sob o aspecto jurídico, foi tecnicamente acertada e está totalmente de acordo com os preceitos constitucionais apontados.
3.Natureza jurídica da exigência de repercussão geral e de sua demonstração em preliminar de recurso extraordinário.
Vimos acima que o art. 543-A do CPC, introduzido pela Lei nº 11.418/2006, estabelece que o STF não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral. Qual a natureza jurídica da exigência de que o recurso ofereça repercussão geral?
Trata-se de mais um requisito ou pressuposto de admissibilidade, que soma-se à tempestividade, legitimidade e ao interesse do recorrente,[8] entre outros. A existência de repercussão geral é um requisito intrínseco de admissibilidade recursal, pois diz respeito à existência do poder de recorrer.[9]
Além disso, de acordo com o § 2º o art. 543-A do CPC desse dispositivo, é ônus do recorrente demonstrar, em preliminar do recurso, a existência da repercussão geral. Como se vê, há uma clara determinação legal quanto à forma pela qual a existência de repercussão geral deverá ser demonstrada: em preliminar.
Assim, a norma estabelece também um requisito extrínseco para a admissão do recurso extraordinário, que é a demonstração, na preliminar do recurso, da existência de repercussão geral.
No item seguinte veremos qual deve ser a sanção aplicada pela ausência desse requisito extrínseco.
4.A necessidade e o procedimento de aferição da existência de repercussão geral para apreciação do recurso extraordinário.
De acordo com o decidido pelo STF na Questão de Ordem suscitada no Agravo de Instrumento nº 664567, a exigência da demonstração da existência de repercussão geral somente existe quando a intimação do acórdão recorrido tenha ocorrido a partir de 3 de maio de 2007, data da publicação da Emenda Regimental nº 21, de 30 de abril de 2007.
Nesse julgamento concluiu-se também que os recursos extraordinários em matéria criminal não prescindem do oferecimento de repercussão geral, que deverá ser demonstrada nos termos descritos no CPC e no RISTF.
É intuitivo imaginar que o STF não estará vinculado aos argumentos expostos pelo recorrente para demonstrar a existência de repercussão geral. Porém, como vimos acima, o § 2º art. 543-A do CPC determina não só que o recorrente demonstre que o recurso extraordinário oferece repercussão geral, como exige que isso seja efetuado em preliminar de recurso. Contudo, esse dispositivo silencia a respeito da sanção aplicável na hipótese de descumprimento da exigência.
Poderá a existência de repercussão geral ser apreciada mesmo se o recorrente não fizer a sua demonstração ou não o fizer em preliminar de recurso?
Há manifestação da doutrina afirmando que a exigência deve ser relevada:
“Sustentar que a ausência de preliminar recursal demonstrando a repercussão geral deve gerar o não-conhecimento de recurso parece não se coadunar com o perfil de ‘processo objetivo’ conferido à repercussão geral, privilegiando-se o formalismo em detrimento da pronta solução de questões de grande importância para o povo brasileiro.”[10]
Contudo, o art. 327 do RISTF, com redação dada pela Emenda Regimental (ER) nº 21, de 30 de abril de 2007, é expresso no sentido de que a Presidência do STF deverá recusar o recurso que não apresentar “preliminar formal e fundamentada de repercussão geral”, bem como idêntica competência caberá ao Relator, se a Presidência não recusar liminarmente o recurso.
O fundamento legal dessa disposição regimental é o art. 3º da Lei nº 11.418/2006, que dispõe no seguinte sentido: “Caberá ao Supremo Tribunal Federal, em seu Regimento Interno, estabelecer as normas necessárias à execução desta Lei”.
O art. 327 do RISTF é expresso o suficiente para que possamos antever que são muito remotas as possibilidades de serem aceitos recursos extraordinários sem a demonstração exigida em preliminar de recurso, mesmo se versarem sobre questões cuja repercussão geral já houver sido reconhecida pelo STF.
A demonstração formal da repercussão geral deve ser apresentada em preliminar mesmo na hipótese de recurso extraordinário interposto contra decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do STF?
O § 3º do art. 543-A do CPC estabelece de forma cabal que, nesse caso, existe repercussão geral, mas não tem regra explícita para dispensar a apresentação da demonstração. Tampouco o RISTF tem regra nesse sentido. Assim, salvo se a jurisprudência do STF se pacificar no sentido de dispensar a apresentação da preliminar nesse caso, é altamente recomendável que o advogado demonstre, em preliminar, que há súmula ou jurisprudência dominante do STF, bem como que o acórdão do tribunal inferior está em sentido contrário.
Nessa hipótese, ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, a preliminar do recurso extraordinário não irá esgotar o mérito, já que o fundamento (mérito) do recurso extraordinário não é julgamento em desconformidade com súmula ou jurisprudência dominante do STF, mas sim alguma das quatro hipóteses do inciso III do art. 102 da Constituição Federal!
Pode o presidente do tribunal inferior denegar seguimento a recurso extraordinário que não apresentar repercussão geral, por força disposto do inciso II do art. 541 e § 1º do art. 542 do CPC?[11]
O § 2º do 543-A do CPC é expresso no sentido de que a demonstração da existência de repercussão geral é “para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal”. Assim, está muito claro que o Presidente do tribunal inferior não poderá denegar seguimento a recurso extraordinário sob fundamento de que o recurso extraordinário não oferece repercussão geral.
Porém, no que se refere à inexistência da demonstração formal da repercussão geral (requisito extrínseco do recurso), é provável que a jurisprudência do STF admita que o presidente do tribunal inferior, em razão da competência prevista no § 1º do art. 542 do CPC, possa negar seguimento ao recurso extraordinário, com fundamento no descumprimento de apresentação formal do recurso exigida pelo inciso II do art. 541 e § 2º do art. 543-A do CPC (ausência de cumprimento do requisito extrínseco)..
Além disso, o foi conferido expressamente ao tribunal inferior o poder de, na hipótese de verificar a existência multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, escolher os mais representativos e sobrestar o processamento dos demais (art. 543-B, § 1º). Trata-se dos chamados “processos repetidos”, nos quais verifica-se a existência dos “conflitos em massa”, para os quais são inúmeros processos versando sobre questão idêntica ou muito similar. A lei não estabeleceu qualquer regra ou baliza para a escolha dos recursos que serão considerados “mais representativos”, razão pela qual a decisão ficará a critério do tribunal inferior. A lei também não estabeleceu qualquer possibilidade de recurso contra o mérito dessa escolha.
Cabe interposição de agravo de instrumento contra a decisão que determinou sobrestamento de recurso extraordinário que não tem “fundamento” na mencionada “idêntica controvérsia” ou que suscitou alguma outra questão?
O art. 544 do CPC prevê a possibilidade de agravo de instrumento para o STF referente a recurso extraordinário a decisão do presidente do tribunal que “não admitido”. Interpretação sistemática desse dispositivo em face da redação do § 2º do art. 543-B[12] dá a entender que por “não admitido” devemos entender apenas “denegado” e não “sobrestado”. Assim, a primeira vista, não caberia o agravo previsto no art. 544 do CPC.
Contudo, há manifestação na doutrina no sentido de que caberia inicialmente simples requerimento (petição) para o presidente do tribunal inferior solicitando a imediata realização do juízo de admissibilidade e, caso mantido o sobrestamento, caberia agravo de instrumento.[13]
Vamos aguardar como a jurisprudência do STF irá apreciar essa questão.
Chegando ao STF e sendo distribuído, o Relator poderá, de acordo com o § 1º do art. 21 do RISTF, em redação dada pela ER nº 21/2007, amparado no disposto no § 4º do art. 543-B do CPC, cassar ou reformar, liminarmente, acórdão contrário à orientação firmada pelo STF em julgamento de questão que, tendo sido objeto de múltiplos recursos, foi decidida em “recursos representativos da controvérsia” (§ 1º do art. 543-B).
De acordo com a regra geral do art. 323 do RISTF, o Relator submeterá aos demais ministros, por meio eletrônico, cópia da sua manifestação sobre a existência de repercussão geral. Ao que parece, por “demais ministros” devemos entender que são todos os ministros do STF e não apenas da Turma.
Porém, esse procedimento, de acordo com o mencionado dispositivo, não será adotado se ocorrer alguma das seguintes hipóteses:
· o fundamento do recurso extraordinário já foi apreciado pelo procedimento do art. 543-B do CPC e o Relator decidiu cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.(§ 4º do art. 543-B do CPC e § 1º do art. 21 do RISTF);
· a repercussão geral da questão levantada no recurso já foi apreciada pelo Tribunal e o relator poderá decidir monocraticamente, de acordo com essa orientação, pela existência (art. 323, § 1º, do RISTF) ou pela inexistência (art. 326 do RISTF) da repercussão geral;
· o recurso extraordinário foi interposto contra acórdão contrário a súmula ou jurisprudência do dominante (art. 323, § 1º, do RISTF), devendo o Relator, por força do § 3º do art. 543-A do CPC, julgar o recurso monocraticamente ou pedir sua inclusão em pauta (art. 325 do RISTF);
· o recurso extraordinário foi inadmitido pelo Relator por qualquer outra razão. Exemplos: recurso intempestivo, recurso contra decisão em conformidade com a jurisprudência do STF (§ 1º do art. 21 do RISTF), recurso deserto etc.
Com o recebimento da manifestação do Relator, de acordo com o art. 324 do RISTF, os demais ministros terão prazo comum de vinte dias para encaminhar manifestação a respeito da repercussão geral. Decorrido o prazo sem manifestações suficientes para recusa do recurso – diz o parágrafo único do art. 324 do SISTF – será considerada existente a repercussão geral.
Quantas manifestações são necessárias para a recusa da repercussão geral?
De acordo com o § 3º do art. 102 da Constituição Federal, o STF somente poderá recusar o conhecimento do recurso extraordinário por ausência de repercussão geral pela manifestação de dois terços dos seus membros. Portanto, são necessárias manifestações de oito ministros para a recusa da repercussão geral.
Por essa razão o § 4º do art. 543-A do CPC dispõe que se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por um mínimo de quatro votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário: ainda que todos os demais sete ministros votem pela inexistência da repercussão geral, não terá sido atingido o número necessário de oito ministros para a recusa do conhecimento do recurso por ausência de repercussão geral.
Caso negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, de acordo com o § 5º do art. 543-A do CPC. Por isso o art. 326 do RISTF alude à decisão de inexistência de repercussão geral que valerá para “todos os recursos sobre questão idêntica”.
A possibilidade dessa decisão monocrática não se restringe aos processos aos quais foi aplicado o art. 543-B do CPC, que trata do procedimento dos “recursos com fundamento em idêntica controvérsia”, mais conhecidos como “processos repetidos”, pois o disposto no § 5º do art. 543-A do CPC não se restringe a esses processos.
Assim, nos termos do § 5º do art. 543-A do CPC, não haverá necessidade de manifestações dos demais ministros e o Relator deverá julgar monocraticamente pelo não conhecimento do recurso extraordinário por ausência de repercussão geral.
Cabe recurso contra a decisão que concluir ou indeferir liminarmente o recurso extraordinário por ausência de repercussão geral?
Se a decisão for do Pleno, é evidente que não há possibilidade de recurso, salvo embargos de declaração (art. 337, § 2º, do RISTF), exatamente porque não cabe qualquer outro recurso contra qualquer decisão tomada pelo órgão de cúpula do Judiciário nacional em sua composição plena.
No caso de uma decisão monocrática, parece ser aplicável o art. 326 do RISTF, em redação dada pela ER nº 21/2007, de teor seguinte: “Toda decisão de inexistência de repercussão geral é irrecorrível”.
Essa conclusão já havia sido prevista pela doutrina antes mesmo da edição das mencionadas normas infraconstitucionais, no sentido de que o STF não teria sequer de demonstrar “detalhadamente” porque o recurso não ofereceria repercussão geral, inclusive em razão de “não caber qualquer tipo de controle sobre tal deliberação”.[14]
Há até quem sustente que a avaliação da existência de repercussão geral teria um “caráter político”, assim como “não é ato de julgamento, por isso que a deliberação não tem caráter jurisdicional”.[15] Na verdade, qualquer decisão judicial tem um caráter político, de “política jurídica”: quando o juiz opta por determinada interpretação de uma norma legal, está fazendo uma escolha política.
Não há previsão para que o órgão fracionário (Turma) do STF decida pela inexistência da repercussão geral: o § 4º do art. 543-A do CPC diz que se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário. Isso nos dá a entender que a Turma jamais decidirá pela inexistência de repercussão geral: ou a questão da inexistência de repercussão geral já foi apreciada anteriormente e é caso de decisão monocrática do Relator (art. 326 do RISTF) ou a questão não foi apreciada e deverá ser adotado o procedimento do art. 323 do RISTF acima descrito.
No caso, porém, de acórdão que concluir pela existência de repercussão geral e, no mérito, der provimento ao recurso extraordinário, poderá a parte recorrida interpor embargos de divergência também quanto à questão da repercussão geral, caso exista decisão do Pleno que, em caso análogo, tenha concluído pela inexistência de repercussão geral, por interpretação do art. 330 do RISTF.
[1] MARTINS, Samir José Caetano. “A repercussão geral da questão constitucional (Lei nº 11.418/2006)” in Revista Dialética de Direito Processual nº 50, maio de 2007, p. 100.
[2] MARIONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 33.
[3] MARIONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 37.
[4] MARTINS, Samir José Caetano. “A repercussão geral da questão constitucional (Lei nº 11.418/2006)” in Revista Dialética de Direito Processual nº 50, maio de 2007, p. 101.
[5] ALVIM, Arruda. “A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral” in Reforma do judiciário: primeiras reflexões sobre a emenda constitucional n. 45/2004. Teresa Arruda Alvim et al (coord.) São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 74.
[6] SILVA, Ovídio A. Baptista da. Sentença e coisa julgada: ensaios e pareceres. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 297.
[7] DIÁRIO DO SENADO FEDERAL, 15 de fevereiro de 2006, p. 04773.
[8]ABBUD, André de Albuquerque Cavalcanti. “O anteprojeto de lei sobre a repercussão geral dos recursos extraordinários” in Revista de Processo nº 129, ano 30, novembro de 2005, p. 108.
MARTINS, Samir José Caetano. “A repercussão geral da questão constitucional (Lei nº 11.418/2006)” in Revista Dialética de Direito Processual nº 50, maio de 2007, p. 102.
[9] MARIONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 32 e 33.
[10] MARTINS, Samir José Caetano. “A repercussão geral da questão constitucional (Lei nº 11.418/2006)” in Revista Dialética de Direito Processual nº 50, maio de 2007, p. 102.
[11] “Art. 541. O recurso extraordinário e o recurso especial, nos casos previstos na Constituição Federal, serão interpostos perante o presidente ou o vice-presidente do tribunal recorrido, em petições distintas, que conterão: (...) Il - a demonstração do cabimento do recurso interposto; (...)”
“Art. 542. Recebida a petição pela secretaria do tribunal, será intimado o recorrido, abrindo-se-lhe vista, para apresentar contra-razões. (...) § 1o Findo esse prazo, serão os autos conclusos para admissão ou não do recurso, no prazo de 15 (quinze) dias, em decisão fundamentada. (...)”
[12] “Art. 543-B (...) § 2o Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.”
[13] MARIONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 60 e 61.
[14] COSTA, Flávio Dino de Castro et al. A reforma do judiciário: comentários à emenda n. 45/2004. Niterói, RJ: Impetus, 2005, p. 76.
[15] ALVIM, Arruda. “A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral” in Reforma do judiciário: primeiras reflexões sobre a emenda constitucional n. 45/2004. Teresa Arruda Alvim et al (coord.) São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 64.
Advogado em Brasília e Consultor Legislativo do Senado Federal. Autor dos livros "Compra de Imóveis" (Ed. Atlas), "Prequestionamento, Recurso Especial e Recurso Extraordinário" (Ed. Forense) e "Direito de Empresa (Ed. Atlas). Site: www.brunosilva.adv.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Bruno Mattos e. O STF e a repercussão geral no Recurso Extraordinário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 set 2008, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/14943/o-stf-e-a-repercussao-geral-no-recurso-extraordinario. Acesso em: 23 nov 2024.
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