1 INTRODUÇÃO
De acordo com César Roberto Bitencourt[1], para a ciência do Direito Penal, a afirmação de que a pena se justifica por sua necessidade é quase unânime. Ela consiste, para Muñoz Conde[2], num recurso utilizado pelo Estado para coibir condutas lesivas, tornando possível a convivência em sociedade.
Segundo Júlio Fabbrini Mirabete[3], “perde-se no tempo a origem das penas, pois os mais antigos grupamentos foram levados a adotar certas normas disciplinadoras, de modo a possibilitar a convivência social”. No entanto, enfatiza que, nas antigas civilizações, predominava a idéia de castigo, de modo que a sanção mais freqüentemente aplicada era a de morte, e a repressão alcançava o patrimônio do infrator, bem como seus descendentes, não havendo, então, a vigência do princípio da pessoalidade das penas, que impede a penalização de outras pessoas além do delinqüente.
De acordo com Mirabete[4], mesmo na Grécia Antiga e no Império Romano, havia predominância das penas capitais e das sanções aflitivas, que, dentre outros suplícios, incluía os açoites e as mutilações. Porém, assevera que, mesmo nesse cenário de insensibilidade humana, Sêneca já apregoava “a idéia de que se deveria atribuir à pena finalidades superiores, como a defesa do Estado, a prevenção geral e a correção do delinqüente” e “na Grécia Clássica, entre os sofistas, como Protágoras, surgiu uma concepção pedagógica da pena”.
Conforme Mirabete[5], a despeito desses posicionamentos isolados, a repressão penal, por vários séculos, foi exercida primordialmente por meio da pena capital, que era, no mais das vezes, executada de forma cruel. E as penas que preservavam o apenado vivo eram demasiadamente cruéis e infamantes.
De acordo com Maurício Antônio Ribeiro Lopes[6], foi somente no Iluminismo, período em que o Direito Penal se corporificou como ciência autônoma, que começaram a surgir preocupações efetivas sobre a função das punições, bem como sobre a legitimidade das penas. Segundo o autor, o cerne dessas preocupações era o estabelecimento de um novo racionalismo acerca da Justiça, fundado num modelo jusnaturalista de Estado e de Direito, no âmbito do qual se estabeleceu o princípio da legalidade como garantia e, na mesma esteira, a discussão acerca da função das sanções penais.
Desde então, afirma Heleno Cláudio Fragoso[7], a doutrina tem buscado explicar o fundamento das sanções penais por meio de teorias absolutas, relativas e unitárias, as quais gravitam em torno de duas idéias fundamentais: a prevenção e a retribuição.
2 OS FINS DA PENA NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO
No sistema jurídico-penal brasileiro, segundo Luiz Flávio Gomes[8], nunca, até 1984, houve um posicionamento legislativo explícito sobre as finalidades a serem alcançadas pela pena. A despeito dessa ausência de posicionamento legislativo:
No âmbito dogmático (teórico), com certa tradição, (quase) sempre nossos doutrinadores mantiveram-se filiados às teorias ecléticas (ou mistas ou de união ou unitárias), que unificam as idéias de retribuição (ao mal do crime o mal da pena) e prevenção, tanto geral (ameaça a todos para que não venham a delinqüir) como especial (evitar que o criminoso volte a delinqüir).[9]
Para Gomes[10], esse posicionamento doutrinário exerceu influência no Código Penal brasileiro vigente, que, com a reforma penal de 1984, adotou expressamente a teoria mista sobre os fins da pena, afirmando, assim, um duplo sentido para a pena: retribuição e prevenção. O artigo 59 do Código Penal explicita os fins a serem perseguidos pela pena, nos seguintes termos: "o juiz, atendendo à culpabilidade [...], estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime [....]".
Uma vez que a própria legislação afirma a existência de finalidades a serem alcançadas com a aplicação da pena, é importante traçar um panorama geral acerca das teorias sobre os fins da pena, o que possibilitará uma melhor apreensão do objetivo precípuo do trabalho de individualização das sanções penais, que é alcançar a reprovação e a prevenção da conduta.
3 TEORIAS ABSOLUTAS
De acordo com Mirabete[11], as teorias absolutas ou retribucionistas ”têm como fundamento da sanção penal a exigência da justiça: pune-se o agente porque cometeu o crime (punitur quia peccatum est)”. Segundo essa teoria, afirma João Mestieri[12], “não se persegue com a pena nenhum fim para além da justa e proporcionada retribuição; a recuperação do delinqüente não é vista como sendo tarefa do Direito Penal, embora seja efeito desejável”.
Para uma melhor compreensão da pena em sentido absoluto ou retributivo, é preciso levar em conta o modelo de Estado que lhe deu vida. A pena como retribuição deita suas raízes no Estado absolutista, que entre suas características mais significativas apresentava a identidade entre soberano e Estado, entre Direito e moral e entre Estado e religião. [13]
Afirmava-se metafisicamente que o poder do soberano lhe era concedido diretamente por Deus. Assim, em vista do seu fundamento religioso, a idéia que se tinha de pena era a de um castigo com o qual se expiava o mal cometido. Isso porque, de certo modo, “no regime do Estado absolutista, impunha-se uma pena a quem, agindo contra o soberano, rebelava-se também, em sentido mais que figurado, contra o próprio Deus”.[14]
Com o surgimento do Estado burguês, fundado no contratualismo, o Estado passou a ser uma expressão soberana do povo, e a pena passou a ser concebida como retribuição a uma perturbação da ordem jurídica adotada pelos homens de forma consensual e consagrada pelas leis.[15]
Kant e Hegel estão entre os mais expressivos defensores das teorias retribucionistas da pena. No entanto, “é notória uma particular diferença entre uma e outra formulação: enquanto em Kant a fundamentação é a ordem ética, em Hegel, é a ordem jurídica”.[16]
Kant[17] defendia que “a pena era um imperativo categórico, conseqüência natural do delito, uma retribuição jurídica”, pois ao mal do crime impõe-se o mal da pena, do que resulta a igualdade como elemento efetivador da justiça. Para Kant[18], o castigo, além de compensar o mal, permitia a reparação moral. Assim, o castigo era imposto por exigência ética, não havendo, portanto, conotação ideológica nas sanções penais. A pena, sob a ótica da metafísica kantiana, era entendida como um fim em si mesma, visando tão somente a recompensar o mal com o mal.
Conforme Zaffaroni et alli[19], as teorias absolutas, cujo fundamento se encontra em Kant, tendem a retribuir para assegurar a eticidade, quando uma ação a contradiga de modo objetivo, impondo ao agente um sofrimento equivalente ao injusto praticado.
A tese de Hegel, por sua vez, resume-se na máxima de que “a pena é a negação da negação do Direito”[20] e, ao negar o delito, conseqüentemente, promove a afirmação do Direito[21]. Para Hegel, a pena encontra seu fundamento na “necessidade de restabelecimento da ‘vontade geral’, simbolizada na ordem jurídica e que foi negada pelo delinqüente”, o que lhe dá um caráter mais jurídico do que em Kant, que não atribui à pena qualquer finalidade, na medida em que a entende como um fim em si mesma.[22]
Para os partidários das teorias absolutas da pena, segundo José Cerezo Mir[23], qualquer tentativa de atribuição de fins utilitários à pena, tais como os preventivos, caracteriza afronta à dignidade humana do delinqüente, que estaria sendo utilizado como instrumento para a consecução de fins sociais. Para Kant[24], isso seria misturar o homem com o direito das coisas.
De acordo com Eugênio Raul Zaffaroni et alli[25], as teorias retribucionistas da pena “legitimam o confisco do conflito: tratam de racionalizar a exclusão da vítima do modelo punitivo. Por isso pretendem defender [...] um ente que não tem nunca qualquer correspondência com os direitos da vítima, mas que pertence à sociedade concebida de maneira organicista [...] ou contratualista, dependendo da amplitude do poder punitivo legitimado e conforme debilite mais ou menos o estado de direito”.
Diversos doutrinadores criticam as teorias absolutas ou retributivas. Para Claus Roxin[26], a retribuição tem seu fundamento no impulso de vingança, que originou historicamente a pena, de modo que não se pode considerar que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da vingança. Assim, entende contestável que o Estado, por meio da retribuição, promova a expiação do delinqüente a fim de compensar o mal cometido. Isso porque a idéia de uma retribuição compensadora só pode ser plausível mediante um ato de fé, já que, racionalmente, não se compreende como se pode pagar um mal cometido acrescentando-lhe um segundo mal, que é a pena.
Juarez Cirino dos Santos[27], com fundamento na doutrina de Peter-Alexis Albrecht, afirma que a crítica ao discurso retributivo indica que “a retribuição (expiação ou compensação) da culpabilidade é o fundamento metafísico da punição: retribuir um mal com outro mal pode corresponder a uma crença – e, assim, constituir um ato de fé –, mas não é um argumento democrático, nem científico”. Não é argumento democrático, “porque no Estado Democrático de Direito o poder é exercido em nome do povo – e não em nome de Deus – e o direito penal tem por objetivo a proteção de bens jurídicos – e não realizar vinganças”. Também “não é argumento científico porque a culpabilidade retribuída (compensada ou expiada) se fundamenta numa hipótese indemonstrável: a liberdade de vontade do ser humano”[28]. Ressalta, nesse sentido, que “o pressuposto da liberdade de vontade foi banido de todas as ciências”, sobrevivendo apenas nas teorias jurídicas que pretendem definir o fundamento material da culpabilidade[29].
A despeito da pertinência das críticas apontadas, a teoria apresenta um conteúdo talional[30], o que, de certa forma, imprime-lhe um caráter de justiça (no sentido tomista de dar a cada um aquilo que lhe é devido), já que há uma idéia de proporcionalidade entre a pena e o mal cometido. Essa equivalência representa um avanço em relação ao modelo de sanção penal que figurava nas antigas civilizações que se pautavam em sanções capitais e aflitivas desproporcionais em relação ao mal cometido.
4 TEORIAS RELATIVAS
De acordo com Fragoso[31], as teorias relativas partem de uma concepção utilitária da pena, justificando-a por seus efeitos preventivos. A pena, sob essa ótica, não visa a retribuir o mal cometido e sim, de algum modo, evitar sua prática. Para os defensores das teorias relativas, a pena é entendida como um mal necessário.
A função preventiva da pena, a partir de Feuerbach, divide-se em duas funções bem delimitadas: a de prevenção geral e a de prevenção especial[32], sobre as quais se discorrerá a seguir.
4.1 Teoria da prevenção geral
As teorias de prevenção geral, segundo Bitencourt[33], tiveram seu desenvolvimento no Iluminismo, na passagem do Estado Absolutista para o Liberal, e não objetivavam apenas retribuir o fato delitivo cometido, mas prevenir a sua prática por meio da intimidação de todos os membros da comunidade jurídica, pela ameaça da pena. Essa teoria reconhece, “por um lado, a capacidade racional absolutamente livre do homem – que é uma ficção como o livre-arbítrio –, e, por outro, um Estado absolutamente racional em seus objetivos, que também é uma ficção”.[34]
Bitencourt[35] destaca entre os defensores da teoria da prevenção geral autores como Beccaria, Bentham, Feuerbach, Filangieri e Schopenhauer. Dentre eles, tem especial relevo Feuerbach, que formulou a “teoria da coação psicológica”, considerada, em seu tempo, a mais inteligente fundamentação do direito punitivo. Feuerbach[36] sustentava que, por meio do Direito Penal, poder-se-ia dar uma solução ao problema da criminalidade, pois a ameaça da aplicação da pena funcionaria como ferramenta destinada a evitar o cometimento de crimes, em função do temor da pena, entendido como coação psicológica cuja pretensão seria evitar o fenômeno delitivo.
Conforme Bitencourt[37], é possível sustentar que a prevenção geral se fundamenta sobre duas bases: a intimidação, ou seja, o uso do medo de ser punido como forma de evitar o cometimento de crimes, e a ponderação da racionalidade humana. Parte-se do pressuposto antropológico de “um indivíduo que a todo momento pode comparar, calculadamente, vantagens e desvantagens da realização do delito e da imposição da pena”.
Na mesma linha, Zaffaroni et alli[38], que subdividem a prevenção geral em positiva e negativa, sustentam que a prevenção geral negativa “pretende obter com a pena a dissuasão dos que não delinqüiram e possam vir a se sentir tentados a fazê-lo”. No entanto, argumentam que, “com esse discurso, a criminalização assume uma função utilitária, livre de qualquer consideração ética”. Ou seja, parte-se “de uma concepção mecânico-racional do humano, como um ente que em qualquer circunstância realizaria a comparação custo-benefício”. Em suma, pressupõe-se um infrator racional “que maximiza o benefício esperado de sua conduta por sobre o custo”.
No que diz respeito à prevenção geral positiva, Zaffaroni et alli[39] afirmam que a mesma possui como discurso legitimador o efeito positivo que a criminalização exerceria sobre os não-criminalizados, não, contudo, “para dissuadi-los pela intimidação, e sim como valor simbólico produtor do consenso, e, portanto, reforçador de sua confiança no sistema social em geral (e no sistema penal em particular)”. Sob esse prisma, “o delito seria uma má propaganda para o sistema, e a pena seria a expressão através da qual o sistema faria uma publicidade neutralizante”.
Segundo essa teoria, “uma pessoa seria criminalizada porque com isso a opinião pública seria normatizada ou renormatizada” em função do consenso que sustenta o sistema social. No entanto, argumentam que, “como os crimes de colarinho-branco não alteram o consenso enquanto não forem percebidos como conflitos delituosos, sua criminalização não teria sentido”. Ou seja, “na prática, tratar-se-ia de uma ilusão que se mantém porque a opinião pública a sustenta, e convém continuar sustentando-a e reforçando-a porque com ela o sistema penal se mantém”. Em suma, “o poder a alimenta para ser por ela alimentado”.[40]
Segundo a tese de Baratta, apontada por Santos[41], a prevenção geral possui uma “função positiva de estabilização social normativa”, que “surge em conjunto com o direito penal simbólico, representado pela criminalidade econômica, ecológica etc., em que o Estado não parece interessado em soluções sociais reais, mas em soluções penais simbólicas, que protegeriam complexos funcionais (a economia, a ecologia etc.) – e não bens jurídicos individuais”.
Santos[42] acrescenta que o direito penal simbólico não tem função instrumental, ou seja, não existe para ser efetivo. Sua “função é meramente política e se exerce por meio da criação de imagens ou de símbolos que atuam na psicologia do povo, produzindo determinados efeitos úteis”.
Argumenta ainda que “o conceito de integração-prevenção, introduzido pelo direito penal simbólico na moderna teoria da pena, cumpriria o papel complementar de escamotear a relação da criminalidade com as estruturas sociais desiguais das sociedades modernas, instituídas pelo direito e, em última instância, garantidas pelo poder político do Estado”[43].
Winfried Hassemer[44], por sua vez, “observa que a idéia de prevenção desprendeu-se de seu sabor terapêutico, social ou individual” para se estruturar como um instrumento de intervenção na luta contra a criminalidade. Sob essa ótica, “o delinqüente tende a converter-se num inimigo, e o direito Penal, em um direito Penal para inimigos”.
Claus Roxin[45] também tece críticas acerca da prevenção geral, afirmando que a teoria faz com que se castigue um indivíduo não em consideração a ele próprio, mas em consideração a outros. Para ele, mesmo que a intimidação seja eficaz, é difícil aceitar como justo que se imponha um mal a alguém para que outros não pratiquem o mal.
Na mesma esteira, Gomes[46], afirma que “de modo algum, pode o autor de um crime ser tomado como ‘bode expiatório’, como ‘paradigma’ (‘exemplo’) para a sociedade, como meio para se alcançar a finalidade de prevenção geral”.
Nesse sentido, Wolfgang Naukce[47], invocando Feuerbach, explica que a pena deve ter uma finalidade; entretanto, essa finalidade não pode contradizer a exigência de um tratamento fundado na dignidade da pessoa humana. Para que fosse possível a efetivação dessa condição, seria necessário que a prevenção geral estivesse adstrita ao âmbito da ameaça da pena, entendida como meio de intimidação do fenômeno delitivo, pois a mera intimidação não lesiona direito algum, nem converte ninguém em objeto. Contudo, se houvesse o efetivo cometimento de um delito, o castigo real a ser imputado deveria pautar-se somente na legalidade, livre de qualquer fim.
Roxin[48] critica também o fato de que permanece uma lacuna referente aos comportamentos que o Estado possui a faculdade de coibir e em que medida. Ressalta ainda que, como não é delimitável a duração do tratamento terapêutico-social, pode ocorrer que a medida sancionatória ultrapasse os limites plausíveis numa ordem jurídico-liberal, justamente porque a prevenção geral possui, via de regra, uma tendência a promover o terror estatal. Ou seja, “quem pretender intimidar mediante a pena tenderá a reforçar esse efeito, castigando tão duramente quanto possível”.
Roxin[49] observa ainda que, em muitos grupos de crimes e de delinqüentes, até então, não se conseguiu provar o efeito de prevenção geral a ser alcançado pelas penas. Ademais, os pressupostos dessa teoria não conseguem fundamentar o poder punitivo do Estado, nem limitar suas conseqüências.
4.2 Teoria da prevenção especial
A teoria da prevenção especial, segundo Bitencourt[50], busca coibir a prática delitiva, mas de modo diferente da prevenção geral, dirigindo-se ao delinqüente, com o intuito de que ele não mais cometa crimes.
Conforme Jescheck[51], “várias correntes defendem uma postura preventivo-especial da pena. Na França, pode-se destacar a teoria da Nova Defesa Social, de Marc Ancel; na Alemanha, a prevenção especial é conhecida desde os tempos de Von Liszt, e, na Espanha, foi a Escola Correcionalista, de inspiração Krausista, a postulante da prevenção especial”.
De acordo com Mir Puig[52], “independentemente do interesse que possa despertar cada uma dessas correntes, foi o pensamento de Von Liszt que deu origem, na atualidade, a comentários de alguns penalistas sobre um ‘retorno a Von Liszt’”, para o qual “a aplicação da pena obedece uma idéia de ressocialização e reeducação do delinqüente, à intimidação daqueles que não necessitam resocializar-se e também para neutralizar os incorrigíveis. Essa tese pode ser sintetizada em três palavras: intimidação, correção e inocuização”.
Roxin[53] também tece considerações acerca da teoria da prevenção especial. Segundo ele, a teoria apresenta a possibilidade de que crimes graves não sejam punidos, caso não haja a possibilidade de reincidência do delinqüente. Nesse sentido, faz remissão aos assassinos dos campos de concentração, alguns dos quais mataram inúmeras pessoas inocentes. Muitos deles, no entanto, passaram a viver discreta e socialmente integrados, não necessitando, portanto, de ressocialização alguma e sem que existisse qualquer perigo de reincidência ante o qual devessem ser intimidados. O autor questiona se os mesmos deveriam, por esse motivo, permanecer impunes. Assim, é notório que a referida teoria não é capaz de fornecer a adequada fundamentação da necessidade da pena em tais situações.
Em resumo, Roxin[54] entende que a teoria da prevenção especial não pode se prestar a fundamentar o Direito Penal, pois “não pode delimitar seus pressupostos e conseqüências”, já que “não explica a punibilidade dos crimes sem perigo de repetição” e, por fim, porque “a idéia de adaptação social coactiva, mediante a pena, não se legitima por si própria, necessitando de uma legitimação jurídica que se baseia em outros tipos de considerações”.
Prado[55], além de questionar a aplicabilidade dessa teoria, nas hipóteses de delinqüentes ocasionais, ressalta que, se a hipótese fosse a do cometimento de um delito de pouca gravidade por um sujeito considerado perigoso, recair-se-ía fatalmente na aplicação de uma pena desproporcional ao mal cometido, o que também macula a adoção exclusiva da tese da prevenção especial.
Do ponto de vista político-criminal, entretanto, segundo Bitencourt[56], a prevenção especial encontra sua justificativa, uma vez que sua proposta é evitar a reincidência do delinqüente no crime. E é justamente nisso que consiste a função preventivo-especial e, de certo modo, a do Direito Penal em seu conjunto. Isso porque, ao mesmo tempo em que, com a execução da pena, cumprem-se os objetivos de prevenção geral, ou seja, de intimidação, com a pena privativa de liberdade busca-se promover a ressocialização do delinqüente.
Zaffaroni et alli[57], contudo, fazem duras críticas à teoria da prevenção especial, afirmando que “hoje, através das ciências sociais, está comprovado que a criminalização secundária, entendida como a efetiva atuação repressivo-punitiva das agências estatais, deteriora o criminalizado e ainda mais o prisonizado”.
Afirmam ainda, nesse sentido, que a prisão tem efeitos deteriorantes e irreversíveis, a longo prazo, sendo desse modo insustentável a pretensão de “melhorar mediante um poder que impõe a assunção de papéis conflitivos e que os fixa através de uma instituição deteriorante”[58], qual seja, a prisão.
Ademais, sustentam que ideologias como a reeducação, a repersonalização e a reintegração encontram-se absolutamente deslegitimadas “frente aos dados da ciência social, que utilizam como argumento em seu favor a necessidade de serem sustentadas apenas para que não se recaia num retribucionismo irracional”[59].
Nessa esteira, Santos[60] argumenta que:
O discurso da prevenção especial como correção do criminoso pressupõe a capacidade da psicologia, da sociologia, da assistência social etc., de transformar a personalidade do preso mediante trabalhos técnico-corretivos realizados no interior da prisão, segundo previsão legal: a pena deve ser aplicada conforme necessário e suficiente para prevenir o crime (CP, art. 59) e deve ser executada para permitir harmônica integração social do condenado (LEP, art. 1º).
No entanto, fazendo alusão a Michel Foucault, assevera que, “a crítica ao discurso da prevenção especial destaca o fracasso histórico do projeto técnico-corretivo da prisão, caracterizado pelo chamado isomorfismo reformista, de reconhecimento continuado do fracasso da prisão e de reproposição reiterada do mesmo projeto fracassado”. Os argumentos que demonstram o fracasso da prevenção especial dizem respeito tanto à execução, quanto à aplicação da pena.
Em relação à execução da pena, invocando Baratta, Santos[61] afirma que a prisão produz no condenado um duplo processo de transformação pessoal caracterizado, por um lado “pela de desculturação progressiva, consistente no desaprendizado dos valores e normas próprios da convivência social” e, por outro, pelo “aprendizado forçado dos valores e normas próprios da vida na prisão: os valores e normas da violência e da corrupção”. Quanto a aplicação da pena, aponta a existência de grave tensão entre a aparência do devido processo legal e a realidade do exercício seletivo do poder de punir.
5 TEORIAS MISTAS OU UNIFICADORAS DA PENA
As teorias mistas ou unificadoras, adotadas pelo sistema jurídico penal brasileiro, conforme Bitencourt[62], objetivam agrupar em um único conceito todos os fins da pena. Mir Puig[63] defende que a retribuição, a prevenção geral e a prevenção especial são distintos aspectos de um mesmo fenômeno que é a pena.
Tais teorias, argumenta Puig[64], atribuem ao Direito Penal a função de protetor da sociedade, e sob tal égide surgem duas linhas doutrinárias: uma cuja posição é conservadora e se apóia no Projeto do Código Penal Alemão de 1962 e cujas bases são a proteção da sociedade gerada por uma retribuição justa, e outra que ocupa uma posição progressista, na medida em que se funda no Projeto Alternativo Alemão de 1966 e cujo fundamento é a proteção de bens-jurídicos. Para a segunda corrente, a retribuição consiste apenas no estabelecimento do limite máximo de exigências de prevenção. A pena não deve, pois, exceder o merecido pelo ato praticado.
Nesse sentido, Bitencourt[65] afirma que “as teorias unificadoras aceitam a retribuição e o princípio da culpabilidade como critérios limitadores da intervenção da pena como sanção jurídico-penal. A pena não pode, pois, ir além da responsabilidade decorrente do fato praticado”.
Ainda conforme Bitencourt[66], as teorias unificadoras têm como princípio a crítica às soluções monistas, ou seja, às teses sustentadas pelas teorias absolutas ou relativas da pena, consideradas unidimensionais e portanto incapazes de abranger a complexidade dos fenômenos sociais que interessam ao Direito Penal.
Bitencourt[67] ainda assevera que, inicialmente, as “teorias unificadoras limitaram-se a justapor os fins preventivos, especiais e gerais, da pena, reproduzindo, assim, as insuficiências das concepções monistas da pena”; posteriormente, entretanto, passaram a procurar outras construções capazes de unificar os fins preventivos gerais e especiais, a partir dos diferentes estágios da norma, quais sejam, cominação, aplicação e execução, constituindo, assim, uma nova tese preventiva.
Para Roxin[68], a simples adição dessas três concepções distintas é fadada ao fracasso, na medida em que destrói a lógica imanente à concepção original de cada uma delas, aumentando o âmbito de aplicação da pena, que se converte em meio de reação apto a qualquer emprego. Afirma ainda que os efeitos de cada teoria não se suprimem entre si, mas, ao contrário, multiplicam-se. Para ele, isso sequer é aceitável teoricamente.
Muños Conde[69] argumenta que retribuição e prevenção são dois pólos que não podem subordinar-se um ao outro, sem coordenar-se mutuamente. Nesse sentido, entende que as teorias unificadoras têm o mérito de terem superado a excessiva parcialidade presente tanto nas teorias retributivas quanto nas preventivas, que, isoladamente, não conseguem dar conta de compreender o fenômeno da pena em sua totalidade, já que focam sua atenção em partes distintas do mesmo.
Afirma, entretanto, que, qualquer teoria que pretenda compreender o fenômeno penal na sua amplitude deve enfrentá-lo a partir de um ponto de vista totalizador, para então decompô-lo, distinguindo seus diferentes aspectos. É nesse ponto que as teorias unificadoras fracassam, pois, para elas, o fundamental continua sendo a própria retribuição, a partir da qual, secundariamente, se buscam outros fins.
[1] BITENCOURT. Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral, v. 1. 7. ed. rev. e atual. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 65.
[2] Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 65.
[3] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 17. ed. São Paulo : Atlas, 2001, p. 243.
[4] MIRABETE. Manual de Direito Penal..., p. 245.
[5] MIRABETE. Manual de Direito Penal..., p. 244.
[6] LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Alternativas para o Direito Penal e o princípio da intervenção mínima. In: Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 87, n. 757, p. 402-411, nov. de 1998.
[7] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. ed. rev. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro : Forense, 2004, p. 343.
[8] GOMES, Luiz Flávio. Funções da pena no Direito Penal brasileiro. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1037, 4 maio 2006. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2007.
[9] GOMES. Funções da pena no Direito Penal brasileiro...
[10] GOMES. Funções da pena no Direito Penal brasileiro...
[11] MIRABETE. Manual de Direito Penal..., p. 244.
[12] MESTIERI, João. Manual de Direito Penal: parte geral. v. 1. Rio de Janeiro : Forense, 2002, p. 260.
[13] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 69.
[14] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 69.
[15] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 67.
[16] Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 69.
[17] Apud MIRABETE. Manual de Direito Penal..., p. 244.
[18] Apud MIRABETE. Manual de Direito Penal..., p. 244.
[19] ZAFFARONI et alli. Direito Penal Brasileiro..., p. 115.
[20] Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 72
[21] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal brasileiro : volume 1: parte geral : arts. 1º a 120. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002, p. 444.
[22] Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 72.
[23] Apud PRADO. Curso de Direito Penal brasileiro..., p. 444.
[24] Apud FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 345.
[25] ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. 3v. 2.ed. Rio de Janeiro : Revan, 2003, p. 114.
[26] ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. trad. Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz. 3. ed. Lisboa : Vega, 1998, p. 19.
[27] SANTOS, Juarez Cirino dos. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal.Disponível em: http://www.cirino.com.br/artigos/jcs/realidades_ilusoes_discurso_penal.pdf. Acesso em: 21/03/2007.
[28] SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal...
[29] SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal...
[30] O Talião estabeleceu penas pessoais, previamente estabelecidas e proporcionais à agressão sofrida (CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral, v.1, 3. ed., São Paulo : Saraiva, 2001, p. 275).
[31] FRAGOSO. Lições de Direito Penal..., p. 344.
[32] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 76.
[33] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 77.
[34] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 77.
[35] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 76
[36] Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 76
[37] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 76
[38] ZAFFARONI et alli. Direito Penal Brasileiro..., p. 117
[39] ZAFFARONI et alli. Direito Penal Brasileiro..., p. 121-122
[40] ZAFFARONI et alli. Direito Penal Brasileiro..., p. 121.
[41] SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal...
[42] SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal...
[43] SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal...
[44] Apud CAPEZ. Curso de Direito Penal..., p. 6.
[45] ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 24.
[46] GOMES, Luiz Flávio. Funções da pena no Direito Penal brasileiro...
[47] NAUCK, Wolfgang, HASSEMER, Winfried, LÜDERSSEN, Klaus. Principales problemas de la prevención General. Trad. Gustavo Eduardo Aboso. Montevideo - Buenos Aires : B de F, 2004, p. 25.
[48] ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 23.
[49] ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 24.
[50] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 79.
[51] Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 80.
[52] Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 80.
[53] ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 21-22.
[54] ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 22.
[55] PRADO. Curso de Direito Penal brasileiro..., p. 445.
[56] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 82.
[57] ZAFFARONI et alli. Direito Penal Brasileiro..., p. 125.
[58] ZAFFARONI et alli. Direito Penal Brasileiro..., p. 125.
[59] ZAFFARONI et alli. Direito Penal Brasileiro..., p. 125.
[60] SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal...
[61] SANTOS. Política criminal: realidades e ilusões do discurso penal...
[62] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 82.
[63] Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 82.
[64] Apud BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 82.
[65] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 83.
[66] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 83.
[67] BITENCOURT. Manual de Direito Penal..., p. 83-84.
[68] ROXIN. Problemas fundamentais..., p. 26.
[69] CONDE. Francisco Muñoz. Introducción al Derecho Penal. 2. ed. Aboso. Montevideo - Buenos Aires : B de F, 2003, p. 73.
Graduada em Direito (UP). Graduada em Comunicação Social - Jornalismo (PUCPR). Especialista em Língua Portuguesa (PUCPR). Pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia (ICPC). Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais (UMSA). Advogada do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Positivo<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARREIROS, Yvana Savedra de Andrade. Os fins a serem alcançados com a aplicação da pena Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 out 2008, 18:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/15287/os-fins-a-serem-alcancados-com-a-aplicacao-da-pena. Acesso em: 25 nov 2024.
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