De acordo com o art.5º, XL, da Carta Maior, a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu. O art.2º e seu parágrafo único, do Código Penal, reiteram que “ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”
É a consagração do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, que garante ao acusado ou, mesmo, ao condenado, a aplicação retroativa de dispositivo legal posterior à pratica do fato desde que em seu benefício.
Situação curiosa, entretanto, ocorre quando o agente perpetra o delito sob a égide de determinada lei penal que posteriormente vem a ser revogada por outra que lhe é mais benéfica em alguns aspectos e mais gravosa em outros.
Fernando Galvão, com a maestria que lhe é peculiar, assim conceitua a combinação de leis penais:
“Ocorre combinação de leis quando, diante da sucessão de leis no tempo, o julgador utiliza dispositivos de duas ou mais leis para definir situação mais benéfica ao acusado. O Código Penal não menciona a possibilidade de combinação das leis, o que equivaleria a construir uma lei distinta das demais. Não cabe ao julgado a tarefa de criar leis, e sempre houve discordância na doutrina sobre a possibilidade da combinação. Entre os clássicos, Hungria e Aníbal Bruno repudiaram a possibilidade da combinação das leis. Já Frederico Marques e Basileu Garcia defendiam a possibilidade da combinação com base no princípio da equidade.” (in Direito Penal, parte geral, 2ª edição, Editora Del Rey, 2007, p.95)
Não se pode furtar ao destaque do fato de, efetivamente, não haver previsão legal da combinação de leis, entretanto e mormente na seara do Direito Penal, é imperioso reconhecer que a interpretação dos institutos previstos no Código Penal deve permeada, mais do que em qualquer outro ramo do direito, pelos ditames da justiça, equidade e da intervenção mínima.
Ora, se nem mesmo o constituinte originário, quando concebeu a redação do art.5º, XL, da Constituição Federal, fez qualquer ressalva à combinação de leis penais mais benéficas, porquê não conferir uma máxima efetividade à referida norma constitucional e, assim, numa interpretação extensiva, admitir a combinação das leis?
Imagine-se a situação de um indivíduo que comete um delito sob o pálio de dispositivo que pune a conduta com pena de 3 a 5 anos e, posteriormente, tal diploma legal é revogado por outro que pune a mesma conduta com reprimenda de 5 a 8 anos, porém, concede determinado benefício ao agente naquelas circunstâncias.
Não se vislumbra qualquer óbice na aplicação, na hipótese, da pena prevista na lei anterior e conjunto com o benefício constante do diploma ulterior.
Alegar que, agindo desse modo, estaria o Poder Judiciário invadindo a esfera de atribuições do Poder Legislativo, na medida em que estaria aquele “criando” uma nova lei, é fazer tábula rasa do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais.
Ademais, não se trata propriamente de “criar” um novo dispositivo legal, mas, sim, de manipular os afeitos daqueles já existentes, com amparo, inclusive, no permissivo constitucional que admite a manipulação dos efeitos da lei posterior para beneficiar o réu.
Nesta esteira de intelecção, presente o mesmo pressuposto jurídico, qual seja, a efetiva possibilidade de ser o réu beneficiado, não há qualquer razão para não se aplicar a mesma razão jurídica, a modulação de efeitos dos diplomas legais revogado e revogador, afinal ubi eadem ratio, ibi eadem jus.
Não foi outro o entendimento mais recente do Supremo Tribunal Federal acerca do tema, em julgado publicado no informativo de jurisprudência n°525, no qual a segunda Turma daquela corte assim se manifestou:
“Tráfico de Drogas e Combinação de Leis Incriminadoras - 2
A Turma, em conclusão de julgamento, deferiu, por maioria, habeas corpus impetrado em favor de condenado por tráfico ilícito de entorpecentes (Lei 6.368/76, art. 12, c/c art. 29 do CP) para que se aplique, em seu benefício, a causa de diminuição trazida pela Lei 11.343/2006 - v. Informativo 523. Centrava-se a questão em apurar o alcance do princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, em face da nova Lei de Tóxicos, que introduziu causa de diminuição da pena para o delito de tráfico de entorpecentes, mas aumentou-lhe a pena mínima. Inicialmente, salientou-se a necessidade de se perquirir se seria lícita a incidência isolada da causa de diminuição de pena aos delitos cometidos sob a égide da lei anterior, tendo por base as penas então cominadas. Entendeu-se que aplicar a causa de diminuição não significa baralhar e confundir normas, uma vez que o juiz, ao assim proceder, não cria lei nova, mas apenas se movimenta dentro dos quadros legais para uma tarefa de integração perfeitamente possível. Ademais, aduziu-se que se deveria observar a finalidade e a ratio do princípio, para dar correta resposta à questão, não havendo como se repudiar a aplicação da causa de diminuição também a situações anteriores. Nesse diapasão, enfatizou-se, também, que a vedação de junção de dispositivos de leis diversas é apenas produto de interpretação da doutrina e da jurisprudência, sem apoio direto em texto constitucional. Vencida a Min. Ellen Gracie, relatora, que indeferia o writ por considerar que extrair alguns dispositivos, de forma isolada, de um diploma legal, e outro preceito de diverso diploma, implicaria alterar por completo o seu espírito normativo, gerando um conteúdo distinto do previamente estabelecido pelo legislador, e instituindo uma terceira regra relativamente à situação individual do paciente. Precedente citado: HC 68416/DF (DJU de 30.10.92).HC 95435/RS, rel. orig. Min. Ellen Gracie, rel. p/ o acórdão Min. Cezar Peluso, 21.10.2008. (HC-95435)” (sem grifos no original)
Entendeu o Excelso Pretório que a tarefa de combinação legislativa nada mais é do que um exercício de integração, perfeitamente possível em se tratando de tratamento mais benéfico ao acusado, principalmente por compreender que a vedação não encontra apoio no texto constitucional.
Ainda nas palavras de Fernando Galvão: “Ao contrário, pode-se entender que a possibilidade da combinação das leis é extraída do próprio sistema normativo. Se a finalidade da garantia constitucional que impõe retroatividade in mellius é beneficiar o autor do fato, impedir a retroatividade da parte benéfica da lei nova é impedir a aplicação do benefício pretendido pela carta constitucional. Portanto, a combinação das leis é solução acolhida pelo ordenamento jurídico, quando resultar em benefício para o autor do fato”(in obra citada p.96)
Com efeito, acreditamos que o julgado acima transcrito é verdadeiro paradigma a pautar uma nova interpretação à possibilidade de combinação de leis penais, pois, o que antes era tratado como inconstitucionalidade, deverá ceder em face do que possivelmente virá a ser reiterado pelo STF.
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