Desde a revogação do enunciado da Súmula de jurisprudência n°174 do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Resp. n°213.054-SP, em 24.10.2001, doutrina e jurisprudência vinham entendendo que a arma, para configurar a qualificadora constante do art.157, §2º, I, do Código Penal, deveria ostentar potencialidade lesiva, na medida em que, caso assim não fosse (a exemplo da arma de brinquedo), somente se prestaria para caracterizar a elementar do tipo básico do roubo (art.157, caput) – grave ameaça.
Exigida a lesividade do artefato para a efetiva existência do roubo qualificado, nos termos do art.157, §2º, I, nada mais evidente do que, na mesma linha, demandar a perícia da arma para, então, proceder a aferição do perigo concreto representado pelo indigitado tipo qualificado.
Nesta esteira de intelecção, inúmeras foram as decisões, inclusive dos tribunais superiores, no sentido de promoverem a desclassificação do tipo qualificado para o simples ante a ausência de perícia e laudo a ensejarem um juízo de certeza do potencial lesivo da arma, tudo nos moldes do que pregoa o princípio do favor rei.
Tal entendimento, inclusive, se coaduna com os escopos da responsabilidade subjetiva e com o direito penal do autor, uma vez que, punir o delinqüente pelo uso de arma que sequer seria idônea a causar qualquer tipo de gravame nada mais seria do que implementar um direito penal jungido a conjecturas e cogitações, seria, ainda, tornar de perigo abstrato um tipo penal que, por excelência, é qualificado como crime de dano, nem mesmo de perigo concreto é!
Outro não é o entendimento da doutrina mais abalizada:
“A inidonoeidade lesiva da arma (de brinquedo, descarregada ou simplesmente à mostra), que pode ser suficiente para caracterizar a ameaça tipificadora do roubo (caput), não tem o mesmo efeito para qualificá-lo, a despeito do que pretendia a equivocada Súmula 174 do STJ, em boa hora revogada, atendendo a súplica unânime da doutrina nacional. O fundamento dessa majorante reside exatamente na maior probabilidade de dano que o emprego de arma (revolver, faca, punhal etc) representa e não no temor maior sentido pela vítima. Por isso, é necessário que a arma apresente idoneidade ofensiva, qualidade inexistente em arma descarregada, defeituosa ou mesmo de brinquedo. Enfim, a potencialidade lesiva e o perigo que uma arma verdadeira apresenta não existem nos instrumentos antes referidos. Pelas mesmas razões, não admitimos a caracterização dessa majorante com o uso de arma inapta a produzir disparos, isto é, inidônea para o fim a que se destina. Em síntese, a maior probabilidade de dano propiciada pelo emprego de arma amplia o desvalor da ação, tornando-a mais grave; ao mesmo tempo, a probabilidade de maior êxito no empreendimento delituoso aumenta o desvalor do resultado, justificando-se a majoração de sua punibilidade”. (Cezar Roberto Bitencourt in Código Penal Comentado, 5ª edição, Saraiva, 2008, p. 573-574)
De mais a mais, o entendimento pela configuração do tipo de roubo qualificado por emprego de arma apenas quando esta se mostrar apta a produzir disparos (no caso de arma de fogo) se encontra jungido ao princípio da ofensividade (nullum crimen sine iniuria), segundo o qual somente se podem ter por delituosas condutas que ofendam bem jurídico alheio.
Ora, se um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a construção de uma sociedade livre e, também, são invioláveis a liberdade, a intimidade e a vida privada, não há como se conceber qualquer ato de privação da liberdade do indivíduo se não houver dano à esfera subjetiva de terceiro.
Entretanto, malgrado todo o arcabouço teórico que se erigiu em torno do tema, confeccionado em estrita observância aos valores mais fundamentais do ser humano e à melhor tendência despenalizadora da política criminal moderna, o Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, em recente decisão, veiculada no informativo de jurisprudência n°527, foi responsável por verdadeiro retrocesso.
“Roubo: Emprego de Arma de Fogo e Causa de Aumento - 2
Para a caracterização da majorante prevista no art. 157, § 2º, I, do CP, não é exigível que a arma seja periciada ou apreendida, desde que comprovado, por outros meios, que foi devidamente empregada para intimidar a vítima. Com base nessa orientação, a Turma, em conclusão de julgamento, indeferiu, por maioria, habeas corpus em que requerida a manutenção da pena imposta pelo tribunal de origem, ao argumento de que seriam indispensáveis a apreensão e a perícia da arma para aferição da mencionada causa de aumento. A impetração sustentava que, na situação dos autos, a potencialidade lesiva desse instrumento não teria sido atestada por outros elementos de prova - v. Informativo 500. Asseverou-se que o potencial lesivo integra a própria natureza do artefato e que, se por qualquer meio de prova, em especial pela palavra da vítima ou pelo depoimento de testemunha presencial ficar comprovado o emprego de arma de fogo, esta circunstância deverá ser levada em conta pelo magistrado na fixação da pena. Dessa forma, observou-se que, caso o acusado alegue o contrário ou sustente ausência de potencial lesivo do revólver utilizado para intimidar a vitima, será dele o ônus de provar tal evidência (CPP, art. 156). Ressaltou-se, ademais, que a arma, ainda que não tivesse o poder de disparar projéteis, poderia ser usada como instrumento contundente, apto a produzir lesões graves. Por fim, aduziu-se que se exigir perícia para atestar a potencialidade lesiva do revólver empregado no delito de roubo teria como resultado prático estimular os criminosos a desaparecerem com elas, de modo que a aludida qualificadora dificilmente teria aplicação. Vencida a Min. Cármen Lúcia, relatora, que deferia o writ para anular o acórdão impugnado e restabelecer a condenação do paciente pelo crime de roubo, descrito no art. 157, caput, do CP, uma vez que, na espécie, não fora possível atestar, por outros meios de prova, a potencialidade lesiva do artefato. Precedente citado: HC 84032/SP (DJU de 30.4.2004).
HC 92871/SP, rel. orig. Min. Cármen Lúcia, rel. p/ o acórdão Min. Ricardo Lewandowski, 4.11.2008. (HC-92871)” (sem grifos no original)
Entendeu o Excelso Pretório, inexplicavelmente, que a potencialidade lesiva da arma de fogo é inerente à sua própria natureza, ou seja, ainda que desmuniciada ou avariada, se utilizada para a prática de roubo, já teria o condão de responsabilizar o agente pelo tipo qualificado do 2º, I, do art,157, do CP.
Não bastasse isso, implementando verdadeira inovação na seara do ônus da prova, a decisão mencionada criou nova regra de apreciação probatória em casos que tais, qual seja, a de que cabe ao réu comprovar que a sua arma não tem potencialidade ofensiva, tudo em afronta, entendemos, ao art.22, I, da Constituição Federal, que atribui a competência privativa para legislar sobre matéria processual à União.
A nós parece que entender de tal forma seria incidir em verdadeiro bis in idem, pois a mesma arma que, v.g., desmuniciada, serve para configurar a elementar da grave ameaça no crime de roubo simples (caput do art.157), também serviria para perfazer o delito de roubo qualificado pelo emprego de arma (§2º, I).
Passa-se, pois, a permitir que um mesmo fato seja considerado duas vezes para a finalidade de reprimir um mesmo indivíduo, em manifesta afronta aos princípios do non bis in idem e da exclusiva proteção de bens jurídicos (lesividade). Seria o double jeopardy do direito norte americano.
Partindo dessa nova premissa – construída pela Primeira Turma do STF – indaga-se: qual a razão, então, para não se considerar como qualificado (157, §2º, I) o crime de roubo cometido com o emprego de arma de fogo?
O que se pode entender, a partir da nova posição adotada pelo STF, é que o tratamento conferido à arma de fogo, antes da revogação da Súmula 174 do STJ, está em vias de ressurreição, nos restando, infelizmente, aguardar o posicionamento da segunda turma daquela corte e, posteriormente, do seu Plenário.
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