Em setembro de 1999, publiquei, pelo Boletim do IBCCRIM, um pequeno artigo em que defendi a idéia de que a distinção entre erro de tipo e erro de proibição era supérflua, devendo ser superada. Reafirmei esta idéia, com novos argumentos, em meu "Direito Penal - Introdução Crítica", Saraiva, 2001.
Estava, e estou convencido, deste posicionamento pelas seguintes razões: 1)o conceito (funcionalista) de dolo compreende (ou deve compreender), necessariamente, a consciência da ilicitude, pois a idéia de um dolo "natural" só pode ser teorizada e construída à margem da realidade, sendo algo artificial. E se assim entenderemos, o erro de proibição passa a ser um problema de tipicidade, e não de culpabilidade; 2)ambos os erros, do ponto de vista político-criminal, se equiparam, na essência, visto que produzem o mesmo efeito prático (quando inevitáveis): uma sentença penal absolutória; 3) todo erro de tipo implica um erro de proibição, sendo a recíproca verdadeira. Assim, por exemplo, o agente que "subtrai" coisa alheia móvel, supondo própria, além de errar sobre elemento do tipo - o "alheia" -, erra também, simultaneamente, sobre a proibição do fato, pois julga, em tais circunstâncias, lícita uma ação proibida, uma vez que imagina praticar, segundo sua representação, uma legítima ação de quem detém a posse ou a propriedade (legítimas) da coisa. Carece de sentido, ainda, a distinção, se se adotar, como o faço, a teoria dos elementos negativos do tipo; 4)recuso, por último, autonomia sistemática entre injusto e culpabilidade.
Pois bem, censura-me, agora, o excelente Luiz Flávio Gomes, primeiro, criticando a teoria dos elementos negativos do tipo, segundo, argumentando que "no que diz respeito à função motivadora do Direito penal (da norma penal), o que cabe sublinhar é que ele não é a única, e tampouco a mais importante. Outras funções (missões) mais relevantes desempenha o Direito penal: missão de proteção de bens jurídicos, missão de evitar a vingança privada, missão de constituir um conjunto normativo dotado de garantias", in Erro de Tipo e Erro de Proibição, p. 83/84, 5ª edição, Ed. RT, S. Paulo, 2001.
Semelhante argumentação não procede, porém. Inicialmente, tenho que todas as criticas à teoria dos elementos negativos do tipo somente são admissíveis se se adotar uma perspectiva causalista ou finalista. Se se entender, no entanto, como parece entender Luiz Flávio, superados estes paradigmas, as críticas ficam também superadas. Aliás, julgo inteiramente irrelevante o argumento Welzelniano, freqüentemente invocado, de que, para a teoria dos elementos negativos do tipo, tanto é atípica a conduta de matar um mosquito como a de matar um ser humano em legítima defesa. É que, ao se adotar a teoria dos elementos negativos, não se pretende, por óbvio, equiparar a ação de matar um mosquito à de matar um ser humano, mesmo porque, no primeiro caso, sequer se poder ter o ato à conta de uma ação no sentido jurídico-penal.
Fato é que, adotando ou não esta teoria, o ato de matar um mosquito e matar um homem terão, sempre, significado diverso, pois o direito penal não cria valores, mas tão-só regula aqueles - mais importantes - que medram na comunidade. Assim, por exemplo, matar um homem nunca será o mesmo que abater um animal silvestre (protegido pela legislação ambiental), v.g., um tatu, do mesmo modo que matá-lo em legítima defesa jamais significará o mesmo que abater a caça em estado de necessidade. Igualmente, furtar o toca-fitas nunca será o mesmo que furtar o próprio automóvel, ainda quando ambas as ações sejam consideradas típicas.
Cabe transcrever, ainda, a crítica que Schünemann faz a Muñoz Conde, que se socorre do mesmo argumento invocado por Luiz Flávio: "o velho argumento de Welzel e de Hirsch", escreve Schünemann, "que hoje em dia Munõz Conde volta a retomar, de que a morte justificada de uma pessoa é distinto da morte de um mosquito, existindo, portanto, diferença essencial entre ausência de tipicidade e justificação, é errônea desde o ponto de vista da lesividade social, ja que, querendo ou não, a morte de uma pessoa em legítima defesa é tão pouco lesiva socialmente como a morte de um mosquito", La Función de la Delimitación entre injusto y culpabilidad, p. 222, Barcelona, 1995.
Quanto ao segundo argumento, de que o direito penal persegue outras funções, além da função motivadora, penso que a questão está mal colocada. Ocorre que todas as "missões" a que se refere Luiz Flávio estão, em verdade, compreendidas na "função motivadora" da norma penal (embora o conteúdo da "função" ou da "motivação" possa variar de autor para autor), podendo-se dizer, assim, que, tanto a proteção de bens jurídicos quanto a função de garantia (coibir reações formais ou informais arbitrárias) são apenas variáveis de uma coisa única, qual seja, da função de motivar os destinatários da norma a atuarem conforme o direito, pois assim se protegem bens jurídicos, assim se previnem vinganças e assim o direito se constitui como um sistema de garantias do cidadão frente aos abusos praticáveis pelo Estado e pelos próprios indivíduos.
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