O crime se caracteriza, sob o aspecto analítico, pelos requisitos do fato típico e da antijuridicidade, apresentando-se a culpabilidade como pressuposto da pena.
Fato típico é o que se amolda à norma penal incriminadora. Aquele que, num supermercado, subtrai mercadorias, comete furto (Código Penal, art. 155). Se emprega violência física ou grave ameaça, responde por roubo (art. 157). Saques, desde que cometidos por inconformismo político e exponham a perigo de lesão o Estado de Direito, configuram crimes contra a Segurança Nacional (arts. 1.º, 2.º e 20 da Lei n. 7.170, de 14.12.83). Nos três casos, os fatos apresentam correspondência exata com as normas penais de proibição, recebendo, por isso, a denominação "fatos típicos". Não é suficiente, porém, para a existência de crime, que o comportamento seja típico. É preciso que seja ilícito para que sobre ele incida a reprovação do ordenamento jurídico. Em face disso, surge o crime como fato típico e antijurídico.
Numa apreciação preliminar, pode-se dizer que a antijuridicidade é a contrariedade entre o fato típico e o Direito. Empregamos um critério negativo de conceituação da antijuridicidade: o fato típico é também antijurídico, salvo se concorre causa de exclusão da ilicitude, nos termos do art. 23 do Código Penal (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito). Diante de um evento atentatório a um bem jurídico, como, p. ex., a morte dolosa de um homem provocada por outro, diz-se que há um "fato típico". Surge a antijuridicidade se não agiu acobertado por excludente da ilicitude (ex.: legítima defesa). Assim, antijurídico é todo fato descrito em lei penal incriminadora e não protegido por causa de justificação. O sistema negativo conceitua a antijuridicidade como ausência de causas de ilicitude, o que vale dizer que não diz o que é antijurídico, mas sim o que é jurídico.
O Código Penal considera em estado de necessidade, uma das causas de exclusão da ilicitude, quem pratica fato típico para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, "nem podia de outro modo evitar...", bem jurídico seu ou de terceiro (art. 24). Significa que o agente não tem outro meio de evitar a lesão ao interesse jurídico próprio ou alheio que não o de praticar o fato necessitado, ofendendo outro bem. Ocorre nas hipóteses em que é inviável a abstenção de realização do comportamento lesivo em face da inevitabilidade do perigo de dano por outra forma ("beco com uma única saída possível"). Exemplos: dano em propriedade alheia para extinguir incêndio; subtração de alimentos para evitar a morte por inanição; subtração de água para evitar a morte por sede; aborto para salvar a vida da gestante; morte de náufrago para apanhar a única tábua de salvação; subtração de veículo para transportar doente em perigo de vida; violação de domicílio para acudir vítima de crime; lançamento de mercadorias de aeronave em perigo; desvio de canal para impedir inundação; omissão de socorro médico para acudir outro paciente etc.
Nesses casos, exposto o bem a perigo de dano real, grave e atual, se o conflito de interesses pode ser resolvido de outra maneira (conduta diversa), como pedido de socorro a terceira pessoa, lesão menor, fuga (commodus discessus) ou mesmo abstenção da conduta, o fato não fica justificado. É preciso que o único meio que se apresenta ao sujeito para impedir a lesão do bem jurídico seja o cometimento do fato lesivo. Não é um conceito rígido, mas relativo, aquilatado pelas circunstâncias do caso concreto em que se vê envolvido o agente. Se o perigo pode ser afastado por uma conduta menos ofensiva ou comportamento diferente, a realização do comportamento mais lesivo não configura a excludente da ilicitude, subsistindo crime. A jurisprudência tem se manifestado diversas vezes nesse sentido: Revista dos Tribunais, 518:377, 535:304 e 559:358; Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 35:334, 39:41 e 65:384.
Só é possível o estado de necessidade para salvaguardar interesse próprio ou alheio, "cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se" (art. 24, in fine). Significa que o bem jurídico se encontra na iminência de ser lesado ou destruído (morte ou dano físico ou fisiológico por fome, sede, frio etc.; dano a patrimônio etc.). É o requisito da proporcionalidade entre a gravidade do perigo de lesão que ameaça o bem jurídico e a intensidade da ofensa causada pelo fato necessitado.
O fato necessário, como diz MUÑOZ CONDE, não pode ser utilizado como panacéia de todos os conflitos de interesses. Assim, prossegue, "o desempregado não pode assaltar um supermercado" (Derecho Penal, Parte General, Valencia, Tirant Lo Blanch Libros, 1996, p. 343). Não basta, pois, que haja uma necessidade de alimentos, medicamentos, terras para plantar, empregos etc. Urge que a conduta, em face da iminência de lesão ou destruição de um bem (vida, p. ex.), seja necessária (inexigibilidade de comportamento diverso) e realizada em situação grave e atual (Revista de Jurisprudência e Doutrina do TACrimSP, 24:162), exigindo-se prova cabal e não mera alegação (Julgados do TACrimSP, 49:211 e 53:153).
No chamado "furto famélico", que não constitui delito (Julgados do TACrimSP, 82:206 e 86:425; Revista dos Tribunais, 574:370), o sujeito, para afastar a morte ou lesão fisiológica por inanição, sua ou de terceiro, subtrai coisa alheia como única conduta disponível. É a chamada "inevitabilidade do comportamento" (Revista dos Tribunais, 637:273). Há uma só saída: a prática do fato típico, tornando inexigível comportamento diverso (Tribunal de Justiça do DF, Apel. Crim. 12.806, DJU 4.8.93, p. 30072). Só é admissível em questão de sobrevivência, diante da iminência do mal (Tribunal de Justiça do DF, Apel. Crim. 9.597, DJU 2.5.90, p. 8485), que não pode ser incerto, remoto ou futuro (Revista dos Tribunais, 597:287). Fora disso, há crime. Assim, não aproveita a simples alegação de desemprego (Revista dos Tribunais, 721:450), uma vez que "necessidade" não se confunde com "precisão" (Revista de Jurisprudência e Doutrina do TACrimSP, 22:211).
A defesa, nos casos de furto e saques, só apresenta relevância quando demonstrados os seguintes requisitos: 1.º – que o fato tenha sido praticado para saciar a fome ou satisfazer necessidade vital; 2.º – que tenha se apresentado como o único e derradeiro recurso; 3.º – que o objeto material subtraído tenha sido coisa capaz de diretamente contornar a emergência (Tribunal de Alçada do RS, Apel. Crim. 288.035.686, Julgados do Tribunal de Alçada do RS, 67:73).
Se o sujeito mora num deserto, onde não há condições de plantar alimentos, não pode, alegando estado de necessidade, transformar-se em assaltante de caravanas.
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