O FUGU ASSASSINO
Há, nas costas do Oceano Pacífico japonês, um minúsculo peixe chamado Fugu, conhecido no Brasil com o nome de Baiacu, portador de poderoso veneno em suas glândulas sexuais, dentro de duas frágeis cápsulas, que, no preparo, devem ser removidas com muita cautela. Ao menor descuido, a peçonha pode vazar, impregnando seu tecido. E não é fácil saber quando a operação obteve sucesso: isso só ocorre depois de comer a iguaria. A ingestão do veneno é quase sempre fatal. Não obstante a existência de regulamento a respeito da venda e consumo do Fugu, são muito populares no Japão as "Fugu festas", em que o esmero em sua preparação constitui especial atrativo de restaurantes e pessoas finas no trato de "receber". Imagine que a esposa, desejando matar o marido, amante do famoso prato, induza-o todos os sábados a comer Fugus nas "family suppers" e em restaurantes, na esperança de que, um dia, o descuido de algum cozinheiro lhe proporcione a morte do indesejado companheiro, o que realmente vem a acontecer.
O CARRASCO FRUSTRADO
Suponha-se a condenação à guilhotina de um autor de estupro seguido de morte. Frações de segundo antes de o carrasco puxar a alavanca, o pai da vítima, que havia sido convidado a assistir a execução, com um revólver, desfecha um tiro na cabeça do condenado, matando-o. Responde pela morte?
QUESTÃO
A esposa e o pai da vítima respondem por homicídio? Note-se que, tomando o caso n. 1, a esposa da vítima agiu com dolo, houve resultado morte e nexo de causalidade, sendo típico o fato. Em tese haveria, pois, fato típico de homicídio. No caso n. 2, excluída a conduta do pai da vítima, nos termos do método da eliminação hipotética (CP, art. 13, caput, 2.ª parte), seguramente o resultado ocorreria da mesma forma por conta do carrasco: causa, para o sistema do Código Penal, é a ação sem a qual o resultado não teria ocorrido. Logo, a conduta do pai não poderia ser considerada causa da morte, uma vez que sem ela o evento teria acontecido da mesma maneira. E o carrasco não executou o condenado. Vê-se que, aplicado o princípio do CP, o pai da vítima não responderia por homicídio. Assim, teríamos uma morte sem causa?
RESPOSTAS
O FUGU ASSASSINO
Quando o ordenamento jurídico permite e regula a construção de uma ponte, um automóvel, um avião, um navio, uma arma de fogo etc., o legislador tem consciência de que a utilização desses bens, ainda que de forma normal, carrega riscos a objetos que ele mesmo pretende proteger. Assim, a direção de um automóvel, mesmo que de acordo com as regras regulamentares, traz riscos a terceiros e a todos que se utilizam desse meio de transporte. A não ser assim, seria quase impossível a convivência social com a utilização das modernas fontes de energia (eletricidade, gás, reações nucleares etc.), a extração de minerais, a produção industrial e agrícola, o emprego dos aparelhos que o progresso nos traz, o transporte, a manipulação de alimentos e medicamentos etc. O perigo de um dano é inerente a toda atividade humana. Andar nas calçadas, p. ex., não se pode dizer que seja um comportamento isento de riscos. E há outros, como submeter-se a uma cirurgia, levar uma criança ao parque de diversões, viajar de avião, de automóvel ou de navio, praticar esportes, caçar, pescar, alimentar-se etc. Trata-se de um risco permitido pela ordem jurídica.
A realização de conduta que carrega risco permitido, como envenenar-se com a alimentação de um restaurante, ainda que venha a produzir um resultado danoso, não pode ser creditada como típica a seu autor ou a seu eventual determinador, idealizador ou causador objetivo (a esposa da vítima fatal). Cuida-se de ação atípica. Nesse sentido: GÜNTHER JAKOBS, La imputación objetiva en Derecho Penal, Madri, Civitas, trad. de Cancio Meliá, 1999, p. 142.
Só há imputação objetiva do resultado quando o sujeito criou risco juridicamente reprovável e relevante (CLAUS ROXIN, Derecho Penal, Parte General, Madri, Civitas, trad. de Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, 1997, I:373). Ao contrário, inexiste imputação objetiva quando falta a criação do perigo. Nesse sentido: CLAUS ROXIN, Reflexões sobre a problemática da imputação em Direito Penal, in Problemas fundamentais de Direito Penal, Lisboa, Vega, trad. de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz, 1986, p. 149, b. De maneira que, nos casos similares ao proposto, o sujeito, embora cumpra o tipo subjetivo, não concretiza o tipo objetivo, faltando a imputação objetiva. Ele não causa um risco desaprovado e juridicamente importante ao bem jurídico. Além disso, não tem o domínio do fato, não podendo ser considerado "autor" . No exemplo, a conduta da esposa (induzimento à ingestão do Fugu) não causou um perigo tipicamente relevante à vida do marido, que foi perdida no plano do tráfego social, em que há risco juridicamente permitido, ocorrendo o resultado no decorrer costumeiro das coisas. Além disso, ela não tinha domínio sobre a atividade do cozinheiro do restaurante. Solução: inexistência de crime de homicídio por atipicidade da conduta.
O CARRASCO FRUSTRADO
O pai da vítima responde por homicídio. A causalidade material (CP, art. 13, caput), adotando a teoria da equivalência dos antecedentes e aplicando o método de eliminação hipotética, sempre esbarrou em obstáculos constrangedores, como na hipótese do desafio, que se inclui nos denominados "cursos causais hipotéticos": casos em que, mesmo que suprimida a conduta realmente causadora do resultado, este ainda ocorreria da mesma forma e no mesmo momento. De maneira que a ação produtora do evento, nos termos da fórmula da eliminação hipotética, não deveria ser considerada "causa" (ELENA LARRAURI, Imputación objetiva, Bogotá, Editorial Temis, 1989, p. 47), o que não se justifica. Daí por que a teoria da imputação objetiva ensina haver responsabilidade pelo resultado de acordo com o seguinte princípio: há imputação objetiva quando o resultado é causado materialmente por uma conduta produtora de um risco juridicamente proibido no mesmo instante em que o evento fatalmente teria ocorrido em face de outro perigo preexistente. O pai da vítima realizou uma conduta perigosa juridicamente proibida (atirar na vítima), materializando-se o risco na morte do condenado (resultado normativo), ainda que, fatalmente, o evento ocorreria em face da ação do carrasco. De modo que, incidindo a teoria da imputação objetiva, há homicídio, desprezando-se o art. 13, caput, 2.ª parte, do CP, cuja aplicação literal, por adoção da equivalência dos antecedentes e do método da eliminação hipotética, conduziria absurdamente à inexistência de crime.
Dezembro/1999
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