Já tínhamos “crime que não é crime”, “pena sem crime” e “crime sem pena”. Há novidade. A mais recente invenção do legislador brasileiro: “ação penal sem crime”. Vejamos.
A expressão “crime de responsabilidade”, na legislação brasileira, apresenta um sentido equívoco, tendo em vista que se refere a crimes e a infrações político-administrativas não sancionadas com penas de natureza criminal.
Em sentido amplo, a locução abrange tipos criminais propriamente ditos e fatos que lesam deveres funcionais, sujeitos a sanções políticas. Em sentido estrito, abrange delitos cujos fatos contêm violação dos deveres de cargo ou função, apenados com sanção criminal. Por sua vez, os delitos de responsabilidade propriamente ditos, aqueles considerados em sentido estrito, estão previstos no Código Penal (crimes comuns) e na legislação especial (crimes especiais).
Assim, crime de responsabilidade, em sentido amplo, pode ser conceituado como um fato violador do dever de cargo ou função, apenado com uma sanção criminal ou de natureza política. Pode-se dizer que há o crime de responsabilidade próprio, que constitui delito, e o impróprio, que corresponde ao ilícito político-administrativo (“crime que não é crime”).
Entre nós, são crimes de responsabilidade impróprios os definidos na Lei n. 1.079, de 10.4.1950 (crimes de responsabilidade do Presidente da República, de Ministros de Estados, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, do Procurador-Geral da República e dos Governadores dos Estados e seus Secretários), alterada pelo art. 3.º da Lei n. 10.028, de 19.10.2000, e na Lei n. 7.106, de 28.6.1983 (crimes de responsabilidade do Governador do Distrito Federal).
Os crimes de responsabilidade próprios (ou em sentido estrito), que configuram infrações penais, estão descritos: a) no Código Penal; e b) na legislação especial. No Código Penal, os delitos de responsabilidade próprios correspondem aos crimes funcionais, cometidos por funcionários públicos no exercício do cargo ou função e descritos nos arts. 312 a 326 e 359-A a 359-H (estes últimos, ordenados em letras, introduzidos no estatuto penal pela Lei n. 9.983/2000). Há outros, como a violação de domicílio qualificada (art. 150, § 2.º) e os delitos de falso praticados por funcionário público (arts. 300, 301 etc.). Na legislação especial, os crimes de responsabilidade propriamente ditos estão definidos no Decreto-lei n. 201, de 27.2.1967 (crimes de responsabilidade de Prefeitos e Vereadores), alterado pelo art. 4.º da Lei n. 10.028, de 19.10.2000, na Lei n. 4.898, de 9.12.1965 (abuso de autoridade), e em outras normas que cominam penas a funcionários públicos que cometem delitos no exercício da função.
Verifica-se que a Lei n. 1.079/50 não descreve crimes e sim infrações político-administrativas.
A Lei n. 10.028, de 19.10.200, além de alterar o Código Penal, acrescentando-lhe crimes contra as finanças públicas (arts. 359-A a 359-H), modificou em seu art. 3.º a Lei n. 1.079/50, ampliando o rol das infrações político-administrativas e acrescentando uma disposição ao art. 41, com a seguinte redação:
“Art. 41-A. Respeitada a prerrogativa de foro que assiste às autoridades a que se referem o parágrafo único do art. 39-A e o inciso II do parágrafo único do art. 40-A, as ações penais contra elas ajuizadas pela prática dos crimes de responsabilidade previstos no art. 10 desta Lei serão processadas e julgadas de acordo com o rito instituído pela Lei n. 8.038, de 28 de maio de 1990, permitido, a todo cidadão, o oferecimento da denúncia”.
Quais as imperfeições do dispositivo?
1.a) dá a entender que o art. 10 da Lei n. 1.079/50 descreve crimes, quando, na verdade, como vimos, define infrações político-administrativas;
2.a) emprega a expressão “ação penal” em relação a ilícitos político-administrativos (“ação penal sem crime”);
3.a) dispõe sobre o rito processual, impondo o da Lei n. 8.038/90, que disciplina a ação penal perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça nos casos de competência originária. Esta Lei, porém, não se refere a infrações político-administrativas e sim a delitos;
4.a) se o legislador supôs estar tratando de ação penal por crime, permitiu que qualquer cidadão do povo possa oferecer denúncia, admissão de flagrante inconstitucionalidade (CF, art. 129, I).
Imagine que o legislador estivesse consciente de estar tratando de ilícitos político-administrativos. Por que, então, usou a expressão “ação penal”? E por que prevê o rito processual da Lei n. 8.083/90 somente para as pessoas referidas no art. 10 da Lei n. 1.079/50, enquanto as hipóteses dos outros capítulos continuam com o procedimento antigo?
O dispositivo é tão confuso que merece destaque no museu das imperfeições legislativas.
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