A Lei n. 10.054, de 7 de dezembro de 2000, dispôs sobre a identificação criminal, rezando em seu art. 1.º:
O preso em flagrante delito, o indiciado em inquérito policial, aquele que pratica infração penal de menor gravidade (art. 61, caput e parágrafo único do art. 69 da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995), assim como aqueles contra os quais tenha sido expedido mandado de prisão judicial, desde que não identificados civilmente, serão submetidos à identificação criminal, inclusive pelo processo datiloscópico e fotográfico.
Nos termos do art. 3.º, o civilmente identificado por documento original não será submetido a identificação criminal, exceto quando:
I – estiver indiciado ou acusado pela prática de homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, crime de receptação qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de documento público; (...)
Pensamos que a CF, ao determinar que “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei” (art. 5.º, LVIII – itálico nosso), não pretendeu referir-se a espécies de crimes (homicídio, estupro etc.), como fez o inc. I do art. 3.º da Lei n. 10.054/2000. Não há razão para que o civilmente identificado submeta-se à identificação penal, salvo casos excepcionais, como quando não apresenta nenhum documento, ou este contém rasuras, indícios de falsificação etc. (hipóteses mencionadas em outros incisos do art. 3.º). A exigência de identificação criminal não decorre da natureza do delito e sim das circunstâncias da situação concreta. Por isso, a disposição do inc. I é de duvidosa constitucionalidade.
A relação contempla o homicídio doloso, abrangendo as formas simples, privilegiada e qualificada. Suponha-se o caso do pai que mata o raptor violento da filha. Ele, pai, ainda que civilmente identificado, deverá ser submetido ao vexame da identificação criminal, pois trata-se de homicídio doloso, mencionado no inc. I, ainda que privilegiado. Mas o raptor civilmente identificado, caso tivesse sido preso em flagrante, não sofreria a mesma humilhação, tendo em vista que o rapto violento (CP, art. 219, caput) não é crime contra a liberdade sexual, não se encontrando previsto no Capítulo I do Título VI do Código Penal (está descrito no Capítulo III).
O tipo menciona os crimes contra a liberdade sexual. Só os previstos no Capítulo I do Título VI do CP: estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude e atentado ao pudor mediante fraude (arts. 213 a 216). A locução “crimes contra a liberdade sexual” possui significado técnico e localização própria no estatuto penal, não podendo ser estendida para abranger outros delitos contra os costumes. Note-se que a norma não menciona “crimes contra os costumes”, o que alcançaria todos os delitos do Título VI do Código Penal (arts. 213 a 234), mas “crimes contra a liberdade sexual”, que se encontram descritos, com esse nomen juris, num capítulo específico do Código Penal. E, cuidando-se de dispositivo que excepciona um direito fundamental, não admite interpretação extensiva. É estranho, mas não vemos como interpretar o texto de maneira diferente. Pasmem os aplicadores do Direito: a exceção inclui o crime de atentado ao pudor mediante fraude (art. 216 do CP), que dificilmente acontece, excluindo o rapto violento (art. 219).
O elenco é discriminatório, uma vez que menciona, em sua maioria, crimes geralmente praticados pela população pobre (homicídio doloso, roubo, latrocínio, extorsão, extorsão mediante seqüestro, estupro e atentado violento ao pudor). Qual a razão da não-inclusão de todos os delitos hediondos, como a falsificação de medicamentos, e os assemelhados, como o tráfico de drogas e a tortura? Por que a lei incluiu a receptação qualificada e não o contrabando? Há motivo para ficarem fora da relação os delitos de corrupção passiva, concussão, facilitação de contrabando, fraude contra o sistema financeiro, peculato, crimes contra as finanças públicas e os delitos próprios de responsabilidade?
E a “cifra dourada”? E os autores de crimes do colarinho branco? Por que não foram incluídos na imposição vexatória de “sujar os dedos”? A razão “jurídica” é simples: porque, se incluídos, ao arrumar a gravata para a foto, iriam sujar o colarinho!
Ao disparar a flecha da humilhação contra a parte pobre da população, uma vez que, lembrando o Direito Penal do Autor, a lei só alcança assaltantes, homicidas, seqüestradores e violentadores sexuais, o legislador atentou contra os princípios constitucionais da proporcionalidade e da dignidade humana. Só os pobres vão sujar os dedos!
Não nos esqueçamos de que o restabelecimento da credibilidade da Justiça passa pela boa elaboração das leis.
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