O Código Penal brasileiro estabelece o crime de aborto com a seguinte regra: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. O legislador excluiu a punição do aborto quando há aborto necessário ou aborto emocional. Aborto necessário ou terapêutico é o praticado quando não há outro meio para salvar a vida da gestante. Aborto emocional, ético, humanitário ou sentimental é aquele praticado quando a gravidez resulta de estupro.
A recente excomunhão da mãe que autorizou e dos médicos que realizaram o aborto da menina de 9 anos, vítima de estupro, em Pernambuco, foi noticiada nos principais veículos de comunicação do país. Com isso, surge a ocasião para a reafirmação de regras fundamentais que estruturam o Estado Democrático.
O drama iniciou quando o padrasto da menina a estuprou e da violência sexual resultou a gravidez da menor, que além de proveniente de estupro foi acompanhada de riscos para a vida da gestante. Realizou-se, então, o abortamento amparado concomitantemente nas duas exceções previstas na legislação penal brasileira.
Por tal ato, o eminente arcebispo de Olinda e Recife anunciou a excomunhão da mãe e dos médicos e foi taxativo: “A lei de Deus está acima da lei dos homens”.
A história humana tem vários momentos de fala em nome de Deus como forma de opressão, de cerceamento da liberdade humana e de abandono dos direitos e garantias fundamentais.
Por tal razão, o desenvolvimento do pensamento iluminista garantiu a ausência de religiosidade ao Estado, que atua em favor de todas as pessoas, independentemente de suas convicções, e permite que as diferentes formas de crença sejam aceitas e possam conviver harmoniosamente.
É interessante observar que do Projeto de Constituição, elaborado pelo iluminista Montesquieu para a Ilha de Córsega, constava uma regra que admitia toda e qualquer religião, forma de crença ou convicção, exceto aquelas que se dissessem possuidoras da verdade absoluta.
Combatendo a ideia de verdade absoluta, pensava Montesquieu combater a intolerância e uma espécie de “sequestro de Deus”, em que humanos se apresentam como seus porta-vozes diretos e únicos, ditando seus desejos pessoais, como se fossem os desejos do próprio Criador.
Há incompatibilidade do Estado Democrático com a ideia de que as leis humanas devem se submeter à legislação religiosa, pois será tão só a submissão a uma das formas de culto e que estará sendo imposta a todas as pessoas.
Caso haja vontade religiosa de excomungar a mãe e os médicos da menina violentada por contrariarem um dogma religioso, que se faça. Afinal, as decisões religiosas cabem aos religiosos; porém não se faça disso uma divulgação da intolerância e da ideia de que Estado e Igreja devem se misturar ou que as leis religiosas devem se impor sobre o Estado.
O Estado Democrático é laico. Aceita a todos: cristãos, muçulmanos, judeus, ateus, budistas, agnósticos etc. para viver em paz, trabalhando pelo bem comum. Uma religião pode ter regras regulando as relações com seus fiéis, mas não tentar fazer destas regras o conteúdo normativo do Estado.
De qualquer forma, não deixa de ser curiosa a repreensão à mãe da menina de 9 anos que, suportando a imensa dor de ver sua filha violentada, assumiu a dolorosa decisão de autorizar o aborto da prole de sua infantil filha para tentar salvar a vida da menina e ainda preservar-lhe um pouco da inocência.
Não deixa de ser curiosa a repreensão aos médicos, que, cientes de sua generosa e elevada missão de salvar vidas e diminuir as dores humanas, atuaram com maestria na utilização de seus conhecimentos para minorar os sofrimentos da criança estuprada.
É curioso por que a mesma autoridade religiosa que repreendeu mãe e médicos não teceu comentários sobre o padrasto que estuprou a criança de 9 anos. Será que o pecado dele é menor?
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