O instituto da delação premiada, também chamado de traição benéfica, consiste em beneficiar de algum modo o agente que, por ter contribuído com as investigações, possibilitou o sucesso na identificação e responsabilização de outros sujeitos, ou, ainda, evitou as últimas consequências da empreitada criminosa.
Surgiu na legislação pátria com o advento da Lei dos Crimes Hediondos e Equiparados (Lei 8.072/90) responsável por ter acrescentado o § 4º ao art. 159 do Código Penal (extorsão mediante sequestro) o qual rezava: “Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o co-autor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”.
Consoante a regra acima, somente com o êxito na libertação do refém graças à delação de um dos agentes é que este faria jus à redução da reprimenda eventualmente imposta.
Pela redação do mencionado preceptivo legal, apenas no caso de extorsão mediante sequestro praticada por quadrilha ou bando é que era possível o reconhecimento do efeito da delação (diminuição de pena), o que motivou acaloradas objeções, pois o instituto não abrangia a hipótese identificada no crime perpetrado por duas ou três pessoas e uma delas se apresentava como colaboradora. Como é sabido, para configuração do bando ou quadrilha faz-se necessário o agrupamento de, no mínimo, quatro pessoas (art. 288, CP).
Tais observações foram acolhidas no plano legal. Surgiu, então, a Lei 9.269/96 que deu a atual redação ao dispositivo, corrigindo a pecha antes identificada: “Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços”.
No art. 8º, parágrafo único, da Lei 8.072/90 tem-se outra manifestação do instituto da colaboração premiada. O caput do dispositivo estabelece o patamar da pena de reclusão (três a seis anos) quando a quadrilha ou bando (art. 288, CP) visar à prática de crimes hediondos ou equiparados. O mencionado parágrafo alude que se o participante ou associado “denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)”.
Parte considerável dos tratadistas apresentou críticas ferrenhas à inovação legislativa. Ao se necessitar da colaboração de um integrante do grupo voltado à prática de crimes hediondos ou assemelhados para o desempenho satisfatório da intervenção policial, acabava-se por demonstrar a fragilidade das organizações destinadas ao combate da criminalidade. Ora, ou estas instituições não possuíam meios apropriados para o exercício de suas atividades ou estariam, por algum outro motivo, incapacitadas de operarem tão-somente com o acervo de que poderiam se valer.
Em plano oposto, registra-se o posicionamento favorável à novidade. Via-se no instituto da delação premiada não somente a possibilidade de uma investigação mais célere, mas, também, o aumento nas chances de ser resguardada a integridade física e a vida das vítimas.
Mesmo com os embates doutrinários, antes do advento da Lei 9.269/96, responsável por alterar, como visto, a redação do § 4º, do art. 159, do Código Penal, outros dois diplomas encamparam a figura da delação premiada: as Leis 9.034 e 9.080, ambas de 1995.
A Lei 9.034/95, conhecida como Lei do Crime Organizado, vergastada por não definir o que se deve considerar como “organização criminosa”, dispõe no art. 6º que a pena será reduzida de um a dois terços, “quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria”, nos crimes praticados por organização criminosa.
A Lei 9.080/95 foi responsável por conduzir o instituto sob enfoque ao § 2º, do art. 25, da Lei 7.492/86, que trata dos crimes do colarinho branco (crimes contra o sistema financeiro). Reza tal dispositivo: “Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá sua pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços)”.
Em 1998 veio a lume a Lei 9.613/98, a qual “dispõe sobre os crimes de ‘lavagem de dinheiro’ ou ocultação de bens, direitos e valores”. No seu art. 1º, § 5º, a figura da traição benéfica recebeu novos estímulos, ampliando a gama de benefícios ao sujeito (“autor, co-autor ou partícipe”) que “colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objetos do crime”. A redução da pena, neste Diploma, está acompanhada da determinação do início de seu cumprimento em regime aberto, podendo, ainda, o juiz deixar de aplicar a sanção (perdão judicial) ou substituí-la por pena restritiva de direito.
Urge consignar o equivocado registro da expressão “espontânea” nos três diplomas citados quando se referem ao modo de realização da colaboração. Melhor seria a inscrição da locução “colaboração voluntária”, pois assim beneficiaria o agente que revelasse as informações sobre a parceria ou organização criminosa ainda que agisse estimulado por terceiro, vale dizer, de maneira não espontânea, mas voluntária.
A Lei de Proteção às Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/99) acabou por estender a incidência do instituto, tornando-o, por conseguinte, aplicável em tese ao colaborador que tenha participado ou programado a execução de qualquer infração penal. Esta Lei também admitiu como suficiente para o reconhecimento do benefício o ato “voluntário” do colaborador, somado a outros requisitos, deixando de corroborar a orientação outrora adotada, é dizer, de que a contribuição deveria ser espontânea.
São dois os dispositivos da Lei 9.807/99 que regem a delação premiada. O primeiro deles traz a seguinte redação:
“Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:
I – a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa;
II – a localização da vítima com sua integridade física preservada;
III – a recuperação total ou parcial do produto do crime.
Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.”
Há no dispositivo supra uma série de circunstâncias que devem ser analisadas pelo magistrado ao decidir sobre a extinção da punibilidade, o que dificulta a aplicação do benefício. A razão da técnica legislativa é demonstrada quando cotejados os artigos 13 e 14 da Lei 9.807/99, pois neste (art. 14) a traição benéfica é abarcada por requisitos de menor rigor e a consequencia única é a diminuição da pena eventualmente aplicada ao delator:
“Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de 1 (um) a 2/3 (dois terços).”
A aplicação deste art. 14 é subsidiária, isto é, somente quando não cabível o perdão judicial (art. 13) é que se cogitará a incidência da diminuição de pena.
Ambos os dispositivos estão agasalhados no Capítulo II da Lei 9.807/99 responsável por tratar “da proteção aos réus colaboradores”. Cediço que a chance de represálias por parte de outros integrantes, ou simpatizantes, do grupo a que pertencia o agente colaborador é imensa e a aludida Lei não apenas ampliou o campo de incidência da delação premiada, ela trouxe estipulações específicas para o êxito em sua concretização.
De acordo com o art. 15, caput, são garantidos ao colaborador, preso ou não, “medidas especiais de segurança e proteção à sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva”. Merece aplauso a parte final do dispositivo. Não se pode aguardar tão-somente a demonstração de atos inequívocos de retaliação. Qualquer indicativo de sua ocorrência é suficiente a demandar a proteção especial do acusado ou indiciado delator.
Se conduzido ao cárcere em razão de flagrante delito ou decreto de prisão preventiva ou temporária, “o colaborador será custodiado em dependência separada dos demais presos” (§ 1º, art. 15). Ainda que nenhum outro integrante do grupo esteja recolhido, o aparte do colaborador é imprescindível, tendo em vista a possível existência de ramificações daquele grupo até então desconhecidas ou mesmo ligações entre seus membros e os presos.
O § 2º, do art. 15, permite ao juiz, durante a instrução criminal, conceder em favor do colaborador “medidas cautelares direta ou indiretamente relacionadas com a eficácia da proteção” (art. 8º). Quaisquer medidas previstas em leis esparsas podem ser admitidas, assim como, se recolhido o delator sob o regime fechado de cumprimento de pena, “poderá o juiz criminal determinar medidas especiais que proporcionem a segurança do colaborador em relação aos demais apenados” (§ 3º).
A revogada Lei 10.409/02, reconhecida por reger o procedimento dos crimes atinentes ao “tráfico de entorpecentes”, trazia em seu bojo previsões referentes à colaboração premiada (art. 32). Também a atual Lei Antidrogas (Lei 11.343/06) apresenta disposição própria:
“Art. 41. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um terço a dois terços.”
Apesar de previsões em leis específicas, a delação premiada não se afasta da Lei de Proteção às Vítimas e Testemunhas (Lei 9.807/99). Isto porque ela não apenas estendeu o campo de incidência do benefício, mas previu medidas destinadas à proteção do agente colaborador.
Entretanto, não bastam enunciados legais para que o instituto alcance as finalidades almejadas. A desmotivação em sua utilização está na ausência de garantias de que o Poder Público providenciará integralmente os cuidados imprescindíveis à segurança pessoal do delator. Ademais, resta o temor de represálias dirigidas contra familiares e parentes deste, sendo a Lei 9.807/99 omissa quanto a este aspecto, prevendo apenas a extensão da proteção a familiares da vítima ou da testemunha (§ 1º, art. 2º).
Necessita-se de uma política de investimentos apta a viabilizar a concretização das medidas destinadas à proteção dos delatores. É impreterível a reestruturação dos estabelecimentos prisionais, com a edificação de áreas, pavimentos ou complexos exclusivos aos presos reconhecidos como colaboradores das investigações.
Indispensável, outrossim, a disponibilidade e o preparo de agentes que irão atuar na tutela dos colaboradores para que disponham de equipamentos e táticas apropriadas no sentido de identificar e evitar eventuais atos de desforra.
Na atual conjuntura dos órgãos de segurança pública, incogitável o estímulo à efetiva contribuição de algum integrante de certo grupo sob investigação com vistas à obtenção dos benefícios respectivos. Por conseguinte, o fracasso que ora se reconhece quanto ao instituto da delação premiada não se trata de algo imutável ou perene. Quiçá bastasse a realização de investimentos voltados à integral aplicação dos diversos diplomas legais, especialmente da Lei 9.807/99, para que a outra conclusão se chegasse.
Advogado em Anápolis-GO. Especializado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Católica de Goiás e Secretaria de Segurança Pública e Justiça de Goiás.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARVALHO, Thiago Amorim dos Reis. A (in)sustentabilidade da aplicação do instituto da delação premiada Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jul 2009, 08:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/17762/a-in-sustentabilidade-da-aplicacao-do-instituto-da-delacao-premiada. Acesso em: 27 nov 2024.
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