O presente estudo[1] se fundamenta no artigo do prof. Minieri, exaustivo no estudo desse tema escassamente conhecido. O testamentum in procinctu (tip) è ainda pouco estudado e são muitas as discordâncias entre os autores sobre suas características essenciais. Pode-se porém, extrair dos textos da antiguidade jurídica romana alguns dos principais elementos que caracterizavam este instituto jurídico.
Em termos gerais a própria origem do instituto do testamento no direito romano é incerta. O testamento é apenas mencionado na primeira codificação romana, a Lei das XII Tábuas (duodecim tabularum leges / 451-450 a.c.), que não traz nenhuma disposição específica sobre o tema. Essa única menção é a expressão encontrada na tab.5.4 (si intestato moritur). No que diz respeito ao tip, os estudiosos do direito romano não são de acordo nem mesmo em relação ao período histórico em que foi usado. Uma certeza contudo, è que o testamento in procinctu não è um antecedente histórico do testamento militis, ou seja daquele instituto jurídico que hoje conhecemos como testamento militar (cf. Bonfante e Arangio-Ruiz).
O nome do instituto jurídico, in procinctus, se refere ao exército armado e em posição de combate, como afirma Gaio, procinctus est enin expeditus et armatus exercitus (Gai. 2, 101-103). O termo procinctus vem do verbo procingere, a sua vez derivado da união de duas palavras pro e cingere. Refere-se, sem dúvida, ao ambiente militar e expressa a prática do exército romano de amarrar as vestes na altura da cintura, possibilitando assim mais liberdade de movimento ao combatente durante a batalha. Diz respeito portanto, à veste militar amarrada na altura cintura na iminência ou no momento do combate. Precisamente para Festo, toga procincta é a veste que os soldados na antiguidade, usavam quando partiam para a batalha, a qual é distinta da toga que envergavam em tempo de paz. Alguns textos, por essa razão, atribuem ao termo o significado genérico de exercito pronto para a batalha, ou em formação de ataque[2].
Erroneamente se pensou que Servio relacionasse esse uso do termo procinctus ao cinctus Gabinus, ou seja à veste usada nos sacrifícios rituais. Visto que passa a ser utilizado quase que simultaneamente ao uso do testamento in procinctus [3]. Segundo essa leitura o cinctus Gabinus usado inicialmente como veste litúrgica, teria sido adotado posteriormente como vestimenta de guerra. Não existem, todavia, provas consistentes que comprovem essa teoria.
Não se pode porem negar que o significado do termo procinctus esteja ligado ao antigo costume romano de combater com a toga cingida na cintura. Permanece, contudo o problema de explicar como o termo referendo-se originalmente ao uso da toga cingida na cintura, tenha posteriormente passado a designar todo um exercito, exercitus procinctus, como aparece em Gaio, nas Instituições de Justiniano e nas Noctes Atticae di Gellio. Um das explicações poderia ser o uso militar do verbo cingere, significando a pertença a uma determinada militia ou alistar-se[4]. No meio militar da antiguidade latina o uso do termo in procinctus, significava enfim, estar em “pé de guerra”, pronto para a batalha.
Situações em que era permitido testar in procinctus.
São várias as teorias sobre o momento em que se pronunciava o testamento in procinctus. Como já dissemos, esse era o testamento feito exclusivamente em caso de combate militar. A pergunta a ser respondida é sobre qual é o momento preciso em que era realizado esse testamento? Sabe-se que o testamento in procinctus era usado somente na hipótese de uma batalha iminente. Nesse sentido é claríssimo o texto de Gaio, segundo o qual se recorria ao testamento in procinctus, quando cum belli causa arma sumebant e in proelium exituri[5]. Para ele era pronunciado no momento em que se tomavam em mão as armas para partir para a batalha e se colocavam em formação de combate.
É certo também que a realização do testamento era ligada à celebração de cerimonias religiosas, especialmente do auspicium ex tripudis. Um manuscrito conservado na biblioteca capitular de Verona, oferece uma rica descrição dessa cerimônia. Tratava-se do ritual do auspicium que era realizado pelo Console antes da batalha, o qual dava comidas a alguns frangos. Se as aves comessem o alimento, era um sinal de bom agouro, e significava que os deuses eram favoráveis à vitória do exercito romano. O cônsul, ainda no acampamento e diante das tropas, depois que o guardião dos frangos, o pullarius, soltava as aves das gaiolas e depois que essas tinham comido, pronunciava dois apelos, o primeiro dirigido à aves e o outro aos combatentes. Em seguida o magistrado se dirigia aos deuses e chamava solenemente os combatentes (viro vocare). Em seguida à realização desse ritos, o exército partia para o campo de batalha (aciem). Chegando ao aciem, se realizava um outro sacrifício. Segundo uma parte respeitável dos estudiosos somente depois desse segundo sacrifício é que era possível testar in procinctus. Temos assim dois elementos cerimoniais, que são requisitos prévio à realização desse testamento, a cerimonia do auspicium e a correlata virorum evocatio.
Segundo a maior parte dos estudiosos o testamento propriamente dito era feito no campo de batalha antes do início dos combates e diante do exército em formação de combate militar, com os soldados envergando o escudo e com a toga cingida.
Segundo Troplong era pronunciado, mais precisamente no momento de maior perigo ou no momento do assalto[6]. Para Arangio-Ruiz[7] ao contrário, poderia ser realizado também no acampamento militar antes de partir para a batalha. Finalmente per H. Siber era feito no dia anterior à batalha[8].
Quem podia testar in procinctus?
Segundo Ulpiano podiam testar in procinctus não apenas os militares, mas também todos aqueles que se encontravam no hosticolo[9], ou seja todos os que se encontravam no lugar onde se encontrava o exército pronto para a batalha, fossem esses combatentes ou não[10]. O requisito fundamental era que o testador seja ele combatente ou não, se encontrasse em um lugar perigoso, em iminência de batalha. Tambem os plebeus, na qualidade de cidadãos e militares podiam in procinctus. Por outro lado, era necessário que o testador militar ou civil estivesse exercendo uma atividade qualquer relacionada á atividade militar e fosse também do sexo masculino. Era necessário porém que o testador tivesse superado a puberdade, visto que a “maioridade militar” começava aos 17 anos. Por essa razão, o tip era em resumo um testamento reservado aos juniores, ou seja àqueles com idade entre 17 e 46 anos, que eram os limites de idade para fazer parte do exército e participar de uma campanha militar. Era vedado de consequência aos seniores, ou seja aqueles com idade entre 47 e 60 anos, visto que a esses era confiada a defesa da cidade ou no máximo o serviço de milícia de vigilância do território. Se presumia que os seniores sendo já idosos e por isso mais próximo ao fim da vida, em algum momento ao longo de sua existência teriam já feito testamento, que poderia ser realizado somente duas vezes por ano ante os comizi curiati. Os militi juniores sendo de jovem idade presumivelmente pela sua breve existência não teriam tido oportunidade, nem motivos prévios para fazer um testamento. Aqueles com idade superior a sessenta anos não podia testar, pois se encontravam em condição semelhante à daquilo que hoje denominamos aposentadoria compulsória. Exatamente nessa característica reside a principal distinção entre o testamento in procinctus e o testamentum milites, que era um privilégio dos militares, seja em tempo de guerra que em tempo de paz e ao qual não haviam direito os não militares.
Testemunhas do testamento.
Um dos aspectos mais característicos do testamento in procinctu é a sua prova. Ainda que seja um tese sujeita controvérsias, considera-se que a prova principal do testamento era o testemunho dos colegas de arma do testador. É objeto de controvérsia o número de testemunhas necessário. Segundo Plutarco eram três ou quatro, enquanto que para Festo era necessário o testemunho de todo o exército. A maioria dos estudiosos entretanto abraça a tese de que o número de testemunhas necessário para a validade do tip era limitado a três ou quatro. Uma outra tese mais lógica, é a de que as testemunhas eram aqueles que devido à proximidade física com o testador, naquele momento verdadeiramente escutaram suas declarações de última vontade.
O conteúdo do TIP
São muitas as diversas teorias que tentam explicitar o conteúdo do tip. Estas podem ser divididas em três correntes diversas.
1ª - o tip era uma verdadeira adrogatio mortis causa. Nesse sentido a abolição das formalidades exigidas ordinariamente para a adrogatio eram abolidas em função do perigo iminente;
2ª - outros autores consideram o tip um legatentestament, cujo conteúdo se restringia a disposições de carácter particular e do qual de consequência era excluída a institutio eredis;
3ª – finalmente a terceira corrente é representada por aqueles que consideram a designição de um sujeito (um tutor ou talvez uma insitutio eredis) o conteúdo principal ou até mesmo único do tip.
Como narra Plutarco, entre os romanos era comum a prática de se fazer testamento antes de partir para a batalha. Esse ato de última vontade era feito por meio da indicação oral dos herdeiros. Era possível também que por meio do tip o testador nominasse um único herdeiro e deserdasse todos os outros. Assim o conteúdo principal do tip seria a designação dos herdeiros. Um argumento sem muito fundamento, a favor dessa ultima teoria é o trecho de Cicero (De Orat, 1.53.228), que narra o famoso processo contra Sulpicio Galba, acusado de cometer um massacre na guerra contra os lusitanos, no qual este leva ao seu julgamento seus dois filhos e o menino Quinto de quem era tutor e diante de todo o povo declara solenemente que caso fosse condenado, referindo-se à prática do tip, daria aqueles meninos ao povo romano como tutor (tutoris datio). A fragilidade do argumento reside na impossibilidade do povo romano como tal ser sujeito da tutela. Nessa passagem a referencia ao tip é apenas um elemento de retórica, sendo o tip uma forma testamentaria tipicamente oral.
A decadência do testamento in procinctus
Velleio Patercolo testemunha o derradeiro uso do testamento in procinctus, ainda no IIº século a.c. em uma narração de um episódio ocorrido no ano 142 a.c. na cidade espanhola de Contrebia, no território da atual província espanhola de Aragão, por obra de Cecilio Metelo Macedonico. Segundo a narração, Metelo obrigou cinco coortes de legionários a atacar e conquistar uma posição estratégica. Como era uma ação perigosa, todos o soldados, pelo alto risco que corriam, antes de atacar o inimigo, fizeram o testamentum in procinctu, velut ad certam mortem eundum foret[11] (“como se caminhassem para morte certa”). Essa narrativa confirma que o tip era pronunciado diante de um numero limitado de soldados, no caso somente uma coorte[12], e não diante de todo o exército como era o entendimento de alguns estudiosos.
Um século depois do episódio de Contrebia, o instituto do tip já tinha caído em desuso. Cícero na sua obra De natura deorum (2.3.9), publicada em torno ao ano 45 a.c., lamentava-se do fato de que os auspicia e os testamenta in procinctu haviam caído em desuso desde muito tempo. A decadência do tip está intimamente ligada á decadência dos rituais religiosos que lhe eram conexos. Não se praticando mais a virorum evocatio, nem os auspicia, que eram seus requisitos de validade, não se podia mais fazer o testamentum in procinctu. Além disso com o passar do tempo o tip passa a ser abandonado dando-se preferência às formas escritas de testamento, capazes de garantir maior segurança jurídica.
[1] O presente estudo é um resumo do artigo do prof. LUCIANO MINIERI, da Università degli Studi di Napoli, Itália, publicado em: Luciano Minieri, “Il Testamento in procinctu”, Studia et Documenta Historiae et Iuris, LXIV, PUL, Mursia, Romae, 1998, 253-296. Agradeçemos vivamente ao ilustre professor partenopeu a autorização para a divulgação, em forma de artigo, do presente texto.
[2] Exercitus ad proelium instructus et paratus (Festo) e exercitus armatus (Gellio).
[3] Serv. Ad Aen. 5.755 e 7.612.
[4] Digesta, 29.1.25.
[5] Gai. 2.101.
[6] R. T. Troplong, Delle donazioni fra i vivi e dei testamenti, 1, Napoli tr. 1855, XV.
[7] Arangio-Ruiz L´origine del “testamentum militis”, 159.
[8] H. Siber, Die ältesten römischen Volksversammlungen, in Zss. 57 (1937), 249.
[9] Hosticolo é uma corruptela de hostico, ou mais precisamente, de hostili loco.
[10] Digesta 37.13.1.
[11] Cicerone
[12] Uma das unidades do exército romano.
Doutor (2007) e Mestre (2003) em Direito Internacional pela Pontificia Università Lateranense de Roma, Italia, Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil (1992) e Bacharel em Teologia pela Faculdade de Teologia de Lugano, Suiça (2008).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Evaldo Xavier. O Testamentum in procinctu Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jul 2009, 09:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/17773/o-testamentum-in-procinctu. Acesso em: 27 nov 2024.
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