Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. A construção jurídica dos direitos da mulher; 3.O constitucionalismo contemporâneo e a proteção da mulher; 4. As noções de igualdade e discriminação; 5. A ratio das ações afirmativas e a Lei Maria da Penha; 6. As ações afirmativas adotadas pela Lei Maria da Penha; Epílogo.
1. Aspectos introdutórios
A interação sociopolítica entre indivíduos, grupos ou Estados, longe de ser caracterizada por uma linearidade constante, pautada por referenciais de harmonia e pacífica coexistência, tem sido historicamente marcada por posições de domínio. No plano existencial, que muitas vezes se distancia e em outras contradiz o plano idealístico-formal, a igualdade não é propriamente um valor inato e indissociável, tanto da espécie humana, como das estruturas de poder que a partir dela se formam. Em verdade, a presença de posições jurídicas dominantes tem acompanhado a própria evolução da humanidade, refletindo-se em praticamente todas as relações interpessoais e interestatais. Conquanto não se negue a sua dureza, é absolutamente realista a sentença do Marquês de Vauvenargues: “a natureza não conhece a igualdade; sua lei soberana é a subordinação e a dependência”.
No direito internacional, a guerra de conquista somente foi efetivamente proscrita no início do século XX;[1] em meados do mesmo século convivíamos com possessões coloniais[2]; e, ainda hoje, Estados mais fortes subjugam princípios há muito sedimentados na sociedade internacional, fazendo uso da força em defesa de seus interesses. A recente invasão, por forças norte-americanas, dos territórios afegão e iraquiano, bem ilustra essa possibilidade;[3] não sendo demais realçar que, até então, a denominada “legítima defesa preventiva”, tese utilizada na tentativa de legitimar o uso da força, ainda não freqüentara os anais dos tribunais internacionais.
No direito interno, o liberalismo clássico sedimentou dogmas cujos contornos semânticos em muito destoavam de sua projeção na realidade. A cansativa retórica da igualdade é um desses exemplos, sempre contemplada em sua plasticidade formal, mas raramente materializada em toda a sua potencialidade de expansão. Daí se afirmar que, na igualdade liberal, “todos são iguais, mas alguns são mais iguais que outros.”[4] O acerto dessa afirmação pode ser facilmente constatado com um mero passar de olhos pela ordem de valores subjacente à gênese do liberalismo, fartamente ilustrada pela revolução franco-americana.
Em terras francesas, apregoava-se uma igualdade que distinguia entre ricos e pobres, somente admitindo a participação política dos primeiros, não dos últimos.[5][6] como, ainda no Século XX, ensejava calorosos debates em torno da política segregacionista de alguns Estados-Membros.[7] Em paragens americanas, por sua vez, a discriminação racial não só contribuiu para a eclosão da guerra de secessão, quase levando ao fim a Federação,
A igualdade, em seus aspectos mais estritos, vale dizer, aqueles que não digam respeito unicamente à inserção na humanidade, pode apresentar múltiplas variações, que acompanharão as vicissitudes do meio social (v.g.: na Roma antiga, todos os cidadãos possuíam direitos políticos, mas os escravos e os bárbaros não eram considerados cidadãos). Práticas tidas como igualitárias num certo contexto sócio-cultural podem ser consideradas discriminatórias com o evolver do grupamento, fazendo que verdades absolutas se transmudem em relativas e daí em censuráveis equívocos.
Nesse contexto de fluxo e refluxo, a situação jurídica da mulher passou por diversas mutações na evolução do Estado de Direito, principiando por um estado de subordinação e dependência quase absoluta até que, a partir de conquistas pontuais, mas de indiscutível relevância, tem alcançado não só a sua autonomia existencial, como a paulatina inserção nos setores mais hegemônicos do grupamento. A compreensão dessas mutações exige reflexões em torno das dimensões em que se desenvolveu a construção jurídica dos direitos da mulher, o tratamento que lhe tem sido assegurado pelo constitucionalismo contemporâneo e, a partir de um referencial de igualdade formal, a identificação da juridicidade, ou não, das medidas adotadas para coibir a discriminação de gênero e alcançar a igualdade material. Na linha desses indicadores argumentativos, analisaremos os contornos estruturais e a compatibilidade da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, também denominada “Lei Maria da Penha”,[8] com a Constituição de 1988. A análise se faz necessária por duas razões básicas: (1ª) a igualdade de gênero foi incluída entre os direitos fundamentais (art. 5º, I) e (2ª) a Lei Maria da Penha confere um tratamento diferenciado à mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que termina por gerar resistência em relação à aplicação de alguns de seus preceitos.
2. A construção jurídica dos direitos da mulher
A construção de um referencial de igualdade, ainda que meramente formal, sempre ensejou uma polarização dos interesses envolvidos: de um lado, os excluídos, de outro, múltiplos atores sociais, que poderíamos subdividir em (1) hegemônicos, desejosos de manter a sua posição de primazia, (2) simpatizantes, estranhos à classe excluída, mas que reconheciam a injustiça da exclusão, e (3) indiferentes, prosélitos de seus próprios interesses e que normalmente consubstanciam a grande massa social. A partir desse quadro, o grande desafio é construir uma base axiológica que permita seja alcançado um referencial de coesão social, de modo que os componentes do grupamento vejam uns aos outros como iguais. O pensamento cristão, por exemplo, sustenta que todos os homens são filhos de Deus, tendo a sua imagem e semelhança, o que serve de alicerce à universalidade dos direitos humanos e justifica a igualdade entre todos aqueles que aceitem a fé cristã. Como afirmou o Apóstolo Paulo, “não há judeu nem grego, não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vóis sois um em Cristo Jesus” (Gálatas, 3: 28). Samuel Pufendorf (1632-1694), por sua vez, invocando aspectos inatos da espécie humana, também defendeu a igualdade dos homens na natureza.[9] Qualquer que seja o referencial argumentativo utilizado, teleológico ou jusnaturalístico, a construção de uma ordem de valores igualitária é uma preocupação constante.
Mesmo Platão, escrevendo numa época em que a mulher ainda era subjugada pelo homem, apesar de reconhecer a maior robustez física deste último, era categórico ao afirmar que “não há na administração da cidade nenhuma ocupação, meu amigo, própria da mulher, enquanto mulher, nem do homem, enquanto homem, mas as qualidades naturais estão distribuídas de modo semelhante em todos os seres, e a mulher participa de todas as atividades, de acordo com a natureza, e o homem também, conquanto em todas elas a mulher seja mais débil do que o homem.”[10]
O primeiro grande desafio enfrentado foi obter o reconhecimento normativo da igualdade jurídica entre homens e mulheres, o que certamente contribuiria para a paulatina inserção desse vetor axiológico no contexto social. Conquanto seja exato que o axiológico apresenta inegável ascendência sobre o normativo, influindo no delineamento do seu conteúdo e lhe conferindo legitimidade perante o grupamento, a alteração do quadro de dependência e subserviência da mulher somente pôde ser alterado na medida em que iniciativas isoladas assumiram ares de generalidade e, acima de tudo, imperatividade.
O liberalismo clássico apregoava a igualdade entre todos os homens, mas a mulher não era incluída sob essa epígrafe. Não é por outra razão que, na França, o célebre texto de 1789 foi denominado de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Em 1791, Olympe de Gouges, que logo depois foi condenada à morte na guilhotina, apresentou, sem êxito, um projeto de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, almejando que as conquistas da Declaração de 1789 fossem estendidas à mulher. As tentativas de inclusão sociopolítica da mulher foram uma preocupação constante no decorrer dos séculos XVIII e XIX, mas somente apresentaram um avanço significativo no decorrer do século XX. A intensidade das dificuldades enfrentadas pode ser facilmente imaginada ao constatarmos, por exemplo, que somente em 1871 o direito norte-americano começou a proibir a imposição de castigos corporais, pelo homem, à mulher, e isto apenas em alguns Estados da Federação, como Alabama e Massachussets.[11]
Na esfera do direito internacional privado, definia-se o direito estrangeiro aplicável a partir da nacionalidade do marido. Na Alemanha, oBundesverfassungsgericht proferiu a sua primeira sentença ab-rogativa em 22 de fevereiro de 1983, tendo decidido que “a disciplina de conflitos do art. 15, § 1º e § 2º (2ª frase), que submete as relações patrimoniais entre os cônjuges à lei do marido, está em contraste com o art. 3º, § 2º, da GG”.[12] Em 8 de janeiro de 1985, o Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade de norma que privilegiava a lei do marido na disciplina do divórcio. Com a reforma legislativa de 1986, as normas de conflito foram ajustadas ao princípio da igualdade e o problema superado. Na Itália, de acordo com as “Disposizioni Sulla Legge in Generale”, que antecediam o Código Civil e, até a entrada em vigor da Lei nº 218, de 31 de maio de 1995 (Reforma do Sistema Italiano de Direito Internacional Privado), disciplinavam integralmente a matéria, as relações pessoais[13] e patrimoniais[14] entre cônjuges estavam sujeitas à lei nacional do marido, acrescendo-se que as relações entre genitor e filhos eram reguladas pela lei nacional do pai.[15] O Tribunal Constitucional italiano, na Sentença nº 71/1987, reconheceu que “as normas de direito internacional privado são sindicáveis em sede de juízo de constitucionalidade”, não podendo destoar da Constituição.[16] Quanto à questão de fundo, declarou a inconstitucionalidade parcial da segunda parte do art. 18 da “Disposizioni Sulla Legge in Generale”, por violar o princípio específico da igualdade moral e jurídica entre os cônjuges[17] e o princípio geral da igualdade perante a lei.[18] Na sentença nº 477/1987, o Tribunal, com base nos mesmos fundamentos, declarou a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do art. 20 das referidas Disposições.[19]
No decorrer do século XX, o movimento feminista floresceu e os atos internacionais de proteção à mulher se multiplicaram. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, firmada no seio das Nações Unidas em 1948, teve sua denominação alterada para Declaração Universal dos Direitos Humanos;[20] e as organizações internacionais, de cunho universal ou regional, passaram a desempenhar um relevante papel na sedimentação de uma visão cosmopolita da igualdade de gênero. No âmbito da Organização dos Estados Americanos, merecem referência: (1) a Conferência sobre Nacionalidade da Mulher, adotada, em 1933, na VII Conferência Internacional Americana, realizada em Montevidéu,[21] (2) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Políticos à Mulher, adotada, em 1948, na IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá,[22] e (3) a Convenção Interamericana sobre a Concessão de Direitos Civis à Mulher, também adotada na IX Conferência Internacional Americana.[23] No âmbito das Nações Unidas, podemos mencionar a (1) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979,[24] e (2) Protocolo Facultativo a essa Convenção, adotado em 2001.[25]
Como se constata pelo teor desses atos internacionais, a mulher, em pleno século XX, ainda lutava pelo direito de escolher a própria nacionalidade, por uma plena capacidade civil e pelo direito de participação política. No Brasil, por exemplo, somente após o advento da Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, a mulher casada deixou de ser relativamente incapaz.
A mulher, ao menos no Ocidente, parece ter conquistado a sua definitiva inserção no plano da igualdade formal, o que, se é suficiente para tranqüilizar os menos exigentes, não logra êxito em afastar a infeliz constatação de que a realidade ainda é pródiga em exemplos de massivos e reiterados atos de discriminação contra a mulher. Afinal, o normativo, por maior que seja a sua plasticidade, jamais seria apto a eliminar uma longa história social de dependência e subordinação em relação ao homem.
O segundo grande desafio a ser diuturnamente enfrentado é o de transplantar a igualdade de gênero do plano meramente formal para o real, de modo que as mulheres, no curso de suas relações intersubjetivas, possam ter acesso a todos os benefícios e desempenhar as mesmas atividades asseguradas aos homens, desde, é óbvio, que os atributos físicos não assumam, legitimamente, um papel determinante no processo seletivo. A realização desses objetivos passa pelo reconhecimento formal da igualdade de gênero e alcança a adoção de medidas de inserção, conferindo-se um tratamento diferenciado à mulher de modo a compensar a posição de inferioridade que a evolução da humanidade sedimentou.
3. O constitucionalismo contemporâneo e a proteção da mulher
Costuma-se afirmar que a Constituição representa uma infindável série de escolhas, o que enseja questionamentos sobre se deve ser vista como um texto, uma intenção, uma ordem de deduções estruturais ou uma série de premissas políticas e morais.[26] Com abstração da linha argumentativa que venha a ser seguida, não é possível subtrair da Constituição a imperatividade ou deixar de reconhecer a sua condição de “ordem suprema do Estado”. Não há nenhuma norma jurídica de grau superior que lhe assegure a existência e imponha a observância, cabendo à própria ordem constitucional o fornecimento dos instrumentos que permitam a sua tutela e garantia.[27]
Não é por outra razão que o constitucionalismo contemporâneo, mais especificamente após o segundo pós-guerra, tem se preocupado com a construção de uma ordem de valores pautada em referenciais de igualdade e dignidade. Em decorrência do histórico de adversidades, a igualdade de gênero é uma preocupação constante. A Grundgesetz alemã de 1949, por exemplo, dispõe, em seu art. 3º, que “todos os homens são iguais perante a lei. Homens e mulheres têm iguais direitos. Ninguém poderá ser prejudicado ou favorecido em razão do seu sexo...”. A Constituição espanhola de 1978, do mesmo modo, visualiza a igualdade como um valor superior (art. 1º), reconhece o livre exercício profissional, assegurando que “em nenhum caso possa existir discriminação em razão do sexo” (art. 35) e ainda dispõe que compete aos Poderes Públicos promover as medidas necessárias, eliminando os obstáculos para que o exercício desses direitos seja viabilizado (art. 9º, 2). As Constituições italiana de 1947 (art. 3º) e brasileira de 1988 (art. 5º, I) também consagram um mandamento amplo de igualdade, vedando a distinção de sexo, mas a última delas ressalta que tal se daria nos termos prescritos na ordem constitucional. Em outras palavras, o tratamento diferenciado seria possível desde que harmônico com as normas constitucionais. Prescrições dessa natureza, é importante frisar, desempenham um papel de cunho mais diretivo, que propriamente restritivo. Em outras palavras, o tratamento diferenciado, ainda que não haja norma autorizadora expressa, sempre será possível, bastando seja demonstrada a presença de características distintas, intensas o suficiente para justificar um tratamento igualmente distinto.
O que se vislumbra na Constituição brasileira de 1988 é a existência de (1) um mandamento geral de igualdade (art. 5º, caput - “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”),[28] (2) um mandamento específico de igualdade de gênero (Art. 5º, I – “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações...”)[29] e (3) uma cláusula de remissão, indicando a possibilidade de tratamento constitucional diferenciado (Art. 5º, II – “... nos termos desta Constituição”). Essa última cláusula mostra-se coerente com o sistema na medida em que a igualdade total entre homens e mulheres é expressamente excepcionada pelo próprio texto constitucional, ao contemplar, por exemplo, a necessidade de proteção do mercado de trabalho da mulher (v.g.: art. 7º, XX) e a aposentadoria das mulheres com menor tempo de contribuição previdenciária (art. 40, § 1º, III, a e b). A análise desses dois comandos constitucionais permite concluir que a razão de ser do primeiro está na histórica exclusão da mulher do mercado de trabalho, o que exige a adoção de medidas protecionistas pelo Poder Público; o segundo, por sua vez, é diretamente influenciado por componentes (1) orgânicos, vale dizer, a menor resistência física da mulher, e (2) sociais, isto por ser comum o acúmulo de atividades, vale dizer, exercidas gratuitamente no lar e onerosamente no ambiente de trabalho.
Além das situações expressamente contempladas no texto constitucional, o tratamento diferenciado, em prol das mulheres, apresentará indiscutível juridicidade em sendo possível demonstrar que uma aparente discriminação formal busca, em verdade, alcançar a igualdade material.
4. As noções de igualdade e discriminação
No plano normativo, apregoar a igualdade é estruturar uma sociedade onde todos estejam seguros e tenham sua condição humana reconhecida.[30] Nessa linha, a existência de referenciais de análise que possuam a mesma essência é requisito indispensável a qualquer construção normativa relacionada à igualdade de direitos e deveres. Exige-se, assim, uma aferição comparativa, permitindo seja identificado em que medida as semelhanças se manifestam e quais os bônus ou ônus delas decorrentes. Para tanto, é necessário isolar as características relevantes, decisivas e umbilicalmente conectadas a uma dada conseqüência jurídica, o que pressupõe a correta identificação dos objetivos da norma, e proceder à comparação. O equívoco na individualização dessas características ou a incorreta associação entre característica e conseqüência jurídica, conferindo demasiada importância a um aspecto destituído de toda e qualquer relevância, certamente conduzirão a uma manifesta injustiça. Identificada a não uniformidade das características relevantes, será evidente a correção do tratamento diferenciado, conclusão que, à evidência, não afasta a necessidade de juízos valorativos extremamente delicados em relação à justa medida desse tratamento diferenciado, o que exigirá o emprego de um critério de proporcionalidade.
A simples constatação de que um indivíduo pertence à espécie humana, conquanto demonstre uma igualdade de essência, não afasta a possibilidade de, em círculos mais estreitos de análise, serem identificadas dissonâncias que justifiquem o tratamento diferenciado. Nesse particular, a neutralidade do Estado, elemento característico do laissez faire que direcionava o liberalismo clássico, somente se harmoniza com a denominada igualdade perante a lei, sendo vedada a outorga de posições jurídicas favoráveis a indivíduos ou grupos, ainda que notória a sua posição de inferioridade no contexto sociopolítico. O liberalismo clássico ainda apresentava um especial modo de ver e entender a “essência igualitária”, legitimando, por exemplo, a discriminação racial e a discriminação de gênero, isto em razão de uma pseudo-superioridade do branco em relação ao negro e do homem em relação à mulher. A fórmula da igualdade geral, conquanto prevista pela ordem jurídica, era interpretada de modo a excluir certos grupos, como os negros e as mulheres. A Constituição brasileira de 1824 é um exemplo singular dessa igualdade seletiva, pois, num período em que a mulher estava sob o jugo do homem e o negro atado aos grilhões da senzala, o seu art. 179, XIII, com inegável plasticidade, dispunha que “a lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue”.
A evolução da humanidade demonstrou o desacerto da tese de que certos grupos não seriam abrangidos pela fórmula da igualdade geral. Ocorre que a mera igualdade formal pouco a pouco se mostrou absolutamente inócua, já que incapaz de transpor o plano semântico e alcançar a realidade. Apesar de todos receberem o mesmo tratamento legal e o Estado não estar autorizado a introduzir discriminações arbitrárias, nem todos gozavam das mesmas oportunidades de inserção social. Assim, de modo correlato ao sentido clássico das discriminações, que assume contornos negativos ou de exclusão, assume indiscutível relevância o seu sentido positivo ou de inclusão, que se disseminou a partir da primeira metade do Século XX. Nesse período, o pensamento jurídico-político apercebeu-se que a simples igualdade perante a lei, sem discriminações atentatórias à dignidade humana, não seria apta, por si só, a estabelecer uma igualdade real. Em outras palavras, afirmar que o miserável é igual ao rico ou que, numa sociedade historicamente segregacionista, o negro, doravante, passaria a ser igual ao branco, não tem o condão de gerar qualquer benefício real para as pessoas que se encontrassem em situação de inferioridade. Significa, tão-somente, que, perante os olhos da lei, todos são iguais. Esse tipo de igualdade, no entanto, em nada influi sobre as forças sociais que traçam os contornos da realidade. Na conhecida crítica de Anatole France, “a lei proíbe tanto o rico, como o pobre, de viver debaixo das pontes, de pedir nas ruas e de roubar”.
A pura e simples inclusão, sob uma fórmula geral de igualdade, de grupos historicamente discriminados em decorrência de certos referenciais socioculturais, por si só, pode vir a refletir uma forma de discriminação. A partir dessa constatação, a doutrina norte-americana desenvolveu a “doutrina do impacto desproporcional” (“disparate impact doctrine”), construção teórica que busca demonstrar o impacto desproporcional que a norma geral pode ocasionar sobre certos grupos que não ostentam, de fato, uma posição de igualdade. A Suprema Corte encampou essa linha argumentativa no leading case Griggs vs. Duke Power Co.[31] A ação foi ajuizada por um grupo de pessoas negras em face da Duke Power Co., empresa de energia elétrica que historicamente somente admitia os negros para o desempenho de funções subalternas, sendo argüida a ilicitude do “teste de inteligência” utilizado como critério de promoção. Argumentavam os autores da ação que esse requisito aparentemente igualitário, ao exigir a aprovação numa prova escrita, ao invés da tradicional apresentação de certificados escolares, terminaria por perpetuar o status quo, já que os negros, por terem estudado em escolas segregadas, não poderiam competir em igualdade de condições com os brancos. Em sua decisão, reconheceu a Corte que o “teste de inteligência”, conquanto lícito, não se harmonizava com um referencial de igualdade material, pois, estatisticamente, não se mostrava apto a indicar a maior eficiência profissional para fins de promoção, podendo “’congelar’ o status quo de práticas empregatícias discriminatórias do passado.”
Desenvolveu-se, assim, o entendimento de que a igualdade, como parte integrante e indissociável do ideal de justiça, somente seria alcançada com a adoção de medidas efetivas, não meramente formais, que permitissem a sua efetiva implementação, não mera contemplação. Seria necessário transitar da igualdade formal para a igualdade material. O artificialismo da igualdade formal entra em refluxo, o dogma da neutralidade estatal é repensado e o pensamento jurídico-filosófico passa a ser direcionado à materialização da igualdade substancial, ontologicamente calcada na inserção social, e ao oferecimento de oportunidades para o livre desenvolvimento da personalidade. É com esse objetivo que surgem e se desenvolvem as denominadas ações afirmativas, fruto do pensamento político norte-americano e que buscam eliminar, ou ao menos diminuir, as desigualdades sociais que assolam certos grupos (v.g.: as mulheres e os afrodescendentes).
5 – A ratio das ações afirmativas e a Lei Maria da Penha
Situações de igualdade formal e de igualdade material estão normalmente articuladas com posições diametralmente opostas aos valores que apregoam. Numa sociedade capitalista, de contornos essencialmente liberais, em que a livre iniciativa e o sistema de mérito são levados a posições extremas, não será incomum constatarmos a presença, no plano jurídico, de uma igualdade formal, e, no plano fático, de uma flagrante desigualdade material. Iguais na lei, desiguais na realidade. Por outro lado, presente a preocupação com a igualdade material, será ela inevitavelmente acompanhada de uma desigualdade formal, já que a lei veiculará discriminações positivas com o objetivo de atenuar a real posição de inferioridade de certos grupos. Desiguais na lei, tendencialmente iguais na realidade. Fala-se em tendencialmente iguais na medida em que a lei, ainda que sistêmica e finalisticamente imbuída dos melhores propósitos, normalmente só terá êxito na atenuação das diferenças, não na sua total supressão.
Sobre o argumento de que as ações afirmativas terminariam por violar a cláusula de igual proteção (equal protection clause), observa Ronald Dworkin[32] que essa cláusula não assegura que cada cidadão receba igual benefício de cada decisão política, mas, apenas, que será tratado como um igual, com igual interesse e respeito no processo político de deliberação. Essa linha argumentativa, apesar de ter objetivos opostos, apresenta certa semelhança com a construção de Edmund Burke (1729-1797), que defendia o direito de todo homem a uma porção justa de tudo o que a sociedade, a partir da combinação de sua força e habilidade, podia fazer em seu favor, acrescendo que “nessa participação todos os homens têm iguais direitos, mas não a coisas iguais”[33]. Em decorrência disso, ainda segundo Burke, aqueles que contribuíssem mais deveriam receber mais: era a tônica do Estado Liberal.
Ao adotar uma política pública em benefício de um grupo específico, o Estado não promove qualquer afronta aos direitos dos demais membros da coletividade, isto porque não seria necessário disponibilizar-lhes aquilo que já possuíam ou estava ao seu alcance possuir. Violação à igualdade haveria se o mesmo benefício fosse oferecido aos que estão na posição 0 e na posição +1. À simplicidade dessa constatação, no entanto, contrapõe-se a premissa de que a atuação estatal é vocacionada à satisfação do bem-comum, e este nem sempre se confundirá com os interesses do grupo a que se atribuiu preeminência. A análise, assim, há de assumir proporções mais amplas, incursionando, igualmente, nos aspectos negativos da atuação estatal, mais especificamente nos efeitos que a priorização de uma dada política pública causará em relação aos interesses de outros grupos igualmente representativos. Em tempos de escassez, em que “escolhas trágicas” são uma constante, é necessário redobrado cuidado para que “ações afirmativas” não se transmudem em “ações negativas”.
A Lei nº 11.340/2006, como se constata pelo teor de sua ementa, “cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências”. São indicados, assim, (1) os objetivos, (2) os destinatários da proteção e (3) os fundamentos de justificação e de validade da lei.
Principiando pelos objetivos, observa-se a preocupação em criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar, providência salutar na medida em que contribui para a preservação da família, fator indispensável ao saudável desenvolvimento humano e à formação de um Estado forte e coeso. A primeira dificuldade, no entanto, reside na opção de manter adstrita às mulheres a proteção dispensada pela Lei nº 11.340/2006. Na medida em que a Constituição brasileira possui uma cláusula geral de igualdade de gênero[34] e a norma constitucional programática de coibição à violência doméstica não é direcionada exclusivamente à mulher,[35] questiona-se: a Lei nº 11.340/2006 é constitucional?
A resposta a essa proposição inicial é especialmente relevante ao constatarmos que raras são as vozes que se insurgem contra a inconstitucionalidade da lei em sua totalidade, mas, tanto na doutrina, como na jurisprudência, múltiplas são aquelas que, com fundamento na cláusula geral de igualdade de gênero, advogam a inconstitucionalidade de algumas normas que atribuem uma posição jurídica desfavorável ao homem que pratica, nas relações familiares e domésticas, um ilícito contra a mulher. Essa constatação, como se percebe, bem demonstra a fragilidade da tese. Afinal, se a igualdade de gênero veda seja dispensado tratamento desfavorável ao homem que pratique um ilícito contra a mulher, por identidade de razões, haveria de ser vedada a edificação de um diploma normativo integralmente voltado à proteção da mulher, como sói ser a Lei nº 11.340/2006. Essa linha argumentativa, no entanto, não encontra maior ressonância nos críticos pela singela razão de que a mulher, historicamente, é discriminada pelas leis e pela sociedade, isto em razão da posição hegemônica mantida pelo homem. Como desdobramento dessas premissas, é possível afirmar que a inconstitucionalidade, acaso sustentada, há de se abeberar em fontes outras que não a cláusula geral de igualdade.
Uma norma de conduta, qualquer que seja ela, não é um corpo estranho à realidade. Pelo contrário, a norma, lembrando a metódica concretista de Friedrich Müller,[36] é obtida a partir da interpretação do programa normativo (rectius: o texto) à luz do seu âmbito de aplicação (rectius: a realidade). A Lei nº 11.340/2006 é endereçada à mulher justamente por ser ela, como vítima principal e quase que exclusiva da violência doméstica (lembre-se que os idosos, bem como as crianças e os adolescentes, já contam com proteção específica), a destinatária da norma resultante da interpretação do parágrafo 8º do art. 226 da Constituição de 1988.
Além de não destoar da ordem constitucional em seus aspectos mais gerais, únicos analisados até aqui, a Lei nº 11.340/2006 busca concretizar os compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, mais especificamente na (1) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como Convenção de Belém do Pará, de 1994;[37] e na já mencionada (2) Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adotada em 1979 no âmbito da Organização das Nações Unidas. A última Convenção, como deflui de sua denominação, é essencialmente voltada à eliminação da discriminação contra a mulher, tanto no setor público, como no privado, ressaltando que “a adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma estabelecida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados” (art. 4º). A Convenção Interamericana, por sua vez, dispõe que os Estados-Partes devem empenhar-se em “tomar todas as medidas apropriadas, incluindo medidas de tipo legislativo, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes, ou para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência ou a tolerância da violência contra a mulher” (art. 7º, d). Essas convenções, como se percebe, demonstram uma efetiva preocupação com a alteração da realidade, não se contentando com a mera plasticidade formal de disposições normativas alegadamente igualitárias. A mulher deve ser igual ao homem e a violência praticada contra ela deve ser coibida, não apenas na lei, mas na realidade.
6. As ações afirmativas adotadas pela Lei Maria da Penha
Principiando pela juridicidade das ações afirmativas, a primeira dificuldade reside em individualizar os grupos destinatários dessas discriminações positivas, o que exige reflexões em torno do contexto social e das razões históricas que contribuíram para a sua formação. Escolhas equivocadas, privilegiando aqueles que não deveriam ser privilegiados, podem redundar numa instabilidade social, deflagrando e institucionalizando desigualdades, não combatendo-as. Fatores econômicos e raciais são constantemente invocados, sendo reflexo da própria movimentação das forças sociais.
As ações afirmativas fazem que a igualdade inata, presente pela só condição de ser humano, ceda lugar a uma igualdade construída, de modo a assegurar a sua materialização na realidade e a concretização de certos padrões de justiça material. Esses padrões, por sua vez, refletem os valores comuns à ordem constitucional, que direcionam qualquer processo de normatização ou de execução normativa. É o caso dos incisos I e III do art. 3º da Constituição de 1988, que dispõem serem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, bem como “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Esses preceitos podem ser considerados o epicentro axiológico de qualquer ação afirmativa promovida em território brasileiro, direcionando a adoção de políticas públicas aptas à consecução dos objetivos neles referidos. Especificamente em relação à mulher, tem-se uma sistemática constitucional sensível à sua histórica situação de dependência e subordinação, justificando os tratamentos diferenciados que ela diretamente contemplou e permitindo que o legislador infraconstitucional venha a ampliá-los, sempre pautado pela base axiológica que dá sustentação às medidas de proteção e inserção da mulher.
Individualizados os destinatários e o objetivo fundamental, devem ser escolhidos os instrumentos a serem utilizados para alcançá-lo. As discriminações positivas refletem a essência das ações afirmativas, que apresentam natureza e objetivos extremamente variáveis. Podem assumir natureza legislativa ou administrativa e normalmente têm por objetivo assegurar (1) a igualdade de oportunidades, permitindo que certos grupos tenham plena possibilidade de desenvolver suas aptidões (v.g.: reserva de vagas em universidades), (2) a concessão de prestações sociais mínimas e indispensáveis à preservação da dignidade humana (v.g.: saúde e educação básica) ou (3) a concessão, ampla e irrestrita, de forma igualitária, de todas as prestações sociais necessárias ao indivíduo (v.g.: direitos sociais nos antigos regimes socialistas). São exemplos corriqueiros a garantia de acesso a serviços e a bens considerados essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade ou à própria sobrevivência (v.g.: ingresso no ensino superior, programas assistenciais de distribuição de recursos e alimentos etc.). A medida dessas prestações, em regra, oscilará entre prestações mínimas, indispensáveis à existência digna, e prestações voltadas ao nivelamento social, de modo a igualar os membros da coletividade. Essa última possibilidade, no entanto, apresenta um acentuado colorido teórico, pois destoa de qualquer sistema baseado no livre desenvolvimento e no mérito pessoal, isto sem olvidar a notória escassez de recursos.
No direito brasileiro, são múltiplas as iniciativas voltadas à construção da igualdade material, sendo normalmente utilizados, como critérios de individualização dos destinatários, (1) a cor, (2) o sexo, (3) a deficiência física e (4) a deficiência econômica. Podem ser mencionados, no plano federal: a) o programa diversidade na universidade, que dispõe sobre a concessão de incentivos a organizações não-governamentais voltadas à preparação de jovens carentes para o vestibular (Lei nº 10.558/2002); b) o programa universidade para todos, que trata da concessão de bolsas de estudos no ensino superior (Lei nº 11.096/2005); c) a reserva de vagas aos portadores de deficiência nos concursos públicos (CR/1988, art. 37, VIII; e Lei nº 8.112/1990, art. 5º, § 2º); e d) a reserva de vagas a candidatas do sexo feminino nas eleições (Lei nº 9.504/1997, art. 10, § 3º).[38]
Centrando nossa análise na Lei nº 11.340/2006, é possível visualizar a utilização de quatro ordens de medidas, que são as de (1) inserção, (2) prevenção, (3) proteção e (4) coibição.
As medidas de inserção, que, além de não constituírem o principal objetivo da lei, assumem contornos essencialmente programáticos, estando condicionadas à adoção de políticas públicas específicas, buscam assegurar oportunidades e facilidades à mulher, com a correlata garantia de direitos essenciais a uma vida digna.[39]
As medidas de prevenção variam desde a integração operacional dos órgãos governamentais que atuam nos casos de violência doméstica (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Polícia Judiciária etc.), passando pela adoção de medidas que permitam monitorar a intensidade e freqüência com que os ilícitos são praticados (v.g.: com a realização de estudos estatísticos), até alcançar as providências voltadas à formação de uma nova identidade sociocultural para o povo brasileiro, com o efetivo respeito pela mulher.[40]
No âmbito das medidas de proteção, tem-se (1) aquelas especificamente direcionadas à esfera jurídica da mulher, vítima da violência doméstica, que deve receber todo o auxílio necessário à garantia de sua integridade física e mental, sendo-lhe assegurado, quando necessário, proteção policial, e, dentre outros, o direito de ser acompanhada para a retirada dos seus pertences do local da ocorrência;[41] e (2) aquelas direcionadas à esfera jurídica do ofensor, isto com o objetivo de assegurar a proteção da ofendida, podendo assumir múltiplas formas, como o afastamento do lar e a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, medida drástica e que deve ser aplicada com muita cautela, isto em razão do seu potencial de desintegração da família.[42]
Por último, temos as medidas de coibição, sendo enquadradas sob essa epígrafe aquelas que não ostentam cunho propriamente cautelar (v.g.: afastamento do lar) e que estão direta ou indiretamente relacionadas à punição do infrator pelo ilícito que praticou. Essas medidas têm sido objeto de alguma polêmica em relação à sua constitucionalidade, em especial aquelas contempladas nos arts. 17, 33, parágrafo único e 41 da Lei nº 11.340/2006. Eis o seu inteiro teor:
“Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.
Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, observadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada pela legislação processual pertinente.
Parágrafo único. Será garantido o direito de preferência, nas varas criminais, para o processo e o julgamento das causas referidas no caput.
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”.
Á luz desses preceitos, constata-se uma evidente preocupação com a celeridade dos processos relativos à violência doméstica e a não incidência de algumas medidas despenalizadoras, em especial daquelas contempladas na Lei nº 9.099/1995, como a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89). Aqueles que apregoam a inconstitucionalidade desses preceitos argumentam com a violação à cláusula geral de igualdade na medida em que a mesma infração penal, pelo só fato de ter sido praticada contra a mulher, sujeitaria o agente a conseqüências jurídicas mais severas.[43] Trata-se, no entanto, de argumento superficial, que “ao mais leve sopro se espalha e desvanece”, isto para lembrarmos as belas palavras de Raul Pompéia no monumental “O Ateneu”.
Inicialmente, observa-se que o estabelecimento de penalidades mais severas em razão da especial qualidade da vítima não é algo novo no direito brasileiro. Nesse sentido, nosso Código Penal, em sua versão original, de 1940, já previa, como circunstâncias agravantes, a prática de crime contra “ascendente, descendente, irmão ou cônjuge”, bem como contra “criança, velho ou enfermo” (art. 44, II, f e i). No primeiro caso, argumentava Aníbal Bruno,[44] a agravante decorria da “grave manifestação de insensibilidade moral dada pelo agente”; no segundo, da “covardia e impiedade do autor, que agiu sem atenção à situação pessoal da vítima”. Roberto Lyra,[45] por sua vez, realçava que a qualidade das vítimas refletia, em relação ao autor, “manifestações negativas da personalidade”. A técnica, que já ornava o Código Criminal de 1890, foi preservada na nova Parte Geral, em vigor desde 1984 (art. 61, II, e e h). Embora atentos ao risco de nos alongarmos em questões de inegável obviedade, não devemos esquecer que a qualidade da vítima também tem sido considerada para a configuração de crime específico ou como causa especial de aumento de pena, como ocorre, de longa data, com os crimes praticados contra criança (art. 121, § 4º, parte final, e 129, § 7º, ambos do Código Penal) e, por força da Lei nº 11.340/2006 (art. 44), também em decorrência da violência doméstica (art. 129, § 9º, do Código Penal). Ao que sabemos, a inconstitucionalidade desses preceitos nunca foi suscitada ou, se foi, não auferiu maior publicidade.
Do mesmo modo que a pena cominada pode ser exasperada, não vislumbramos qualquer óbice a que o legislador, lastreado em motivos harmônicos com a realidade e o sistema social, venha a restringir a aplicação de certos institutos processuais de modo a agravar a situação jurídica daqueles que pratiquem crimes contra pessoas que se encontrem em evidente situação de fragilidade no contexto social.
A violência doméstica praticada contra a mulher é fato que não pode ser desconsiderado e, muito menos, ignorado. Fruto de uma sociedade desenvolvida sobre alicerces patriarcais, a sua situação de inferioridade (fática), ainda presente em muitos rincões do nosso País, é justificativa não só plausível, como suficiente à defesa da legitimidade da técnica legislativa adotada. Ressalte-se, no entanto, que o tratamento diferenciado por razões de gênero somente deve ser admitido naqueles casos em que encontre ressonância em situações de discriminação pré-existentes, não como mola propulsora dessas discriminações. A Suprema Corte norte-americana, por exemplo, no caso Mississippi University for Women vs. Hogan,[46] reconheceu a inconstitucionalidade da política de admissão de alunos praticada por Faculdade de Enfermagem, à época beneficiada por subsídios financeiros de origem pública, por só permitir o acesso de mulheres; isto porque a discriminação não buscava atender nenhum “importante objetivo governamental”.
Considerando que as ações afirmativas têm por objetivo reduzir ou suprimir as desigualdades sociais e regionais, que se manifestam entre pessoas do mesmo âmbito social ou entre sociedades de distintas regiões do País, é intuitivo que cessarão ou serão paulatinamente reduzidas tão logo as desigualdades sejam eliminadas ou atenuadas. Ressalvadas as hipóteses em que alicerçadas em situações de inferioridade inerentes à própria espécie humana, invariáveis e imutáveis, como se verifica com a fragilidade de crianças e idosos, as ações afirmativas sempre serão temporárias; isto sob pena de se inaugurar um novo quadro de desigualdade, com atores diversos, tão logo cesse a desigualdade que, de início, se buscava combater. Daí a relevância dos estudos e dados estatísticos referidos na Lei nº 11.340/2006, permitindo seja acompanhada a situação da mulher enquanto vítima de violência doméstica, o que pode justificar, ou não, a manutenção da sistemática inaugurada por esse diploma legal.
Epílogo
O delineamento da igualdade passa pela (1) definição da igualdade formal do modo mais amplo possível, (2) contenção da discriminação, punindo-se as iniciativas que atentem contra a igualdade formal e (3) construção da igualdade material. Especificamente em relação à situação da mulher enquanto vítima da violência doméstica, a reversão desse quadro somente será alcançada com a alteração dos padrões histórico-culturais há muito sedimentados na sociedade brasileira, o que exigirá a implementação de políticas públicas voltadas ao esclarecimento e à formação das novas gerações. O grande desafio é evitar que a constatação de German Proverb, ao afirmar que “a única igualdade real está no cemitério”, assuma ares de sacralidade e tenha sua imutabilidade reconhecida, terminando por manter a mulher na triste condição de estereótipo da violência doméstica.
* texto elaborado em dezembro de 2008
Notas:
[1] O Pacto de Paris, conhecido como Briand-Kellog, de 27 de agosto de 1928, condenou o recurso à guerra para a solução dos conflitos internacionais e vedou a sua utilização como instrumento de política nacional.
[2] Apesar de a Carta das Nações Unidas (art. 73), de 1945, preconizar a descolonização, dispondo que as metrópoles deveriam promover o governo próprio e o desenvolvimento de instituições políticas livres nas colônias, a inexistência de mecanismos de controle e coerção em muito contribuíram para a sua inefetividade, isto sem olvidar a situação daqueles países que, como Portugal e Espanha, sequer haviam aderido à ONU, o que só veio a ocorrer em 1955. Esse quadro somente foi alterado a partir de 1960, quando a União Soviética aderiu vigorosamente à causa da descolonização, com o que buscava auferir a simpatia de alguns Estados e alterar a polarização pró-ocidente que marcava as assembléias da ONU. Em 1961, foi aprovada a Resolução nº 1.514, que veiculou a Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais, com 89 votos a favor, nenhum contra e 9 abstenções (Austrália, Bélgica, Espanha, EUA, França, Portugal, República Dominicana, Reino Unido e União Sul-Africana), indicativo de uma posição nitidamente anti-colonial da ONU. Pouco depois, foi criada uma Comissão para acompanhar o cumprimento da Declaração, o que motivou sucessivas denúncias à Assembléia Geral da ONU, aumentando a pressão pela descolonização. Na década de setenta do Século XX, as grandes questões ainda pendentes refletiam-se na situação dos territórios ultramarinos portugueses, da Rodésia (a independência declarada pelo governo de minoria branca em 1965 não fora reconhecida pela ONU e somente em 1980 um novo governo escolhido por eleições gerais assumiu o poder, fundando a República do Zimbabwe) e da Namíbia (então denominada “Sudoeste Africano”, fora colônia alemã até o fim da I Guerra Mundial e posteriormente administrada, em regime de tutela, pela África do Sul, somente teve sua independência declarada em 1990). Cf. MOTA DE CAMPOS, João et alli. Organizações Internacionais, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 296-304.
[3] Sobre os poderes do Presidente norte-americano na guerra contra o terrorismo, vide CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional Law, Principles and Policies, 3ª ed., New York: Aspen, 2006, p. 376/385.
[4] OTERO, Paulo. Instituições Políticas e Constitucionais, vol. I, Coimbra: Edições Almedina, 2007, p. 255.
[5] Cf. SIEYÈS, Abade. Exposição Refletida dos Direitos do Homem e do Cidadão (Préliminaire de La Constitution. Reconnaissance et Exposition Raisonnée des Droits de l’Homme et du Citoyen), trad. de Emerson Garcia, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 69.
[6] No Caso Dread Scott vs. Sandford (60 U.S. 393, 1857), a Suprema Corte entendeu que os americanos descendentes de africanos, quer escravos, quer livres, não poderiam ser considerados cidadãos dos Estados Unidos, tendo julgado inconstitucional o Missouri Compromise Act, de 1820, por entender que teriam sido violados os direitos dos senhores de escravos sem o devido processo legal. Anota Peter Irons que nenhum litigante individual na história constitucional da América teve fama semelhante à de Dread Scott, tamanha a importância dos interesses que foram apreciados no julgamento de seu caso (A People’s History of the Supreme Court, New York: Penguin Books, 2000, p. 157). Para mencionar apenas um, basta dizer que a decisão da Suprema Corte foi decisiva para a deflagração da guerra de secessão, pois era manifestamente favorável à postura escravagista mantida pelos Estados do sul. Em sua gênese, o caso está vinculado à solicitação do Território do Missouri, ao Congresso dos Estados Unidos, para que fosse admitido como Estado da Federação, do que resultou o Missouri Compromise Act, segundo o qual estaria para todo o sempre abolida a escravidão e a servidão involuntária, salvo na punição de crime pelo qual a parte tenha sido regularmente condenada, em todo o território denominado Louisiana, “excetuando a parte que é incluída nos limites do estado contemplado por esta Lei”. Assim, tinha-se a abolição da escravidão em toda a Louisiana, com exceção do Missouri. O processo propriamente dito teve início em 1846, tendo o escravo negro Dread Scott proposto uma ação em face da viúva de seu antigo senhor sob o argumento de que havia sido levado por seu amo (Dr. John Emerson), um cirurgião militar, do Missouri, Estado escravagista, para Fort Armstrong, situado em Illinois (1834) e, posteriormente, para Fort Snelling, localizado em Wiscosin (1836), sendo os negros livres em ambos os territórios. Ulteriormente, e desta feita com a família que constituíra, Dread Scott foi trazido de volta para o Estado do Missouri, tendo retomado a condição de escravo. Entendendo ser ilegítimo o seu retorno à servilidade, sustentou que ao ingressar em Illinois, território livre por força do Missouri Compromisse Act, adquirira a liberdade, que não mais lhe poderia ser retirada (“once free, always free”). Não obstante a decisão favorável em primeira instância, a Suprema Corte Estadual, em grau de apelação, terminou por entender que Dread Scott retomara o seu primitivo estado servil. A questão, posteriormente, foi renovada, agora perante a Justiça Federal (Circuit) e com o Sr. John A. Sandford no pólo passivo (a antiga viúva de seu amo passou a compactuar com a causa abolicionista e forjou a venda do escravo ao Sr. Sandford para que a questão pudesse voltar a ser discutida). O caso finalmente foi julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 6 de março de 1857, restando decidido que: a) os escravos negros não eram cidadãos americanos, não tendo direitos a serem protegidos; b) deveria ser observada, pela Suprema Corte, a lei do Estado do Missouri que considerava o demandante um escravo; e c) o mais importante, que o Missouri Compromisse Act excedia o poder do Congresso ao abolir a escravidão nos territórios, pois a Constituição não outorgara a este poderes para intervir no direito de propriedade dos senhores dos escravos, que haviam sido privados de sua propriedade sem o due process of law. Em 1868, a Décima Quarta Emenda alterou o entendimento fixado pelo Tribunal. Para uma visão mais ampla da posição do Supremo Tribunal norte-americano em questões raciais e de seu impacto no meio social, vide: Prigg vs. Pennsylvania (41, U.S.The Civil Rights Cases (109 U.S. 3, 1883), City of Richmond vs. J. A. Croson Co. (488 U.S.Shaw vs. Reno (509 U.S. 630, 1995). 539, 1842), 469, 1989) e
[7] Em Brown vs. Board of Education (344 U.S. 1, 1952), a Suprema Corte decidiu pela inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas públicas, política moralmente reprovável e que privava a sociedade do talento em potencial dos membros das minorias raciais. Essa decisão, de 1952, louvável sobre todos os aspectos, invocou o disposto na Seção 1 da Décima Quarta Emenda, de 1868, que dispunha sobre privilégios e imunidades, devido processo legal e igual proteção das leis, princípios de indiscutível relevância, mas que, até então, não haviam sido interpretados por nenhum Tribunal de modo a obstar a segregação racial.
[8] A Sra. Maria da Penha Maia Fernandes, biofarmacêutica cearense, foi vítima, em 1983, de duas tentativas de homicídio praticadas por seu marido, Marco Antonio Herredia Viveros, tendo ficado paraplégica na primeira delas. Face à injustificada demora do Estado brasileiro em solucionar o caso (Viveros somente foi preso em 2002), foi provocada a manifestação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, que o acolheu.
[9] Of the Law of Nature and Nations, 2ª ed., Oxford: L. Litchfield, 1710, pp. 174 e ss..
[10] A República, trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. 9ª ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 220.
[11] Cf. SOARES, Barbara Musumeci. Mulheres Invisíveis. Violência Conjugal e Novas Políticas de Segurança, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 25.
[12] O Caso versava sobre mulher alemã casada com iraquiano e que, no curso do matrimônio, obtivera a nacionalidade alemã. Com a morte do marido, a viúva pretendeu fosse considerada herdeira em concurso com o filho. O órgão competente pela expedição do certificado de herdeiro foi instado, pela viúva, a reconhecer não só a sua parte da herança (1/4), como também uma outra parte (também 1/4) a título de liquidação da sociedade conjugal. O pedido foi negado sob o argumento de que, para o direito islâmico vigente no Iraque, o matrimônio não tinha nenhuma influência sobre os bens dos cônjuges, o que, no caso, exigiria a utilização de um regime jurídico de bens correspondente ao da separação no direito alemão: afinal, esse tipo de relação patrimonial, de acordo com o art. 15 do EGBGB, determinava a aplicação da lei do marido ao tempo da celebração do matrimônio.
[13] Art. 18: “I rapporti personali tra coniugi di diversa cittadinanza sono regolati dall'ultima legge nazionale che sia stata loro comune durante il matrimonio o, in mancanza di essa, dalla legge nazionale del marito al tempo della celebrazione del matrimonio”.
[14] Art. 19, § 1º: “I rapporti patrimoniali tra coniugi sono regolati dalla legge nazionale del marito al tempo della celebrazione del matrimonio.”
[15] Art. 20, § 1º: “I rapporti tra genitori e figli sono regolati dalla legge nazionale del padre, ovvero da quella della madre se soltanto la maternità è accertata o se soltanto la madre ha legittimato il figlio”.
[16] Rel. Corasaniti, j. em 26/02/1987, GU de 11/03/1987.
[17] Art. 29, § 2º, da Constituição italiana de 1947.
[18] Art. 3º, § 1º, da Constituição italiana de 1947.
[19] Rel. Corasaniti, j. em 25/11/1987, GU de 16/12/1987.
[20] A designação atual resultou da Resolução no 548 (VI), da Assembléia Geral, que deliberou pela substituição da anterior – Declaração Universal dos Direitos do Homem - em todas as publicações das Nações Unidas.
[21] Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 111, de 24/09/1937, e promulgada pelo Decreto nº 2.411, de 23/02/1938.
[22] Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 32, de 20/09/1949, e promulgada pelo Decreto nº 28.011, de 19/04/1950.
[23] Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 74, de 19/12/1951, e promulgada pelo Decreto nº 31.643, de 23/10/1952.
[24] Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 93, de 14/11/1983, que estabeleceu reservas aos arts. 15, § 4º e 16, § 1º, a, c, g e h, reservas estas posteriormente afastadas pelo Decreto Legislativo nº 26, de 22/06/1994.
[25] Aprovado, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 107, de 06/06/2002, e promulgado pelo Decreto nº 4.316, de 30/07/2002.
[26] TRIBE, Lawrence H.. Constitutional Choices, Massachussets: Harvard University Press, 1985, p. 267.
[27] Cf. DI RUFFIA, Paolo Biscaretti. Diritto Costituzionale, 15ª ed., Napoli: Jovene Editore, 1992, p. 03/04.
[28] O mandamento geral de igualdade também for a contemplado pelas Constituições de 1824 (art. 179, XIII), 1891 (art. 72, § 2º), 1934 (art. 113, 1, 1ª parte), 1937 (art. 122, 1º), 1946 (141, § 1º) e 1967 (art. 150, § 1º), bem como pela Emenda Constitucional nº 1/1969 (art. 153, § 1º).
[29] As Constituições de 1934 (art. 113, 1) e 1967 (art. 150, § 1º), bem como a Emenda Constitucional nº 1/1969 (art. 153, § 1º), além da cláusula geral de igualdade, vedavam a existência de privilégios ou distinções em razão do sexo.
[30] Cf. JAYAWICKRAMA, Nihal. The Judicial Application of Human Rights Law. National, Regional and International Jurisprudence, Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 604.
[31] 401 U.S. 424, 1971.
[32] Affirmative Action: Is it Fair?, in Sovereign Virtue, The Theory and Practice of Equality, 4ª imp., Cambridge: Harvard University Press, 2002, p. 411.
[33] Reflexiones sobre la Revolución francesa (1790), in Textos Políticos, 1ª ed., 2ª imp., México: Fondo de Cultura Econômica, 1996, p. 92.
[34] CR/1988, art. 5º, I: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
[35] CR/1988, art. 226, § 8º: “O Estado assegurará a assistência na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
[36] Discours de la Méthode Juridique (Juristische Methodik), trad. de Olivier Jouanjan, Paris: Presses Universitaires de France, 1996, p. 186 e ss..
[37] Aprovada, no Brasil, pelo Decreto Legislativo nº 107, de 31/08/1995, e promulgada pelo Decreto nº 1.973, de 1º/10/1996.
[38] No direito francês, deve ser mencionada a alteração dos arts. 3º e 4º da Constituição de 1958, promovida pela revisão de 08/07/1999, destinada a permitir a existência de cotas, de acordo com o sexo, para as candidaturas às eleições políticas. Com isto, contornou-se a decisão do Conselho Constitucional, de 18/11/1982, que entendeu inconstitucional norma que consagrava cotas dessa natureza para a composição das listas eleitorais (Decisão nº 82-146, Recueil, p. 66, RJC, p. I-134, JO de 19/11/1982, p. 3475). Cf. Jean-Pierre Camby, Supra-constitutionnalité: la fin d’un mythe, in RDPSP nº 3, Maio-Junho/2003, p. 671 (685).
[39] Lei nº 11.340/2006, arts. 2º e 3º.
[40] Lei nº 11.340/2006, arts. 8º e 38.
[41] Lei nº 11.340/2006, arts. 11, 15, 18 a 21, 23 e 24.
[42] Lei nº 11.340/2006, art. 22: “Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003; II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.”
[43] Em prol da constitucionalidade, podem ser mencionadas as posições de BASTOS, Marcelo Lessa. Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – Lei “Maria da Penha” – Alguns Comentários, in GRANDINETTI, Luiz Gustavo. Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, org. por MELLO, Adriana Ramos de., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, pp. 172/173. É importante frisar que a situação aqui analisada em nada se confunde com aquela gerada pela 10.259/2001. Em outras palavras, até a edição da Lei nº 11.313/2006, havia previsão formal de que somente seriam de competência dos Juizados Especiais Criminais aquelas infrações penais cuja a pena máxima não superasse 1 (um) ano. Com o advento da Lei nº 10.259/2001, que instituiu os Juizados Especiais no âmbito da Justiça Federal, foi alterado o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, passando a serem enquadradas sob tal epígrafe aquelas cuja pena máxima não fosse superior a dois anos de prisão, independentemente da natureza do rito processual a ser seguido na persecução penal, ou multa. Em que pese à existência de preceito expresso vedando a incidência da Lei nº 10.259/2001 na seara estadual (art. 20), era inconcebível que uma infração fosse, ou não, de menor potencial ofensivo, não em virtude de suas características intrínsecas, mas em razão do órgão jurisdicional que iria julgá-la. Tal restrição, além de irrazoável, importaria em flagrante afronta ao princípio da isonomia, já que o elastecimento do conceito deveria permitir a incidência das medidas despenalizadoras sobre aqueles que estavam em idêntica situação jurídica. Sendo idêntica a norma incriminadora em que se subsumiam as condutas, idênticas haveriam de ser as reprimendas ou os benefícios, ressalvando-se, unicamente, as peculiaridades de ordem pessoal inerentes aos sujeitos ativos. FREITAS, André Guilherme Tavares de. Estudos sobre as Novas Leis de Violência Doméstica contra a Mulher e de Tóxicos (Lei 11.340/06 e 11.343/06), Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 125 (131/132); DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 107/108; PRADO, Geraldo. Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, org. por MELLO, Adriana Ramos de., Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, pp. 87/89. Sustentando a inconstitucionalidade do art. 41 da Lei nº 11.340/2006: TJMG , 1ª Câmara Criminal, Apelação nº 1.0672.07.244893-5/001(1), rel. Des. Judimar Biber, DJ de 14/08/2007; e
[44] Comentários ao Código Penal, vol. II, Rio de Janeiro: Forense, 1969, p. 113.
[45] Comentários ao Código Penal, vol. II, 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 303.
[46] 458 U.S. 718, 1982.
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Consultor Jurídico da Procuradoria Geral de Justiça (2005-2009). Assessor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP). Doutorando e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia - Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa. Membro da International Association of Prosecutors (The Hague - Holanda)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Emerson. Proteção e Inserção da Mulher no Estado de Direito: A Lei Maria da Penha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 out 2009, 10:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/18445/protecao-e-insercao-da-mulher-no-estado-de-direito-a-lei-maria-da-penha. Acesso em: 22 nov 2024.
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