Palavras-chaves: maconha, auto-lesão, legislação.
1. INTRODUÇÃO
No Brasil, por uma postura municipal, datada de 4 de outubro de 1830, a Câmara do Rio de Janeiro proibiu a venda e o uso da maconha, bem como a conservação em casas públicas: os contraventores seriam multados, os vendedores em 20.000 réis e os escravos e demais consumidores, em 3 dias de cadeia.
Em 1940 entra em vigência um novo Código Penal e em seu artigo 281 é mantida a diferença entre a conduta de traficar e a de consumir. A partir do golpe militar de 1964, há uma ruptura na tradição jurídica brasileira sobre as drogas, com um controle social mais rígido. O artigo 281 do Código Penal é revogado pelo decreto lei 385 e o usuário é equiparado ao traficante, recebendo penas idênticas.
Em 1961, uma convenção da ONU determinou que as drogas são ruins para a saúde e o bem estar da humanidade e, portanto, eram necessárias ações coordenadas e universais para reprimir seu uso.
Maconha (Cannabis Sativa): esta planta é ilegal. Não pode ser cultivada nem colhida. Ainda que cresça na natureza deve ser destruída.
2. A AUTO-LESÃO NO USUÁRIO DA MACONHA
A auto-lesão versa sobre um assunto complexo e não muito discutido no âmbito do Direito Penal, por não estar tipificado como crime no Código Penal Brasileiro.
A auto-lesão se dá quando o agente pratica a lesão contra si mesmo, atentando em desfavor de seu corpo ou sua vida. Assim, ameaça, de forma direta, somente a ele próprio.
A respeito disso, comenta o filósofo John Stuart Mill: “A respeito de si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano”.
Primeiramente deve ser lembrado que o Código Penal Brasileiro não pune a auto-lesão e a Constituição Federal garante a liberdade individual no seu artigo 5º, inciso X:
São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Então, de acordo com o Código Penal que não pune a auto-lesão e a Constituição Federal que garante a privacidade, seria inconstitucional o crime previsto no artigo 16 da lei 6.368/76, por estar o uso da maconha dentro da esfera da liberdade individual.
Essa liberdade individual implica que cada um faz o que quer consigo mesmo, sendo que, ninguém tem o direito de dizer o que cada pessoa faz com o próprio corpo.
Além do Código Penal Brasileiro não punir a auto-lesão, a legislação antitóxicos não pune o vício, e sim o porte de drogas para o fim de uso próprio, demonstrado no artigo 16 da lei 6.368/7:
Adquirir, guardar ou trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Diante disso afirma o professor de Direito Vicente Greco Filho: “A lei não pune o vício em si mesmo, porque não tipifica a conduta de “usar”.
Portanto, poderia ser dito que a conduta de usar a maconha, que implica no vício, não é punida, o que é tipificado como crime é a conduta do indivíduo de portar a Cannabis Sativa consigo, mesmo que para uso próprio.
Dessa forma afirma Odone Sanguiné, no artigo: É inconstitucional a incriminação do porte de tóxicos para uso pessoal? Do livro Fascículos de Ciências Penais:
Se a pessoa resolve assumir o risco de sua saúde, não apenas com os tóxicos, mas com uma série de atividades humanas que implicam em um fato danoso a sua pessoa, sua liberdade deve manter-se. O Estado deve direcionar sua atividade preventiva-repressiva não contra o consumidor senão que mediante a apreensão de drogas e através do combate aos produtores e traficantes.
A auto-lesão no usuário pode ser comparada com a causada pelo suicida. A pessoa que tenta se suicidar não é punida por essa tentativa, que constitui auto-lesão, uma vez que, como já foi dito, o Código Penal Brasileiro não a pune.
Nesse sentido, continua Odone Sanguiné:
O sistema penal brasileiro não pune a tentativa de suicídio. Portanto, não é lícito ao Estado, dentro do sistema de liberdade individual, punir o usuário.
Mas, o que entra em contradição com tudo o que foi explanado acima e demonstra a constitucionalidade da punição ao usuário de Cannabis Sativa, é simplesmente o fato de que, neste caso, a liberdade individual entra em oposição ao interesse coletivo em proteger a saúde pública.
A saúde pública e o interesse individual são bens jurídicos tutelados pela Constituição Federal, porém o uso da droga, mesmo que para uso próprio, representa perigo à aquela, com isso deve prevalecer a proteção à segurança da coletividade, pelo menos essa é a orientação jurisprudencial do desembargador relator Dante Busana do Tribunal de justiça de São Paulo:
O direito a intimidade não pode ser oponível ao interesse em proteger a saúde pública, que é o bem jurídico tutelado pela norma em debate. A dependência física ou psíquica, ainda que para uso próprio, representa perigo para a saúde pública, que o legislador ordinário pode apenar sem ferir o right of privacy.
Outro ponto que deve ser colocado é que o direito individual é suplantado pelo coletivo, porque o simples uso da droga acarreta um custo social. Segundo afirma o jurista Walter Maierovitch:
O direito coletivo suplanta o individual. Todo mundo tem direito à propriedade, mas se o Estado quer abrir uma avenida onde está sua casa, você vai ter que se mudar.
Além disso, o artigo 5º, inciso X, que protege a intimidade não tem por fim abranger casos em que pessoas estejam praticando crimes previstos na legislação antitóxicos, isso de acordo com orientação jurisprudencial do desembargador relator Gentil Leite do Tribunal de Justiça de São Paulo:
Inexistência de confronto entre as normas da Lei Maior e da Lei antitóxicos - Dispositivo constitucional que, ao proteger a intimidade não teve a finalidade de abranger casos em que pessoas estejam cometendo delitos previstos na legislação em vigor. Diz ele respeito à defesa do homem contra a invasão de sua vida íntima, isto é, à garantia oferecida ao individuo de que não será violada sua privacidade.
Então, a razão principal que justifica o usuário de maconha receber sanção penal, mesmo que este provoque a auto-lesão, não tipificada como crime no Código Penal, é que o uso da droga, interesse individual, acarreta indiretamente um mal a saúde pública, interesse coletivo, e aquele é suplantado por este, como demonstrado nas orientações jurisprudenciais.
3. Legislação
3.2. Lei nº 10.409/02
A nova legislação antitóxicos, Lei nº 10.409 de 11 de janeiro de 2002, derrogou a 6.368/76, que ainda está parcialmente em vigor naquilo em que não se choca com a novatio legis.
Sobre o veto do artigo 59 da Lei 10.409/02, que revogaria no seu total a lei 6.368/76, afirma o professor Vicente Greco Filho:
Coerentemente, o Pode Executivo vetou o artigo 59 do projeto que disporia sobre a revogação da Lei nº 6.368/76. Isso quer dizer que esse diploma continua em vigor no que não for incompatível com a nova lei.
A lei 10.409/02 dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica.
Esta lei contém 59 artigos e está dividida em oito capítulos: Das Disposições gerais; Da prevenção, Da Erradicação e Do Tratamento; Dos Crimes e Das Penas (vetado); Do Procedimento Penal; Dos Efeitos da Sentença; Das cooperações Internacionais (vetado) e Disposições Finais.
A nova Lei tinha, como um dos principais objetivos, igualar o Brasil a outras legislações, como exemplo a de Portugal, que faz a separação entre o traficante e o usuário ou dependente de drogas. Diante disso afirma o Defensor Público da União e professor Sérgio Habib:
A novatio legis buscava despenalizar e desprizionalizar o uso e consumo de drogas, desde que o portador fosse encontrado com pequena quantidade de substância tóxica, de acordo com o artigo 20 da Lei nº 10.409/02:
Adquirir, guardar, ter em depósito, transportar, ou trazer consigo, para consumo pessoal, em pequena quantidade, a ser definida pelo perito, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamenta.
Penas e medidas aplicáveis: as previstas no artigo 21.
De acordo com Ségio Habib, a nova lei iria acabar com a possibilidade de se lavrar auto de prisão em flagrante para o usuário:
A nova Lei dispensou ainda tratamento mais benigno ao portador de substância tóxica para o uso próprio, recomendando a desprisionalização ou seja, determinando que o usuário encontrado com pequena quantidade de substância ou droga ilícita, ou que cause dependência física ou psíquica, fosse conduzido à presença de autoridade policial apenas para que fossem tomadas as suas declarações, devendo ser posto em liberdade logo em seguida, asseverando, como forma de advertência, que a não liberação imediata do usuário portador de drogas naquelas condições constituiria falta disciplinar em que poderia incorrer a autoridade policial.
Com isso, a novatio legis acabava de vez com a possibilidade de lavratura de auto de prisão em flagrante para o usuário ou portador de pequena quantidade de drogas. Pelo menos era esse o sentido do artigo 36 que foi vetado.
Mas o Presidente da República vetou totalmente o capítulo III, Dos crimes e das penas, conseqüentemente foram vetados os artigos 14 ao 26, continuando em vigor, então, os artigos 12 e seguintes da Lei 6.368/76 que definem os delitos e as respectivas sanções penais. Dessa forma ficou complicado o tratamento da matéria, uma vez que passou a ser regida simultaneamente por dois diplomas legais.
O veto do capítulo III deve-se a intenção do legislador que ao tentar conferir tratamento diferenciado ao consumidor de drogas, incorre em vício de inconstitucionalidade no artigo 21, que versa sobre as penas e medidas aplicáveis ao artigo 19 e 20, contaminando a íntegra de vários outros artigos do capítulo em questão.
O projeto deixou de fixar normas precisas quanto a limites e condições das penas cominadas. Diferentemente do que ocorre nos casos de conversão de penas restritivas de liberdade em restritivas de direitos e vice-versa, o projeto não contém limites temporais expressos que atendam aos princípios constitucionais.
A inconstitucionalidade apontada contamina os artigos 19 e 20, na medida em que estes descrevem tipos penais cujas penas são as presentes no artigo 21.
Contudo, para Sérgio Habib, a causa do veto do capítulo III foi a falta de resolução política do Executivo para enfrentar o problema da despenalização do uso de drogas no Brasil:
O capítulo III, da Lei nova, que trata Dos crimes e das penas foi inteiramente vetado, alegando-se o vício de inconstitucionalidade do artigo 21, o que, segundo as razões do mencionado veto, estaria a contaminar a íntegra de vários outros capítulos em questão.
Com a devida vênia, não nos parece procedente tal raciocínio. Ao contrário, quer parecer-nos que faltou resolução política para que o Executivo enfrentasse a problemática da despenalização do uso de drogas no Brasil, encampando uma Lei que, malgrado o grande número de imprecisões, tinha o mérito de pela primeira vez, adequar ao usuário ou ao dependente o tratamento legal por ele merecido, sabendo fazer a sua perfeita distinção do traficante ou do comerciante de droga.
O caminho do veto foi o meio mais fácil para não enfrentar o problema, como a lembrar a história do avestruz que esconde o pescoço num buraco...
Como o veto foi parcial à nova lei, convivemos hoje com a seguinte situação: Há duas leis regendo a matéria, o que nos leva a perplexidade, já que tanto a lei anterior-lei nº 6.368/76-quanto a lei recente- lei nº 10.409/02-apresentem dispositivos que contém a forma procedimental relativa aos delitos relacionados ao uso, consumo e tráfico de drogas.
Em contradição afirma Vicente Greco Filho:
Não houve revogação expressa da Lei nº 6.368/76 na parte penal e, também não houve revogação tácita, porque a Lei nº 1.0409/02 não tratou de toda matéria, eis que os crimes são referidos na lei de Crimes Hediondos, na Lei de Lavagem de Dinheiro, entre outras além das aludidas Convenções Internacionais.
Qualquer critério interpretativo, inclusive sociológico, teleológico, lógico, sistemático e até o simples gramatical, recusa a tese de que teria sido revogada a lei nº 6.368/76, das descrições dos tipos penais.
A questão relativa à aplicabilidade dos dispositivos da lei 10.409/02, sobretudo no que se refere à parte processual; Dos crimes e das penas, trouxe enorme confusão.
Isso se deve ao fato de que, como já foi dito anteriormente, o capítulo III foi inteiramente vetado, afetando o artigo 27, do capítulo IV; que disciplina que o procedimento penal relativo aos processos por crimes definidos nesta lei, segue o disposto neste capítulo.
Uma vez vetado no seu total o capítulo que dispõe sobre esses crimes o procedimento relativo aos mesmos tem sua aplicabilidade ineficaz.
De acordo com Sérgio Habib:
Se o procedimento a que se refere a nova lei destinava-se aos crimes por ela definidos, e se o capítulo relativo a esses crimes foi totalmente vetado, a que se destina, pois, tal procedimento?
Assim, entendemos que a parte relativa ao procedimento pré-processual, a que a nova lei intitula de “procedimento penal” não se aplica, a não ser quando for mais favorável ao réu, a ser verificado isso no caso concreto, devendo-se portanto, apurar o critério de maoir benignidade da lei para o acusado.
Também dessa forma afirma Vicente Greco Filho:
Nossa posição, é a de que devemos continuar aplicando também o procedimento da lei nº 6.368/76, talvez exclusivamente por razões práticas.
A história da ilegalidade da Cannabis Sativa comprova que esta droga se tornou ilícita mais por interesses econômicos que pelo seu caráter tóxico e a política a manteve proibida por questões práticas para diminuir a difusão da droga.
Ainda cabe à ciência o desafio de comprovar os verdadeiros efeitos da maconha como remédio ao passo que restam poucas evidências que sustentem os antigos mitos sobre a erva: a alta dependência química, a destruição de neurônios, o fato de a droga induzir ao crime e a violência, etc.
Apesar de não existir legislação específica sobre a auto-lesão, há um consenso jurídico que o usuário de maconha a provoca. Mas o mesmo consenso jurídico afirma que apesar de o usuário somente provocar danos a si mesmo e por isso ter protegido pela Constituição Federal seu direito individual à privacidade, deve ser punido como criminoso por ameaçar a coletividade e a saúde pública.
A legislação vigente atenta sobre os atos de adquirir, guardar ou trazer consigo para uso próprio, não faz referência sobre a conduta de usar. Dessa forma o que a lei pune não é o uso e sim o porte da maconha, mesmo que para fim de uso pessoal.
Existe uma nova legislação em trâmite no Senado Federal para a descriminalização do usuário de droga, retirando deste a pena de detenção que o configura como criminoso, objetivando determinar sanções administrativas com penas alternativas.
Concluímos que o usuário de maconha não pode ser tratado como criminoso, uma vez que na prisão ele só será aperfeiçoado no crime e assim trará mais problemas a sociedade.
O Estado tem o direito de se intrometer no que diz respeito a punição do uso de entorpecentes, pois é seu dever proteger o cidadão, o detalhe é que há infrações cíveis, administrativas e criminais.
O tratamento criminal serve para as situações que geram intranqüilidade social, como o caso dos traficantes, o usuário não tem que ser combatido com repressão.
O combate ao uso da maconha terá sucesso se for tratado como um problema social, desenvolvendo um programa governamental que priorize a educação e o tratamento de dependentes.
A nova lei de tóxicos e a despenalização do uso de drogas. Revista jurídica Consulex. São Paulo. n. 139. p. 12-23. outubro. 2002.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado. 1988.
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BRASIL. Lei nº 10.259, de 12 de julho de 2001. Dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: 2001.
BRASIL. Lei nº 10.409 de21 de outubro de 2002. Dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde, e dá outras providências. Diário Oficial da República federativa do Brasil. Brasília, DF: 2002.
BRASIL. Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito de substâncias entorpecente ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília. DF. 1976.
GRECO FILHO, Vicente.Tóxicos: prevenção-repressão: comentários a Lei nº 6.368/76, acompanhados da legislação vigente e de referência e ementário jurisprudencial . 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
JESUS, Damásio E. de. Lei antitóxicos anotada. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
SANGUINÉ, Odone. É inconstitucional a incriminação do porte de tóxicos para uso pessoal? Fascículos de ciências Penais. Porto Alegre. v. 1. n. 0/10. p. 56-64. dez. 1988.
APREENSÕES DE MACONHA.Disponível em. www.dpf.gov.br. Acesso em 13 maio 2004.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BESSA, Jammes Miller. A auto-lesão no usuário da maconha Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 out 2009, 07:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/18626/a-auto-lesao-no-usuario-da-maconha. Acesso em: 28 nov 2024.
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