SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DA VISITA AO ADOTANDO PELOS PAIS BIOLÓGICOS. 3. CONCLUSÃO. 4. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
A Lei nº 12.010, de 29 e julho de 2009, estabeleceu mudanças nas regras de adoção, revogando as disposições contidas no Código Civil, passando o tratamento a ser regido exclusivamente pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Como toda legislação resultante de acaloradas discussões e modificações em sua formulação original (emendas), paira ainda muito debate sobre os diversos tópicos trazidos pela novel legislação, a qual, a toda evidencia, apresenta pontos positivos e negativos.
Desde já vale apontar que as alterações são, em sua maior parte, benéficas ao escorreito tratamento a ser dispensado à família substituta de um modo geral, principalmente a atenção efetiva ao bem estar da criança e ao adolescente, a ampliação do conceito de família (família extensa ou ampliada), o tratamento especial a crianças indígenas, entre outras.
Contudo, entre alguns tópicos que talvez se postem não tão fieis à doutrina da proteção integral (como a burocratização da adoção internacional, que em meio a criação de uma diversidade de órgãos, vias e requisitos, talvez caminhe para um instituto em extinção no Brasil), chama a atenção a nova disposição do parágrafo quarto, do art. 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a qual será o objeto do presente estudo.
2. DA VISITA AO ADOTANDO PELOS PAIS BIOLÓGICOS.
Estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 33, § 4º:
“Art. 33 (...) § 4º Salvo expressa e fundamentada determinação em contrário, da autoridade judiciária competente, ou quando a medida for aplicada em preparação para adoção, o deferimento da guarda de criança ou adolescente a terceiros não impede o exercício do direito de visitas pelos pais, assim como o dever de prestar alimentos, que serão objeto de regulamentação específica, a pedido do interessado ou do Ministério Público.”
O texto comporta algumas considerações, já que, versando sobre o instituto da guarda, estampa que ‘quando a medida for aplicada em preparação para adoção’, ‘não impede o exercício de direito de visitas pelos pais’.
Veja que a disposição normativa vem a informar que, não obstante se tratar de adoção, os pais biológicos poderão visitar a infante, a qual estará sob os cuidados da família adotante (‘preparação para adoção’).
Aqui se concentra a crítica à previsão legal acrescida pela nova legislação, porquanto é cediço àqueles que militam na seara infanto-juvenil, que o tratamento a ser dado à adoção jamais pode ser confundido com o instituto da chamada ‘guarda simples’. Essa guarda, vale lembrar, deve ser vista como instituto a resguardar situação de fato, de natureza geralmente temporária, em que não deve haver vínculo ‘afetivo de filiação’, como assim o é o instituto da adoção.
A guarda, como diz a lei, como forma de ‘preparação para adoção’, na verdade se exterioriza como pálio protetivo de uma situação de fato (a manutenção de uma criança ou adolescente com pessoa maior de idade), onde a finalidade é possibilitar análise do vínculo e harmonia da infante com seus pretensos pais adotantes, bem como o início de cuidado, zelo e afetividade inerentes a quem quer estabelecer uma relação de pais e filhos.
Assim, como se estampar, então, que os pais biológicos poderão ficar a visitar a infante, mantendo em sua mente e sentimento o liame que rege a vida entre pais e filhos e, ao mesmo tempo, esperar que se crie o mesmo liame com os guardiões, que na verdade seriam os ‘novos’ pais dessa agora confusa criança/adolescente?
Oportuna a observação constante no trabalho intitulado “Diferentes adoções, uma nova cultura de acolhimento”, coordenado por Maria Clotilde Rossetti Ferreira, do Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil da FFCLRP-USP:
“Assim como quem está casando não pensa em separar, no momento da adoção não passa na cabeça dos adotantes a possibilidade de devolver as crianças e/ou adolescentes”.[1]
Com a devida vênia aos legisladores, certamente fora desprezado não apenas o conhecimento técnico da diferença dos institutos e finalidades da adoção, como também o empirismo dos que atuam nessa seara, sabendo-se da balbúrdia psicológica e afetiva que irá abraçar a todos os envolvidos.
Sim, pois além da criança e do adolescente, que estarão imersos em um turbilhão de sentimentos ao verem pais biológicos e pais adotantes em pólos distintos (pois ambos almejam o vínculo), com tratamentos múltiplos e variados, também haverá clara afetação a ‘ambas as famílias’, cada qual com suas perspectivas, angústias, medos, valores, idéias, rejeições, perdas, aceitações, ansiedades, tudo isso com a agravante do contato permanente entre eles.
Desprezou o legislador, que é regra (e não exceção), todas as questões supramencionadas, bem como as conseqüências mediatas e imediatas de referido ‘direito de visitas dos pais biológicos ao filho em processo de adoção’!
Como se desprezar, também, a recorrente alienação parental, infelizmente tão comum no seio de disputa de guardas?
Nesse diapasão, o que poderá ocorrer, então, em uma situação mais intensa como o processo adotivo, como a possibilidade de ‘perda definitiva’ da condição de pais (e aqui já se postaria o ‘sentimento de pais’ pelos adotantes, já que ao estarem com o filho em adoção, já se postam – em todos os sentidos fáticos e psicológicos – como se pais fossem)?
Será desprezada a forte carga de ‘pressão’ aos envolvidos?
Vale lembrar que não se trata apenas da pressão consciente e volitivamente direcionada, estampada por cobranças pelos pais em disputa; mas, também, as pressões inconscientes, exteriorizadas por comentários, gestos e posturas, das mais variadas matizes.
A infante, caso já possua certa capacidade volitiva e compreensão do mundo que a cerca, digladiar-se-á consigo mesma diariamente, mormente ante os sentimentos responsabilização pela situação, cobrança, dúvida, valoração, culpa, entre outros.
Não se pode olvidar, também, que todo processo de adoção envolve não apenas os adotantes em si considerados; há, também, forte envolvimento e participação dos demais membros das famílias, como avós, tios, primos, bem como os famosos ‘familiares por consideração’. Esse envolvimento certamente recairá, com a possibilidade das visitas, às personagens que rodeiam o mundo dos pais biológicos.
Pertinente transcrever outra passagem do estudo “Diferentes adoções, uma nova cultura de acolhimento”:
“(...) no decorrer do desenvolvimento do bebê adotivo, constrói-se uma maternidade, paternidade e filiação que diferem da biológica. Trata-se de uma história em construção constante, retomada em diferentes momentos da vida da criança e/ou adolescente e sua família. Assim, a adoção é um processo complexo que leva tempo. Cada membro da família, inclusive a criança/adolescente adotado, terá uma participação diferente.”[2]
Na mesma linha leciona a assistente social ÂNGELA MARIA PEREIRA DA SILVA, mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul:
“A gestação sócio-emocional e afetiva não se produz de modo instantâneo, requer um tempo para sua consolidação, visto que a um tempo de espera desde o ingresso na lista de espera até o momento tão esperado de acolher o filho nos braços. Nesse sentido, o momento que o adotante conhece a criança vivencia uma mistura de sentimentos, tais como emoção, alegria, medo, amor, zelo, cuidado, ansiedade sobre a sua capacidade de ser pai e de ser mãe. Os laços adotivos da mãe com o filho, não raro é tão intenso que acontece a ressignificação, visto que a criança precisa ser amada, receber carinho, ser protegida e do aconchego”.[3]
Assim, imagine a massa de pessoas e sentimentos-valores envolvidos, com a criança e/ou adolescente nesse hiato, dia a dia, hora a hora... sabendo-se que se trata de um ‘longo e complexo processo’, com a necessidade de uma resolução, um desfecho, uma conclusão!?
A psicóloga CATARINA DENISE RABELLO OSOEGAWA, especialista em Psicanálise pelo Instituto Sedes Sapientiae, explicita:
“Estudos psicanalíticos comprovam que é nos primeiros contatos da relação pais/filhos que se estabelecem as condições ideais para o vínculo afetivo e que as primeiras conquistas do bebê são amplamente valorizadas pelas famílias que podem compartilhar com afeto e alegria esta experiência de profunda ligação amorosa. Todos sabemos o quanto é motivo de felicidade para uma família poder acompanhar o desenvolvimento de um bebê nos seus primeiros sorrisos, nas suas primeiras brincadeiras, nos seus primeiros passos cambaleantes, nos primeiros balbucios e primeiras palavras tão desejadas pelos pais, momentos muito especiais, inesquecíveis e determinantes no estabelecimento do vínculo afetivo pais/criança”.[4]
Assim, observa-se que, com a devida licença ao legislador, caberá, pois, ao aplicador da lei a tarefa de ajustar o comando normativo em destaque para, ao invés de postá-lo como regra, lançá-lo à prateleiras das exceções.
O próprio § 4º do art. 33 do Estatuto da Criança e do Adolescente firmou que o impedimento ao exercício de visitas pelos pais biológicos poderá ser determinada pela autoridade judiciária, desde que expressa e fundamentada.
Vale lembra que o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece:
Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento
Assim, tem-se que a regra, ante todas as fundamentações colecionadas no presente estudo, será, sempre após avaliação de cada caso e mediante análise desenvolvido por equipe multidisciplinar competente, a priorização do desenvolvimento saudável da criança ou adolescente, evitando-se a agressão psicológica[5] que se posta durante o longo processo de adoção, agressão essa certamente existente caso sejam esses seres humanos em desenvolvimento imergidos em meio aos desgastes desse processo com a presença/participação, ao mesmo tempo, de pais biológicos e pais adotivos.
3. CONCLUSÃO
Ante o exposto, conclui-se que não obstante os avanços promovidos pela Lei nº 12.010/09 ao Estatuto da Criança e do Adolescente no trato do instituto da adoção, tem-se que não houve o mesmo acerto ao tratar da questão a envolver o período de convivência do adotando com os pretensos pais adotivos.
Na ânsia de se priorizar a manutenção dos filhos junto às famílias naturais, o legislador olvidou as peculiaridades existentes na guarda existente em razão do processo de adoção, onde a finalidade é possibilitar análise do vínculo e harmonia da criança ou do adolescente com seus pretensos pais adotantes.
Desse modo, além da criança e do adolescente, que estarão imersos em um turbilhão de sentimentos ao verem pais biológicos e pais adotantes em pólos distintos, com tratamentos múltiplos e variados, também haverá clara afetação a ‘ambas as famílias’, cada qual com suas perspectivas, angústias, medos, valores, idéias, rejeições, perdas, aceitações, ansiedades, tudo isso com a agravante do contato permanente entre eles.
Por tal desiderato, tem-se que a regra (e não a exceção) a ser seguida deverá ser a priorização do desenvolvimento saudável da criança ou adolescente, evitando-se a agressão psicológica que se posta durante o longo processo de adoção, lembrando-se que a adoção visa a criar nova família (jurídica e em sentimentos), evitando-se durante o período em tela a presença/participação, ao mesmo tempo, de pais biológicos e pais adotivos.
4. REFERÊNCIAS
FERREIRA, Maria Clotilde Rossetti. “Diferentes adoções - uma nova cultura de acolhimento”. Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional do Estado de São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: São Paulo. 2008.
OSOEGAWA, Catarina Denise Rabello. “Cadastro Nacional de Adoção: Números e Conflitos”. In http://psicatarina.blogspot.com. Acessado em 08.11.2009.
SILVA, Ângela Maria Pereira da. “Adoção: vida em minha vida”. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social, PUCRS. Orientação: Profa. Dra. Gleny T. Duro Guimarães Porto Alegre, 2008.
[1] “Diferentes adoções - uma nova cultura de acolhimento”. Coordenado por Maria Clotilde Rossetti Ferreira. Comissão Estadual Judiciária de Adoção Internacional do Estado de São Paulo. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: São Paulo. 2008, p. 12.
[2] Ob.cit., p. 04.
[3] SILVA, Ângela Maria Pereira da. “Adoção: vida em minha vida”. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Faculdade de Serviço Social, PUCRS. Orientação: Profa. Dra. Gleny T. Duro Guimarães Porto Alegre, 2008, p. 44.
[4] OSOEGAWA. Catarina Denise Rabello. “Cadastro Nacional de Adoção: Números e Conflitos”. In http://psicatarina.blogspot.com. Acessado em 08.11.2009.
[5] Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Constitucional pela UNAES/FESMPMS. Foi Analista Judiciário no TRF 3ª Região, advogado no Estado de São Paulo e Promotor de Justiça no Estado de Rondônia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ZAUPA, Fernando Martins. O direito aos pais biológicos para visita ao(a) filho(a) sob a guarda dos adotantes, durante o processo de adoção - acertou o legislador? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 nov 2009, 08:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/18737/o-direito-aos-pais-biologicos-para-visita-ao-a-filho-a-sob-a-guarda-dos-adotantes-durante-o-processo-de-adocao-acertou-o-legislador. Acesso em: 28 nov 2024.
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