A Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, provocou profundas reformas no Título VI da Parte Especial do Código Penal, na Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) e na Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). O presente artigo pretende analisar, de forma bastante sucinta, a atual disciplina da ação penal dos crimes previstos nos capítulos I e II do referido Título VI da Parte Especial do Código Penal após o advento da novel legislação.
Antes deste marco legislativo, os então chamados crimes contra os costumes estavam submetidos, em regra, à ação penal privada (artigo 225, caput, do Código Penal). Apenas excepcionalmente é que tais crimes seriam de ação penal pública, ora incondicionada (se o crime fosse cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, nos termos do artigo 225, § 1º, inciso II, do Código Penal; ou se da violência resultasse lesão corporal grave ou morte, com base no artigo 223 do Código Penal), ora condicionada à representação do ofendido (se a vítima ou seus pais não pudessem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família, consoante o artigo 225, § 1º, inciso I, e § 2º, do Código Penal).
A doutrina, à época, entendia que a intenção do Código em estabelecer como regra geral a ação penal privada para os crimes contra os costumes era a de evitar o que ficou conhecido como strepitus iudicci, o “[...] escândalo provocado pelo ajuizamento da ação penal [...]” (OLIVEIRA, 2008, p. 116), com a finalidade de “[...] evitar a produção de novos danos em seu patrimônio – moral, social, psicológico etc. – diante de possível repercussão negativa trazida pelo conhecimento generalizado do fato criminoso [...]” (OLIVEIRA, 2008, p. 116).
Destarte, de um modo geral, a doutrina não concordava com a regra aqui exposta. Com efeito, alegava-se que não era lógico permitir que a decisão sobre o início da persecução penal ficasse exclusivamente nas mãos do particular considerando que alguns crimes contra os costumes eram de extrema gravidade, notadamente os crimes de estupro (artigo 213) e atentado violento ao pudor (artigo 214), com pena máxima abstratamente cominada de 10 (dez) anos de reclusão. Em situações como essas, era nítido o interesse público na devida punição dos agentes delitivos, o que deveria autorizar o Estado, por meio do Ministério Público, a deflagrar a ação penal. Nesse contexto, é conveniente relembrar que esses crimes eram considerados crimes hediondos (artigo 1º, incisos V e VI, da Lei nº 8.072/90), tanto na sua forma simples como na sua forma qualificada, conforme posicionamento do STF (HC nº 81.288/SC). Aliás, o próprio STF, no julgamento do HC nº 81.360/RJ, chegou a afirmar que o estupro, por suas características de aberração e de desrespeito à dignidade humana, seria um problema de saúde pública.
Nesse trilhar, como assevera Eugênio Pacelli de Oliveira (2008, p. 123), se a preocupação do Estado fosse realmente com os efeitos danosos que porventura pudessem atingir a vítima desses crimes pela divulgação dos fatos, “[...] bastaria que a lei os submetesse à persecução penal pública, condicionada à autorização da vítima ou seu representante legal”.
Ademais, a regra da ação penal privada para os crimes contra os costumes poderia levar a absurdos absolutamente indesejáveis, a exemplo de um estupro ou mesmo de um atentado violento ao pudor praticado contra vítima que viesse a falecer no curso da ação penal não deixando sucessores (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão – art. 31 CPP), ensejando a perempção desta ação (artigo 60, inciso II, do Código de Processo Penal), a extinção da punibilidade do querelado (artigo 107, inciso, IV, do Código Penal) e, via de consequência, a impunidade de um fato gravíssimo.
É certo que o Supremo Tribunal Federal, na tentativa de consertar essa distorção e por motivos exclusivamente de política criminal, editou a Súmula nº 608, segundo a qual “No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada”.
Não obstante, o problema ainda persistia, pois, se o crime de estupro fosse praticado com violência presumida e contra vítima que viesse a falecer no curso da ação penal privada sem deixar sucessores, o agente do delito seria igualmente beneficiado pela extinção da sua punibilidade, ficando o fato mais uma vez impune.
O legislador teve uma ótima oportunidade de encerrar com essa aberração com o advento da Lei nº 11.106, de 28 de março de 2005, que provocou algumas alterações nos crimes contra os costumes – entre elas a revogação (tardia) do crime de adultério –, o que acabou não ocorrendo.
Felizmente, 4 (quatro) anos depois, eis que surge a Lei nº 12.015/09 atendendo a todos esses reclamos da doutrina e consagrando, no artigo 225, caput, do Código Penal, como regra geral, a ação penal pública condicionada à representação do ofendido para os agora chamados crimes contra a dignidade sexual (expressão, inclusive, que afasta a carga moralista da antiga expressão “crimes contra os costumes”, sendo mais consentânea com os tempos hodiernos e atenta ao verdadeiro bem jurídico tutelado, a dignidade sexual, vertente da dignidade humana insculpida no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal). Nesse ponto, portanto, andou bem o legislador.
Desse modo, a partir de agora, continua-se respeitando a vontade da vítima do crime, mas ela não precisa tomar à frente do pólo ativo da demanda, expondo-se ainda mais, já que a ação penal será oferecida pelo Ministério Público. Frise-se ainda que a persecução penal estará mais fortalecida, afinal de contas o Ministério Público possui prerrogativas públicas que não estão disponíveis para o particular.
Excepcionando a regra do caput do artigo 225 do Código Penal, o parágrafo único deste dispositivo legal dispõe ser a ação penal pública incondicionada se a vítima for menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.
Apesar do ponto positivo alhures mencionado, não há que se olvidar que a novel legislação desperta algumas questões nebulosas, que merecem ser a seguir respondidas.
1ª Questão: O que se entende por crime praticado contra vulnerável?
Os crimes contra a dignidade sexual são aqueles crimes previstos nos capítulos I e II do Título VI da Parte Especial do Código Penal. O capítulo I trata dos crimes contra a liberdade sexual, englobando os crimes de estupro (artigo 213), violência sexual mediante fraude (artigo 215) e assédio sexual (artigo 216-A). Já o capítulo II disciplina os crimes contra vulnerável, envolvendo os crimes de estupro de vulnerável (artigos 217-A e 218), satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (artigo 218-A) e favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (artigo 218-B).
Portanto, crime praticado por vulnerável, na verdade, é qualquer um dos crimes previstos nos artigos 217-A, 218, 218-A e 218-B do Código Penal. Por conta disso, em apertada síntese, pode-se entender como vulnerável o menor de 14 (catorze) anos de idade (artigos 217-A, 218 e 218-A) ou o menor de 18 (dezoito) anos submetido, induzido ou atraído à prostituição ou aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato (artigo 218-B). Como pode se ver, as hipóteses de definição do indivíduo vulnerável são muito semelhantes às situações que caracterizavam a vítima de violência presumida, outrora definidas no hoje revogado artigo 224 do Código Penal (aliena “a”, menor de 14 anos; alínea “b”, pessoa alienada ou débil mental; alínea “c”, pessoa que não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência).
Por fim, saliente-se que, nas palavras de Guilherme de Souza Nucci (2009, p. 62), com a tutela ao vulnerável, “[...] elimina-se a discussão sobre o estado de pobreza da pessoa ofendida [...]”, antigamente requisito indispensável para possibilitar a ação penal pública condicionada à representação do ofendido, consoante o antigo artigo 225, § 1º, inciso I, e § 2º, do Código Penal.
2ª Questão: Os crimes praticados contra vulnerável são de ação penal pública incondicionada ou condicionada à representação do ofendido?
Quanto à ação penal dos crimes praticados contra vulnerável, a Lei nº 12.015/09 apresenta uma aparente contradição, senão vejamos. O caput do artigo 225 do Código Penal atualmente apregoa que os crimes definidos nos capítulos I e II do Título VI são de ação penal pública condicionada à representação. Lembre-se que, como visto no item anterior, os crimes praticados contra vulnerável estão previstos justamente no capítulo II. Portanto, a princípio, eles também seriam de ação penal pública condicionada à representação do ofendido. De outro lado, porém, o parágrafo único do artigo 225, com sua nova redação, determina que os crimes praticados contra vulnerável são de ação penal pública incondicionada. Nesse aparente conflito, afinal de contas, qual regra deve prevalecer?
Em uma interpretação sistemática e atenta ao espírito do legislador de punir com maior rigor obviamente as condutas mais graves, entende-se que apenas os crimes previstos no capítulo I do Título VI (crimes contra a liberdade sexual) é que serão de ação penal pública condicionada à representação do ofendido. Para os crimes tipificados no capítulo II (crimes contra vulnerável), a ação penal deverá ser pública incondicionada. Com esse entendimento corrobora Paulo Rangel (2009, p. 301):
Pensamos que o que se quis dizer (aqui o terreno é movediço: adivinhar o que o legislador quis dizer) no caput do art. 225, é que nos crimes definidos no capítulo I (apenas o capítulo I) a ação penal será pública condicionada à representação, e no parágrafo único do mesmo artigo, será pública incondicionada quando a vítima for pessoa menor de 18 anos ou pessoa vulnerável.
3ª Questão: A Súmula nº 608 do STF continua válida?
A doutrina vem se inclinando pela eliminação da Súmula nº 608 do STF. Isso porque, como já dito anteriormente, a intenção do STF ao editar essa súmula foi consertar distorções que ocorriam por ser o crime de estupro, em regra, de ação penal privada (política criminal). Contudo, a partir do momento em que a nova lei traz regra expressa determinando que o delito de estupro será sempre de ação penal pública (ora condicionada à representação do ofendido, ora incondicionada), a Súmula perdeu a sua razão de existir. Nesse sentido Paulo Rangel (2009, p. 304-306) e Guilherme de Souza Nucci (2009, p. 62-63), o qual externa o seguinte magistério:
[...] Elimina-se a Súmula 608 do STF, vale dizer, em caso de estupro de pessoa adulta, ainda que cometido com violência, a ação é pública condicionada à representação. Lembremos ser tal Súmula fruto de Política Criminal, com o objetivo de proteger a mulher estuprada, com receio de alertar os órgãos de segurança, em especial, para não sofrer preconceito e ser vítima de gracejos inadequados. Chegou-se, inclusive, a criar a Delegacia da Mulher, para receber tais tipos de ocorrência. Não há razão técnica para a subsistência do preceito sumular, em particular pelo advento da reforma trazida pela Lei 12.015/2009. Unificaram-se o estupro e o atentado violento ao pudor e conferiu-se legitimidade ao Ministério Público para a ação penal, desde que a vítima concorde em representar. Mais que justo no cenário presente.
4ª Questão: A Lei nº 12.015/09 deve ser aplicada para os crimes praticados antes da sua vigência?
Quanto à aplicação de uma lei processual penal no tempo, há de ser considerado, como regra geral, o princípio da imediatidade (tempus regist actum) estampado no artigo 2º do CPP, segundo o qual “A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior”.
Esse princípio, porém, somente é aplicável para as leis processuais penais puras. Outrossim, existem leis que são apenas formalmente processuais penais, mas que materialmente são penais, pois possuem conteúdo relacionado ao Direito Penal. A essas leis dá-se o nome de leis processuais penais mistas ou híbridas, devendo incidir outro princípio, o princípio da retroatividade da lei penal mais favorável (consagrado no artigo 5º, XL, da Constituição Federal, e no artigo 2º do Código Penal), nos termos do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal (“À prisão preventiva e à fiança aplicar-se-ão os dispositivos que forem mais favoráveis” – conforme melhor interpretação doutrinária, este dispositivo se estende a qualquer situação que envolva as já citadas leis processuais penais mistas ou híbridas).
Nesse prisma, não há dúvidas de que a Lei nº 12.015/09, no que tange à ação penal dos crimes contra a dignidade sexual, tem natureza híbrida ou mista. De um lado, ao tratar de ação penal, ela apresenta um caráter formalmente processual penal. No entanto, ao determinar que a ação penal nesses crimes deixa de ser privada para se tornar sempre pública (condicionada à representação do ofendido ou incondicionada), é claro que tal lei atinge diretamente institutos tipicamente de direito material, a saber, a decadência, a renúncia, o perdão e a perempção, todos causas de extinção da punibilidade do agente delitivo (artigo 107, incisos IV e V, do Código Penal), relacionados, portanto, ao direito de liberdade deste último.
Em sendo lei processual penal mista ou híbrida, será que a Lei nº 12.015/09 sempre retroagiria para os fatos ocorridos antes da sua vigência? Para responder a esta indagação, é preciso considerar todas as situações possíveis, que são abaixo listadas.
A) Se o crime, antes do advento da lei, estava submetido a ação penal privada: É sempre favorável a um indivíduo que o crime seja de ação penal privada, pois, como já afirmado, ela permite a aplicação dos institutos da decadência, renúncia, perdão e perempção, institutos estes que promovem a extinção da punibilidade do mesmo. Não há esse resultado na ação penal pública incondicionada. Na ação penal pública condicionada à representação do ofendido, por sua vez, só é possível se operar a decadência. Portanto, na situação em testilha, há um claro prejuízo para o agente do delito, independente se a ação penal, no caso concreto, passou a ser pública condicionada à representação do ofendido ou incondicionada, motivo pelo qual a Lei nº 12.015/09 não deve retroagir, persistindo o crime como de ação penal privada. Não haverá, pois, qualquer alteração. Por isso, se o fato ainda está sendo investigado em sede de inquérito policial, a vítima do delito deve estar atenta ao prazo decadencial que ainda resta para que ofereça a queixa-crime. Se, porém, a ação penal já está em andamento, não há qualquer alteração no pólo ativo da demanda, devendo o feito permanecer como está. Havendo decisão com trânsito em julgado, não há nada mais a se fazer.
B) Se o crime, antes do advento da lei, estava submetido a ação penal pública condicionada à representação do ofendido: Entre a ação penal pública condicionada à representação do ofendido e a ação penal pública incondicionada, é melhor para o agente do delito que o crime esteja submetido àquela primeira, pois ela permite o instituto da decadência, responsável pela extinção da punibilidade, o que não acontece nesta segunda espécie de ação. Diante disso, se o crime era de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, assim permanecerá, independente se a ação penal se tornou pública incondicionada (hipótese prejudicial ao agente, daí porque a Lei nº 12.015/09 não retroagirá) ou pública condicionada à representação do ofendido (não há diferença). Nessa hipótese, pois, também não haverá qualquer alteração, à semelhança do que ocorre com a hipótese anterior.
C) Se o crime, antes do advento da lei, estava submetido a ação penal pública incondicionada: Claro que se o crime era de ação penal pública incondicionada e continua submetido a esta espécie de ação penal, não haverá qualquer diferença, permanecendo, pois, tudo como está. Entretanto, a dúvida surge se o crime era de ação penal pública incondicionada e passou a estar submetido a ação penal pública condicionada à representação do ofendido. Nesta hipótese, há melhoria na situação do agente delitivo, pois ele poderá agora ser beneficiado pelo instituto da decadência, que provoca a extinção da punibilidade. Por conta disso, entende-se que a Lei nº 12.015/09 deverá retroagir. Assim, se foi iniciada a ação penal, a vítima deverá ser chamada para oferecer a representação, caso já não tenha feito. Entretanto, deve-se advertir que, se já houver o trânsito em julgado da decisão proferida ao longo da ação penal, não será possível a retroatividade da Lei nº 12.015/09. A retroatividade de uma lei após o trânsito em julgado de uma decisão somente é possível se aquela for de caráter exclusivamente penal. Nesse caso, a lei mais benéfica deverá ser aplicada pelo juízo da execução penal, em conformidade com o artigo 66, inciso I, da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal). A respeito do tema, veja-se o quanto apregoado por Rômulo de Andrade Moreira (2009):
Ressalve-se, apenas, a coisa julgada como limite a tudo quanto foi dito, pois se já houve o trânsito em julgado, não se pode cogitar de retroatividade havendo processo findo, além do que, contendo a norma caráter também processual, só poderia atingir processo não encerrado, ao contrário do que ocorreria se se tratasse de lei puramente penal (lex nova que, por exemplo, diminuísse a pena ou deixasse de considerar determinado fato como criminoso), hipóteses em que seria atingido, inclusive, o trânsito em julgado, por força do art. 2º, parágrafo único do Código Penal.
5ª Questão: Se o crime era de ação penal pública incondicionada e passou a ser de ação penal pública condicionada à representação do ofendido, qual o prazo que a vítima tem para oferecer a sua representação?
Como já mencionado no item anterior, nessa hipótese, se a ação penal foi iniciada antes do advento da Lei nº 12.015/09, o juiz deverá determinar a intimação da vítima para que apresente a representação. Nesses termos, verifica-se que a representação do ofendido deixa de ser condição de procedibilidade (condição a ser preenchida para permitir o início da ação penal) para se tornar uma verdadeira condição específica de “prosseguibilidade” da ação penal (condição a ser preenchida para permitir o prosseguimento da ação penal).
Mas persiste o questionamento: qual o prazo que a vítima terá para apresentar a representação se ela ainda não consta dos autos?
Há séria divergência na doutrina a esse respeito. Guilherme de Souza Nucci (2009, p. 69), por exemplo, entende que a vítima deve apresentar a representação de imediato, não havendo novo prazo de 6 (seis) meses para tanto. Todavia, ainda em sede doutrinária, parece prevalecer o entendimento segundo o qual o prazo deverá ser de 30 (trinta) dias, em analogia ao disposto nos artigos 88 (que tornou obrigatória a representação para os crimes de lesões corporais leves e culposas) e 91 (que estipulou esse prazo de trinta dias para os crimes anteriormente citados) da Lei nº 9.099/95, posicionamento com o qual concordamos. É o que postulam Paulo Rangel (2009, p. 304) e Rômulo de Andrade Moreira (2009):
Se há nos autos manifestação de vontade da vítima nesse sentido, suprida estará a representação. Do contrário, não havendo manifestação de vontade da vítima dever-se-á, no prazo decadencial de 30 dias, aplicado analogicamente o art. 91 da Lei 9.099/95, ser chamada a se manifestar. Tal exigência começa a partir da entrada em vigor da Lei 12.015/09, 10 de agosto de 2009, devendo o Estado intimar a vítima para se manifestar, em 30 dias. (RANGEL, 2009, p. 304).
Qual o prazo para esta representação (agora uma verdadeira condição específica de “prosseguibilidade”)? Deveria a nova lei ter estabelecido um prazo para tais hipóteses, em uma disposição de caráter transitório. Não o fez. Logo, há uma lacuna a ser preenchida e duas normas que podem ser utilizadas por analogia: o art. 88 da Lei 9.099/95, que passou a exigir representação para as lesões leves e culposas, e o seu art. 91, in verbis: “nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência”. (MOREIRA, 2009).
Ressalte-se ainda que, na prática, vem sendo comum verificar que muitos juízes estão reabrindo o prazo decadencial de 6 (seis) meses com a intimação da vítima para apresentar a representação, o que, em nosso sentir, tecnicamente não é medida das mais corretas.
De qualquer forma, independente do prazo a ser considerado, uma vez intimada, a vítima, se pretender o prosseguimento da ação penal, deverá oferecer a representação ou ao menos evidenciar assentimento, o que pode ser alcançado tacitamente. Do contrário, caso não queira o prosseguimento desta ação penal, deverá negar expressamente ao juiz esse seu direito ou deixar passar o prazo in albis, o que promoverá a extinção da punibilidade do agente do delito.
6ª Questão: Como fica a ação penal para os crimes que resultem em lesão corporal grave ou morte?
Como já mencionado anteriormente, o Código Penal, antes do advento da Lei nº 12.015/09, estipulava no seu artigo 223 que, se do crime contra o costume resultasse lesão corporal grave ou morte, a ação penal seria pública incondicionada. Esse artigo, porém, com o advento da novel legislação, foi expressamente revogado, daí porque, a princípio, a ação penal para esses crimes seria pública condicionada à representação do ofendido.
Destarte, surge novamente uma grave distorção: se a vítima de crime que resulte em lesão corporal grave ou morte, sendo maior e capaz, falecer sem deixar sucessores, não haveria como oferecer a representação em face do ofensor, que ficaria impune, eis que beneficiado pela extinção da punibilidade.
Certamente não foi isso que pretendeu a Lei nº 12.015/09, que foi criada para punir com maior rigor crimes deste jaez. Em sendo assim, admitir que a ação penal, nessas hipóteses, seria pública condicionada à representação do ofendido significaria ir contra o próprio espírito da legislação, sem falar na notória violação ao princípio da proporcionalidade. Diante disso, recomenda-se seja feita uma interpretação conforme a Constituição para que a ação penal, no caso em tela, continue a ser pública incondicionada. Disso não discrepa Paulo Rangel (2009, p. 301-303):
Não é crível nem razoável que o legislador tenha adotado uma política de repressão a esses crimes e tornado a ação penal pública condicionada à representação. Até mesmo pelo absurdo de se ter a morte da vítima no crime de estupro e não haver quem, legitimamente, possa representar para punir o autor do fato. O crime, sendo a vítima maior e capaz, ficaria impune. Com certeza, por mais confuso que esteja o Congresso Nacional com seus sucessivos escândalos, não foi isso que se quis fazer [...].
Sem dúvida será de ação penal de iniciativa pública incondicionada e a razão [...] é que o princípio da interpretação conforme a Constituição recomenda que os seus aplicadores, diante de textos infraconstitucionais de significados múltiplos e de duvidosa constitucionalidade, escolham o sentido que as torne constitucionais e não aquele que resulte na sua declaração de inconstitucionalidade, aproveitando ou conservando, assim, as leis, evitando o surgimento de conflitos sociais e, porque não dizer, no caso penal, evitando também a impunidade, caso os juízes, sem o devido cuidado, se pusessem a invalidar os atos da legislatura.
Destarte, se o que se quer com a Lei 12.015/09 é estabelecer uma nova política repressiva dos crimes conta a dignidade sexual, protegendo-se a pessoa vítima do descontrole humano, em especial, quando houver morte ou lesão grave [...], é intuitivo que a ação penal seja pública incondicionada.
À guisa de conclusão, em linhas gerais, afigura-se positiva a iniciativa da Lei nº 12.015/09 em tornar, em regra, pública condicionada à representação do ofendido a ação penal nos crimes contra a dignidade sexual, pois, desse modo, os interesses da vítima e da sociedade são melhor conciliados, mas é preciso muita cautela na aplicação no tempo desta novel lei, assim como deve ser fixada a regra de que a ação penal será pública incondicionada nos crimes praticados contra menor de 18 (dezoito) anos ou vulnerável e naqueles cujo o resultado seja lesão corporal grave ou morte da vítima.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Ação penal nos crimes contra a liberdade sexual e nos delitos sexuais contra vulnerável: a lei nº 12.015/09. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2239, 18 ago. 2009. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13345>. Acesso em: 05 dez. 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes contra a dignidade sexual: comentários à lei 12.015, de 7 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009.
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 17ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais. Professor de Direito Processual Penal do curso Praetorium BH/SAT. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Direito Civil pela PUC/MG. Mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVES, Leonardo Barreto Moreira. A ação penal nos crimes contra a dignidade sexual após a Lei nº 12.015/09 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 dez 2009, 09:23. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/19028/a-acao-penal-nos-crimes-contra-a-dignidade-sexual-apos-a-lei-no-12-015-09. Acesso em: 29 nov 2024.
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